Celibato: aprisionando desejos



“Para compreender o aprisionamento dos corpos e, por conseguinte dos desejos, como mecanismo de controle da sexualidade, - em que o celibato pode ser entendido como um dos mecanismos patriarcais de poder - buscamos de modo interdisciplinar, recortes teóricos que acreditamos possibilitarão a compreensão da abordagem proposta.

É preciso, neste sentido, afastar qualquer pretensão de esgotar o assunto, muito pelo contrário, apenas suscitar a possibilidade de perceber a sexualidade por meio do desejo e dos corpos aprisionados e sua inter-relação com o celibato e como a imposição do celibato possibilita este aprisionamento.

Em seu artigo intitulado O médico, a prostituta e os significados do corpo, Engel (1985) afirma que o desejo sexual, como inerente à natureza humana, é neste sentido, reconhecido como uma necessidade fisiológica. Todavia, este mesmo desejo é visto ao mesmo tempo como “veneno para o corpo e, assim, de sua livre manifestação poderia resultar a destruição do organismo” (ENGEL, 1985, p. 170). Assim, o desejo que não se relaciona com a procriação, segundo o ideário c ristão, é considerado pela autora como um “excesso de prazer e/ ou ausência da finalidade reprodutora” (ENGEL, 1985, p. 170).

A prostituição, portanto, se insere neste contexto como portadora deste veneno para o corpo, já que o prazer não se destina à reprodução.

Sem romper com o ideário cristão, segundo a autora, os dizeres do discurso médico acabam por recriá-lo, transformando o corpo em um instrumento de profilaxia, ou seja, utiliza os corpos como instrumentos de cura, ou a busca dela, em que a prostituição viabiliza e legitima o controle do corpo e do desejo. Mas, o diagnóstico médico iria além: segundo Engel (1985, p. 175), “ao classificar o corpo da mulher como prostituta”, por não se relacionar sexualmente para fins de procriação, “imprimia sobre seu corpo a marca da esterilidade” (ENGEL, 1685, p. 175).

Numa perspectiva moral, a livre manifestação sexual, como vimos, segundo a noção de excesso de prazer e/ ou ausência da finalidade reprodutora identifica o corpo da prostituta como “lugar de depravação, de perversão” (ENGEL, 1985, p. 179) e, portanto, de esterilidade como citado acima.

Neste sentido, a prostituta é considerada um obstáculo físico e moral à reprodução e, segundo Engel (1985, p. 179), à “viabilização da higienização do corpo” lugar em que este corpo na perspectiva médica, que recria, de certa forma, o discurso religioso, precisa ser moral e fisicamente adequado à reprodução.

Deste modo, a moral ética do discurso médico, revestido de aspectos morais cristãos, revela um novo sentido. “O prazer, condenado e excomungado no discurso cristão, é absolvido e resgatado no discurso médico; mas, somente aprisionado pelas normas da regulação médica adquiria legitimidade” (ENGEL, 1985, p. 180).

Assim, a noção de corpos higiênicos ,segundo o discurso médico, aprisiona o desejo, pois regula os corpos e, por conseqüência, a sexualidade, já que a denominada sexualidade saudável, se restringiria exclusivamente à reprodução.

Uma outra possibilidade de compreender a negação dos corpos do ângulo do aprisionamento do desejo é o entendimento do significado da confissão. Prática tão extensiva, como a própria história da Igreja.

A confissão ocorre, segundo Foucault (1988), pelo fato de se tornar, particularmente a partir da Idade Média, uma das técnicas mais valorizadas para produzir a verdade e passa a ocupar um papel central na ordem dos poderes civis e religiosos. Assim, no século XIII, o IV Concílio de Latrão estabelece a confissão anual obrigatória, enquanto consolida o celibato clerical, retomando as idéias desenvolvidas pelo Cristianismo Antigo. A Igreja Oficial procura neste momento, efetivar o seu controle sobre a sexualidade pelo afunilamento das práticas sexuais: “o sexo lícito torna-se restrito aos leigos casados” (LIMA, 1986, p. 67).

E ainda assim, é alvo de uma série de interdições que, segundo Golf apud Lima (1986, p. 68), “proscrevem atos e ocasiões, na procura de reduzir, cada vez mais, o sentido da sexualidade, direcionando-a para a procriação”.

O esforço moralizador de Latrão é reafirmado no Concílio Tridentino (1545 –1563) de tal modo que, em todo este contexto, a confissão, sacramental ou judicial, passou a ser um dos principais instrumentos para vigiar as práticas sexuais.

Segundo Lima (1986, p. 69) então, a confissão pode ser “entendida como o discurso da culpa. [...] a confissão é, antes de tudo um ritual de sujeição”, de tal forma que, deste modo, a confissão constitui um ritual que produz a verdade e corrobora o poder, conforme os dizeres de Foucault.

Portanto, nos manuais de confissão, o discurso sobre o sexo é associado à luxúria e segundo o canonista Azpilcueta Navarro apud Lima, a “luxúria é vício da alma que a inclina a querer deleite desordenado de cópula carnal ou dos preparativos dela e sua obra e ato é querer o desejo e o gozo de tal deleite.”

Deste modo, ao normatizar às práticas sexuais, o que a Igreja procura é, na realidade, controlar o desejo, valendo-se daquilo que Lima (1986, p. 78), denominou de “ordenação do gozo”, ou simplesmente a licitude e a ilicitude do prazer, já que a cópula para fins não reprodutivos é, segundo os manuais de confissão, ilícito.

Isto não quer dizer, entretanto, que o matrimônio autorize os indivíduos à livre exploração do sexo, já que, neste sentido é lícito. Muito pelo contrário, segundo Lima (1986, p. 79), “a cópula matrimonial é lugar de sexo lícito, exatamente porque é lugar do gozo ordenado”, ou seja, de gozo com finalidade reprodutiva, de tal forma que o gozo destinado ao prazer torna-se a relação sexual no âmbito do matrimônio uma cópula ilícita.

Portanto, o que se procura, neste sentido, é cercear as situações de prazer, a sexualidade, onde o gozo, ordenado ou não, deve ser evitado e muito mais quando vislumbrar a possibilidade do prazer.

Neste sentido, A História da sexualidade, de Michel Foucault tem sido o texto mais influente e emblemático sobre o pensamento sexual. Foucault (1988) argumenta que os desejos não são entidades biológicas preexistentes, mas constituem um conjunto de práticas sociais historicamente determinadas e, numa primeira análise, relaciona os grandes conjuntos estratégicos de poder a respeito do sexo.

Primeiro, a histerização do corpo da mulher, ou seja, o corpo da mulher foi analisado, qualificado e desqualificado como “um corpo integralmente saturado de sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 99), inicialmente por uma patologia intrínseca na perspectiva médica; depois, ordenado socialmente como corpo social e, por isso, responsável pela fecundidade regulada, de modo a garantir a reprodução e, depois a mãe, com sua imagem “em negativo, que é a mulher nervosa”, segundo Foucault (1988, p. 99).

Depois, a pedagogia do sexo das crianças, que, segundo o autor, são seres sexuais liminares e, portanto, aquém e já no sexo, cuja sexualidade deve ser demarcada pelos pais, familiares, educadores, médicos e psicólogos, se assemelha em grau e intensidade com a prática exercida com relação aos corpos e desejos da mulher. Assim como as crianças, as mulheres também são colocadas em uma situação limiar, pois o seu gozo, agora ordenado, apenas é lícito se obtido para fins de procriação. O desejo do gozo, do prazer livre é considerado ilícito e, portanto deve ser evitado.

Foucault ainda atribui à socialização das condutas de procriação como pertencente a este conjunto de práticas sociais estratégicas de poder a respeito do sexo. Conforme Foucaultm é “[...] por meio de medidas sociais e, posteriormente, pelos valores patogênicos, atribuindo um controle do nascimento em relação ao indivíduo e a espécie” (FOUCAULT, 1988, p. 99), que o corpo e os desejos da mulher são controlados, ou seja, a rotulação e a atribuição de doenças como sendo originárias do corpo da mulher, atribui a estes valores patogênicos e rotula os filhos destes corpos como pertencentes a uma espécie de indivíduo menor, os filhos da prostituta.

E, por último, seguindo Foucault (1988, p. 99), “a psiquiatrização do prazer de tal modo que, o instinto sexual foi isolado como instinto biológico e psíquico de forma tal, que se procurou uma tecnologia corretiva para tais diagnósticos”. Aqui o autor relaciona, de forma clara o desejo sexual a algo instintivo, animalesco, logo desequilibrado.

A este conjunto de práticas, o autor denomina de dispositivos da sexualidade, argumentando que estes dispositivos, na realidade, “são mecanismos de fixação da sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 123), de tal forma que a partir e no decorrer do século XIX, houve uma generalização destes dispositivos, e que, em última análise o corpo social foi dotado de um corpo sexual. Aquilo que o autor chama de “universalidade da sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 120).

Neste sentido, a sexualidade é demarcada em relação à sexualidade do outro. Instaura-se a proteção dos corpos, de tal forma que esta demarcação, ao contrário, não instaura a sexualidade, mas serve-lhe de barreira.

Essa demarcação da sexualidade gera, segundo o autor, a teoria da repressão que, pouco a pouco, vai recobrir toda a sexualidade, ou seja, organiza-se

[...] dando-lhe um sentido de interdição generalizada, colocando o princípio de que toda sexualidade deve ser submetida à lei, ou melhor, que ela só é sexualidade por efeito da lei gerando um novo discurso onde à sexualidade por oposição a dos outros, será submetida a um regime de repressão [...] que a diferenciação sexual não se afirmará pela qualidade sexual do corpo, mas pela intensidade da sua repressão (FOUCAULT, 1988, p. 121)

A história da sexualidade a partir da época clássica, efetivamente se desenvolveu através de vários papéis simultâneos e, os fatos de tantas coisas terem mudado no comportamento sexual das sociedades ocidentais sem que se tenha, nos dizeres de Foucault (1988), realizado qualquer uma das promessas políticas oriundas do Reich, bastou para provar que toda a revolução do sexo, ainda segundo o autor, toda essa luta anti-repressiva, representou, nada mais nada menos “[...] do que um deslocamento e uma reversão tática nos dispositivos da sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p. 123).

Assim, a sexualidade e, portanto, os corpos e o desejo, mesmo num cenário de universalidade, continuam sobre este regime de repressão, de controle.

O celibato, que pode ser compreendido como um instrumento do poder patriarcal, serve a este propósito, ou seja, pode ser compreendido como um dos mecanismos de controle da sexualidade, cuja estratégia inicial é o aprisionamento dos corpos.

Ao determinar a sexualidade dos clérigos em relação à sexualidade do outro, neste caso, o feminino, o celibato reprime o corpo e o desejo destes homens gerando uma barreira à própria sexualidade e num sentido contrário, ao aprisionar o corpo do homem, por conseqüência afasta o corpo e nega a sexualidade do outro do homem, ou seja, a mulher.”


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Fonte:
FERNANDES BRAGA: "CELIBATO E GÊNERO: UMA RELEITURA CRÍTICA CLAUDOMILSON". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Universidade Católica de Goiás como requisito para obtenção do grau de mestre. Orientador: Prof. Dr. José C. Avelino da Silva). Goiânia, 2007.

Nota
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