O caso Dreyfus e a politização das ciências sociais



“A politização do campo intelectual ocorreu, entre outras coisas, pela força do caso Dreyfus, momento em que se considera que a participação intelectual no debate público inaugurou uma forma coletiva de engajamento, dando origem inclusive ao termo “intelectual”. O caso explicitava tomadas de posição antagônicas em relação ao processo movido contra Alfred Dreyfus, capitão do exército francês e judeu, a quem se havia condenado em 1894 por alta traição e deportado para a Ilha do Diabo. A partir de 1898, quando Émile Zola publica no jornal Aurore a carta intitulada “J’Accuse” pedindo a revisão do julgamento, teve início um intenso debate que dividiu, de um lado, os defensores dos valores nacionalistas e do exército e, de outro lado, os defensores dos valores universalistas e dos direitos individuais. Charle demonstrou como as tomadas de posição por parte dos intelectuais resultavam não de uma adesão a valores propriamente políticos, mas eram transcrições para o campo político de posições propriamente intelectuais. Os autores ligados às posições dominantes no campo literário (por exemplo, os escritores de “romances psicológicos”) e às posições dominantes no campo universitário eram em sua maioria anti- dreyfusards, enquanto os autores pertencentes ao naturalismo literário e, homologamente, ao pólo científico e modernista da universidade eram em sua maioria dreyfusards. Um aspecto do estudo de Charle que interessa particularmente é a relação entre o campo intelectual e as posições políticas assumidas por ocasião do Affaire Dreyfus. Segundo ele, os universitários foram majoritariamente anti-dreyfusards e apenas uma parcela minoritária assinou o “Manifesto dos Intelectuais”, cuja publicação tem início no dia seguinte à manifestação de Zola. Ao organizar as listas por instituição de ensino superior, Charle mostra que, no caso das faculdades de letras, de ciências e de belas-artes, a grande maioria era dreyfusard; no caso das faculdades de direito e medicina, o movimento dreyfusard foi superado ligeiramente pelas fileiras anti-dreyfusards; finalmente, na École de Commerce e na École Centrale a inscrição anti-dreyfusard superou com larga vantagem os defensores do capitão. As listas, contudo, revelam diferenças importantes no caso da área de ciências sociais: os durkheimianos são definitivamente dreyfusards ativos, ou seja, partidários da revisão do processo e defensores da inocência do capitão. Durkheim e vários nomes ligados a L’Année Sociologique assinaram o “Manifesto dos Intelectuais”, tais como Célestin Bouglé, Paul Lapie, F. Simiand e Marcel Mauss. Por outro lado, os manifestos revelam algo para o qual Charle não atentou: vários nomes ligados à Revue Philosophique e à psicologia assinaram o “Apelo à União”, uma versão moderada de dreyfusismo que pregava a “legalidade” do processo e a aceitação da decisão da justiça, tais como Gabriel Tarde, Alfred Espinas, Pierre Janet e Charles Richet.

Além deles, também constou desta lista o nome de Dick May e de universitários que participavam da École des Hautes Études Sociales, tais como Émile Boutroux e Alfred Croiset. Os economistas liberais da École Libre des Sciences Politiques e do Instituto também assinaram o moderado manifesto. Os iniciadores do “Apelo à União” foram em sua maioria membros do Institut, instituição conservadora na qual ingressariam alguns anos depois vários dos colaboradores da École Libre des Sciences Politiques e da Revue Philosophique, em especial Tarde e, substituindo-o após sua morte, Espinas. Um dos organizadores do “Apelo”, Lavisse pretendia, através de um texto “moderado”, conforme declarou Durkheim, retirar do silêncio intelectuais que temiam assinar o Manifesto dos Intelectuais por razões políticas. Esse foi provavelmente o motivo pelo qual Tarde, por ocasião da assinatura da lista, solicitou a Lavisse que o identificasse como professor da École Libre des Sciences Politiques e não como diretor do Departamento de Estatística do Ministério da Justiça. Desse modo, pode-se dizer que a “moderação” foi uma disposição típica dos autores ligados às ciências sociais “livres”, resultado da dependência extrema em relação ao apoio político, às redes intelectuais e ao patronato para sobreviver no campo intelectual. Pode-se dizer, portanto, que há uma transcrição para o campo político das posições típicas no campo das ciências sociais: a inovação intelectual dos durkheimianos corresponde ao seu progressismo político (Manifesto dos Intelectuais) e, do mesmo modo, o “modernismo conservador” dos praticantes das disciplinas psicológicas, aliados por nascimento e geração ao campo das ciências sociais “livres”, corresponde à moderação política, como no caso de Gabriel Tarde (Apelo à União). Se se analisa, por exemplo, as disciplinas de Psicologia (Experimental, Patológica e Social), é possível observar que a maioria de seus representantes assinou o Apelo à União, resultado da posição ambígua da psicologia universitária no campo intelectual e de suas posições crescentemente legitimadas pelas instituições de consagração. Em contraposição, a sociologia durkheimiana e o grupo de filosofia universitária da Revista de Metafísica e de Moral assinaram o Manifesto dos Intelectuais, o
mais engajado e dreyfusard dos documentos.

Esse foi um debate que ocorreu por intermédio de jornais e revistas, cuja escolha é significativa do momento especial de politização do campo. Como eram debates de caráter político, os tradicionais fóruns de discussão de teorias científicas não deveriam ser usados, como se pode perceber pelo duelo travado entre Ferdinand Brunetière e Émile Durkheim, o último escolhendo a Revue Bleue (Revue Politique et Littéraire), mais generalista e semelhante à Revue des Deux Mondes, de Brunetière, para responder aos seus ataques. Isso não significou, contudo, menor fôlego nos debates internos ao próprio campo: as novas disciplinas enfrentavam críticas vigorosas de filósofos, de antropólogos e dos publicistas.

A posição de René Worms é interessante nesse caso. Por um lado, a formação em direito e a carreira como alto funcionário do Estado tendiam a disposições anti-dreyfusards; por outro lado, o fato de ser um judeu militante e lutar pelo caráter científico das ciências sociais o colocava próximo dos valores dreyfusards. De fato, o nome de seu pai, Émile Worms, professor da Faculdade de Direito de Rennes, consta do Manifesto dos Intelectuais. Mas não encontrei sua assinatura em nenhuma das listas ou petições pró ou anti-Dreyfus.

Esse silêncio parece significativo e minha hipótese é que tal fato se deve à posição de Worms no campo das ciências sociais “livres”, uma posição extremamente dependente do apoio de políticos, intelectuais e do patronato, de modo que nem mesmo o moderado manifesto de Apelo à União lhe pareceu livre de comprometimentos e de riscos. Worms acreditava nas ciências sociais como consagração da formação científica, motivo pelo qual propôs a transformação do Collège de France em Faculdade de Ciências Sociais. Ao contrário de Dick May, ele criou sociedades científicas e uma revista de sociologia para se credenciar e divulgar as novas ciências. Apesar de ser um defensor das “ciências sociais” e aparentemente poder ser localizado no pólo científico, ele teve que se submeter, assim como Boutmy e Dick May, aos intelectuais disponíveis e às condições de funcionamento das ciências sociais “livres”. Os motivos pelos quais seu projeto não vingou exigem um estudo do mundo da edição em ciências sociais e é o tema do próximo capítulo."

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Fonte:
MARCIA CRISTINA CONSOLIM: "CRÍTICA DA RAZÃO ACADÊMICA: CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS “LIVRES” E PSICOLOGIA SOCIAL FRANCESA NO FIM DO SÉCULO XIX". (Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Miceli). São Paulo, 2007.

Nota
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