Cinema e Estado Novo




"Em grande parte das referências bibliográficas sobre o cinema educativo encontramos a presença do vínculo com o Estado Novo, já que o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) foi fundado em 1937, em plena era Vargas, e grande parte desta produção foi marcada pelos ideais nacionalistas e centralizadores do período.

Na publicação organizada por Simon Schwartzman (1984), que não tem o cinema como objeto específico de análise, mas trata da atuação do Ministro Gustavo Capanema na área de educação e cultura, no período do governo Vargas, referências ao cinema educativo e à formação do INCE. O autor mostra que o que ocorria na área de educação e cultura naquele período fazia parte de um processo mais amplo de transformação do país, mas que não havia um projeto coeso e nem uma ideologia uniforme. A ação educativa era vista como um instrumento de poder, por parte de vários grupos sociais, e, por isso, era intensamente disputada. A Escola Nova, por exemplo, via a educação como um instrumento de neutralização das desigualdades sociais e em nome deste ideal,
seus representantes apoiaram algumas medidas de centralização do poder.

A análise aponta para a importância que os meios de comunicação de massa adquiriram como instrumento de mobilização popular e para as disputas entre educadores e políticos pela utilização desses meios, entre eles o cinema. Destaca ainda a ambigüidade que se estabelecia entre um cinema que se
propunha educativo e formativo, tal como propunha a Escola Nova, e outro de caráter mobilizador e propagandístico como era o caso da produção que veio a ser realizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Segundo Simon Schwartzman, havia uma dificuldade conceitual e institucional em estabelecer a separação entre educação e mobilização político-social. A presença destas duas vertentes, educação e mobilização, nem sempre é lembrada na bibliografia sobre o cinema educativo. No entanto, essa diferenciação nos permite perceber que o projeto de cinema educativo que se pretendia implementar no final dos anos de 1920, liderado pelo grupo vinculado a Escola Nova, diferenciava-se da utilização que o Estado Novo fez do cinema e que, portanto, a associação direta entre cinema educativo e Estado Novo nem sempre é pertinente para entendermos a forma como o cinema foi pensado no contexto das propostas educacionais e políticas da Escola Nova.

A reflexão da importância que o cinema teve nas estratégias políticas e coercitivas do governo Vargas, entre elas a utilização do cinema educativo, aparece também no trabalho de José Inácio de Melo e Souza (2003), intitulado “Ação e imaginação de uma ditadura: controle, coerção e propaganda política nos meios de comunicação durante o estado novo”. O autor faz uma análise da atuação dos meios de comunicação na República Velha e após 1930. Ele mostra como o Estado Novo se relacionou com os meios de comunicação, como esta relação se diferenciou da que se estabeleceu na República Velha e como havia uma disputa entre diferentes projetos ideológicos dentro do Estado sobre os
destinos da propaganda.

A aproximação do cinema com a educação é tratada por Souza, a partir dos anos de 1920, quando o Estado passa a se preocupar com a moralidade dos espetáculos públicos. Várias medidas são tomadas, da censura às prescrições médicas até se chegar à questão da educação como solução para enfrentar os filmes nocivos às crianças e adolescentes. Segundo o autor, no final da década de 1920 o cinema estava firmemente manietado pelo Estado, no entanto, sem uma diretriz definida do que deveria ser apresentado para a sociedade. A maioria dos
filmes assistidos vinham de Hollywood e por isso estavam fora do controle do Estado brasileiro. Desta forma, atrelar o cinema ao governo era uma forma também de “direcionamento do olhar das câmaras” (SOUZA, 2004, p.39).

Podemos dizer que este “direcionamento do olhar das câmaras” foi conduzido não apenas pelo Estado, mas por um conjunto de profissionais interessados em “formatar” a produção cinematográfica nacional, realizada até os anos de 1920 de forma “artesanal” e sem um modelo definido. Os educadores da Escola Nova e os “homens de cinema” tiveram um papel significativo neste direcionamento por meio do cinema educativo. A união da educação com o cinema, seja pelo discurso da moralização da produção cinematográfica ou pelas manifestações das exigências de se incluir o cinema nacional no âmbito da “verdadeira” arte cinematográfica, contribuíram para se estabelecer um controle
das imagens captadas e veiculadas pelo cinema nacional.

Em relação ao grupo de educadores vinculados à Associação Brasileira de Educação (ABE), que formularam algumas das idéias sobre o cinema educativo, Souza afirma ter sido o grupo que mais se interessou no período pelo cinema, ora de forma repressiva ora como educação de massa. Menciona também a criação do INCE, no contexto das disputas políticas que envolviam o Ministério da Educação, no período Vargas, e concentra sua análise no Departamento de
Imprensa e Propaganda, criado em 1939.

Em análise sobre as ações institucionais do governo brasileiro com relação à produção cinematográfica nacional, Anita Simis (1996) mostra as várias ações em torno da implementação do cinema educativo no Brasil. Destaca as idéias de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, por considerar que entre os defensores do cinema educativo foram suas idéias que tiveram maior influência na elaboração de uma política cinematográfica no governo Getúlio Vargas. A autora aborda os usos sociais e políticos que foram imputados ao cinema, como a questão da propaganda, da integração nacional e da comunicação entre as regiões do território nacional. Aponta também, que, na década de 1930, em vez de uma dificuldade em separar o caráter educativo ou mobilizador do cinema, como
apontou Simon Schwartzman, ocorreu uma disputa entre os dois ministérios (Ministério da educação e Saúde e Ministério da Justiça) em torno da utilização do rádio e do cinema. Além disso, Simis (1996) nos mostra que todo o debate em torno da utilização do cinema como instrumento pedagógico já havia se iniciado na década de 1910, muito antes da implantação do Estado Novo. Ela aponta nomes como os de Rui Barbosa e Venerando da Graça entre os que defenderam cinema educativo em escritos publicados na década de 1910.

Para Simis (1996) o Estado Novo usurpou da sociedade as novidades que foram gestadas nos anos anteriores, como as reformas educacionais, as idéias de modernidade e os instrumentos de difusão cultural como o cinema. Assim como Souza (2003), Simis destaca o decreto 21.240/32, assinado por Francisco Campos e Osvaldo Aranha como um marco nas relações entre o Estado e a classe cinematográfica. A formulação deste decreto foi conseqüência de uma comissão presidida por Francisco Campos, representante do Ministério da Educação, por educadores como Lourenço Filho e Jonathas Serrano e por representantes da classe cinematográfica, Adhemar Gonzaga e Mario Behring, a fim de analisar a questão do cinema nacional. Entre as medidas adotadas pelo Decreto estava a federalização da censura, a inclusão de um filme educativo em cada programa das salas de exibição e alteração das tarifas de importação
(SOUZA, 2003, p.70).

Nos trabalhos tratados acima o cinema educativo é parte de uma temática maior que é a relação entre Estado e cinema ou Estado e meios de comunicação de massa.
Ainda nessa linha, podemos citar a análise de Cláudio Aguiar Almeida (1999a), que também se deterá sobre a utilização do cinema pelo Estado Novo, mas tendo por objeto uma produção específica, o filme “Argila”, obra ficcional produzida em 1940 por Carmem Santos, dirigida por Humberto Mauro e tendo a participação de Edgar Roquette-Pinto no roteiro. Neste trabalho há uma abordagem sobre o desenvolvimento do cinema nacional a partir dos anos 1920, inserindo a temática do cinema educativo na própria luta de cineastas da época para a formação de uma indústria cinematográfica nacional, o que justificaria a união entre cineastas e educadores. Aguiar aponta também para a presença das teorias eugênicas e positivistas de Roquette-Pinto no filme Argila. Observamos também no trabalho de Aguiar uma ênfase muito acentuada na influência que o cinema de propaganda alemão ou italiano poderia ter tido na produção dos filmes educativos do período Vargas. Segundo o autor, a propaganda realizada pelos “regimes de força” europeus interessou não somente o Estado brasileiro, mas também aos cineastas do período, pelas vantagens que poderiam vir junto. Como afirma o autor, “diversos cineastas ansiavam pelo aparecimento de um Fuhrer brasileiro que, lançando mão de seus poderes totalitários, contribuísse para a consolidação da ansiada indústria cinematográfica nacional” (ALMEIDA, 1999a, p.90).

Almeida (1999b) analisa, ainda, a relação entre os produtores cinematográficos e o Estado, comparando com os sistemas de produção cinematográfica oficiais da Alemanha, Itália e URSS. Segundo o autor a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que produzia o cinejornal brasileiro, somada à produção do Ministério da Agricultura e à do INCE, acirrou a
disputa entre instituições oficiais e empresas privadas na produção de curta-metragem para o cumprimento da lei de obrigatoriedade. Segundo o autor, as “produções oficiais prescindiram dos recursos de bilheteria para a sua sustentação, concorrendo deslealmente com as produtoras privadas que tinham o aluguel das fitas como sua fonte de renda” (ALMEIDA, 1999b, p.127).

Como apontaremos mais adiante, a união entre educadores e os “homens de cinema”, vai além da conquista das verbas governamentais para a produção cinematográfica nacional. Nossa opinião é de que havia uma comunhão de interesses sim, mas também compartilhavam as concepções em torno da necessidade da educação do povo brasileiro. Do ponto de vista do cinema, os propósitos dos educadores serviram também para educar o cinema e formar o
público de cinema.

A bibliografia aqui estudada e que aborda a relação entre o Estado e o
cinema no Brasil traz grandes contribuições a respeito da implementação do cinema educativo no Brasil, mas acaba por identificar principalmente a ideologia do Estado Novo para este uso do cinema. A partir das relações que se estabeleceram entre o cinema educativo e o Estado Novo, a historiografia que fez referências ao cinema educativo, muitas vezes, atrelou esta produção exclusivamente às fronteiras ideológicas presentes na era Vargas. Comumente associou-se às iniciativas de formação de um cinema educativo primordialmente à formação do INCE, em 1937, sem fazer referências aos trabalhos que pensavam a relação entre cinema e educação desde a década de 1910. Associou também todo o movimento em torno da construção de um cinema educativo, a um uso de propaganda oficial ou de coerção nos moldes do que foi realizado na Alemanha, pelo Ministério de Propaganda, criado em 1933 e dirigido por Joseph Goebbels, ou na Itália, pelo Instituto de Cinematografia ou Instituto LUCE, criado em 1924. A relação entre o cinema educativo brasileiro e o italiano vem sendo analisada, mais recentemente, por Cristina Souza da Rosa (2005), que realiza um estudo comparativo entre os dois Institutos de cinema: o INCE do Estado Novo de Vargas e o LUCE do fascismo de Mussolini. Segundo Rosa o LUCE tinha a missão de divulgar a cultura italiana e tornou-se exemplo de cinema educativo em todo o mundo. Para Rosa (2005), o Estado Novo tanto quanto o fascismo italiano tinham a necessidade de formular um novo homem, papel este atribuído ao cinema.

Entretanto, a necessidade de se repensar a presença do cinema educativo de forma bastante atuante na década de 1920, marcada também pelas ideologias liberais de utilização dos meios de comunicação de massa, utilização esta formulada a partir das teorias americanas advindas da filosofia do pragmatismo, preconizadas por John Dewey (1859-1952), um dos teóricos que exerceram influência no movimento da Escola Nova. Há de se considerar ainda as experiências que vinham sendo feitas na França, com a realização de filmes de ensino e a produção de uma literatura sobre o tema, por homens ligados ao
cinema e ao ensino, tais como: Jean Benoit-Levy, que exerceu diversas atividades vinculadas ao uso do cinema no ensino e o cinema documentário; Jean Maré, fundador da liga de ensino na França; G.M. Coissac, fundador da Revista Cinèopse, citada com freqüência pelos educadores brasileiros.

Há ainda outras análises que apontam para uma disputa pela utilização do cinema entre os diversos grupos sociais atuantes no início do século XX e não como uma proposta de caráter unicamente estatal. É o caso da Igreja Católica que teve várias ações no sentido de promover um cinema no âmbito de seus princípios, conforme a dissertação de Maria Lucia Morrone (1997), na qual ela analisa as relações entre os setores educacionais, católicos e oficiais com o cinema. Almeida (2002) também analisou a relação da Igreja Católica com os meios de comunicação de massa, a partir dos grupos católicos ligados à Ordem
Franciscana, investigando a utilização que fizeram da imprensa e do cinema.

Outro grupo com propostas de utilização do cinema, desde a década de 1910, para fins educativos, são os anarquistas que constituem o objeto de estudo de Cristina Aparecida R. Figueira (2003), em que é analisado o debate anarquista em torno dos usos do cinema. Para este grupo o cinema deveria estar a serviço da educação do homem do povo, numa perspectiva revolucionária de transformação social, transformando-se em “arte revolucionária”. Figueira afirma que os anarquistas desenvolveram uma intensa reflexão sobre o cinema, em periódicos como A Lanterna (1901-1914) e A Plebe (1917-1921), fontes de seu estudo. O objetivo da autora foi entrecruzar o debate anarquista com os dos
adeptos da Escola Nova".

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Fonte:
Rosana Elisa Catelli: "Dos “naturais” ao documentário: o cinema educativo e a educação do cinema entre os anos de 1920 e 1930".(Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Doutor em Multimeios. Orientador: Prof. Dr. Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos). Campinas, 2007.

Nota
:
A imagem (Revista "A Cigarra") inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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