A Sociedade dos Irmãos Muçulmanos


"A ideologia por trás da al Qaeda possui importantes resquícios de uma organização radical islâmica que data de 1928. A Sociedade dos Irmãos Muçulmanos foi uma manifestação da tradição nos moldes descritos por Giddens (2005), que restaurou os dogmas de conduta do Islã para o dia a dia da sociedade egípcia.

A Sociedade dos Irmãos Muçulmanos teve como objetivo formar um Estado Islâmico no Egito, o que levou seus partidários a organizar um Estado paralelo dentro do Estado oficial (Hourani, 1994). Em meados da década de 50 os Irmãos Muçulmanos do Egito contavam com toda uma infra-estrutura de hospitais, escolas, fábricas, instituições de assistência social. Até um exército foi criado para lutar junto com as tropas árabes na Palestina violando o monopólio e uso legítimo da força por parte do Estado. “Seu primeiro envolvimento ativo em política veio com a revolta dos árabes palestinos em fins da década de 1930. No fim da década, eram uma força política a ser levada em conta, e espalhavam-se na população urbana”. (Hourani, 1994:351).

No início dos anos 50 o Egito era uma nação dividida entre a força da tradição e a modernidade, onde a irmandade muçulmana contava com mais de 1 milhão de membros para uma população de 18 milhões de habitantes.

Embora a irmandade fosse um movimento de massa, também se organizava intimamente em [famílias] cooperativas – células contendo não mais do que cinco membros, conferindo à organização uma qualidade esponjosa e clandestina que acabou se mostrando difícil de detectar e impossível de erradicar
. (Wright, 2007: 38).

Esse modelo de células é, não por coincidência, uma das características herdadas pela rede Al Qaeda. As células terroristas da Al Qaeda estão espalhadas pelo mundo e permanecem inativas por longos períodos. Quando acionadas podem executar operações de grande impacto como ficou comprovado pelos atentados de Madri (2004) e Londres (2005).

Segundo Lawrence Wright, a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos “agia menos como contra-governo do que como contra-sociedade, que era na verdade seu objetivo. O fundador Hassan al-Banna se recusava a pensar a organização como um mero partido político; pretendia que ela fosse um desafio à idéia de política como um todo” (Wright, 2007:38).

Foi Sayyid Qutb, após a morte de al-Banna, o responsável por desenvolver uma rigorosa interpretação da doutrina social do Islã, que orientou a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos na luta contra o Estado egípcio, de Nasser a Sadat. Qutb foi um dos principais teóricos do radicalismo islâmico no século XX e um mártir para dezenas de gerações, dentro e fora do Egito.

Quando o exército liderado pelo general Gamal A. Nasser depôs o governo do Egito em 1954, a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos deu cobertura aos insurgentes providenciando um plano de fuga caso o golpe de Estado desse errado. O rompimento com o passado, que ia se mostrar em muitas esferas, foi simbolizado pela deposição do rei e a proclamação de uma república no Egito (Hourani, 1994). Mas após a queda do antigo regime as diferenças entre Nasser e Qutb ficaram evidentes.

O sonho político de Nasser era um socialismo pan-árabe, moderno, igualitário, secular e industrializado, as vidas individuais dominadas pela presença esmagadora do Estado de bem estar social. Seu sonho pouco tinha a ver com o governo islâmico teocrático preconizado por Qutb e os Irmãos Muçulmanos. Os islamitas queriam reformular por completo a sociedade, de cima para baixo, impondo valores islâmicos a todos os aspectos da vida, de modo que todo muçulmano pudesse atingir sua expressão espiritual mais pura.
(Wright, 2007:40).

O regime militar contava com pouco apoio popular, mas a sorte de Nasser mudaria em 26 de outubro de 1954 quando os Irmãos Muçulmanos organizaram um atentado terrorista para assassinar o presidente em praça pública. O atentado fracassado contra a vida do presidente Nasser fortaleceu o governo e expôs a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos. Em retaliação aos atentados terroristas, o governo do Cairo iniciou uma série de prisões contra os membros da irmandade, dentre eles Sayyid Qutb. Nas prisões do Egito, Qutb e seus asseclas foram interrogados e torturados. Muitos prisioneiros foram sumariamente executados e os processos de investigação se arrastaram por anos, chamando a atenção da comunidade internacional para o julgamento da Irmandade Muçulmana.

Uma linha do pensamento propõe que a tragédia americana do 11 de setembro nasceu nas prisões do Egito. Defensores dos direitos humanos no Cairo argumentam que a tortura criou uma vontade de vingança; primeiro em Sayyid Qutb e depois em seus seguidores, incluindo Ayman al-Zawahiri. O alvo principal da ira dos prisioneiros foi o governo secular egípcio, mas uma raiva enorme também foi dirigida ao Ocidente, vista como força capacitadora por trás do regime repressivo.
(Wright, 2007: 67)

De fato, a questão da tortura se mostrou um elemento recorrente na luta contra o terrorismo. Após a ocupação do Afeganistão os EUA estabeleceram em Guantánamo / Cuba, uma base para receber os suspeitos capturados na guerra contra o terror. Privados de plenos direitos de defesa, muitos prisioneiros acusados de terrorismo, ou de colaborar com terroristas, foram e são submetidos ainda hoje a sessões de tortura “legalizadas” que visam extrair informações crucias na guerra contra o terror.

Em 2004, vieram à tona fotos de soldados norte-americanos torturando e humilhando sexualmente prisioneiros iraquianos nas dependências de Abu Ghraib, antiga prisão para onde Saddam Hussein enviava seus prisioneiros políticos. “Para os prisioneiros a câmera tinha o potencial de expor sua humilhação para a família e amigos, servindo assim como um ‘multiplicador de vergonha’, colocando um enorme poder na mão do interrogador”. (Danner, 2004:39) Durante as investigações os carcereiros de Abu Ghraib reconheceram que aplicavam táticas de interrogatório baseadas no “desarranjo homeostático”, que segundo o manual da CIA induzia o prisioneiro ao “estado de debilidade-dependência-terror”. (Danner, 2004) Ao que tudo indica a mudança de regime não acabou com a prática da tortura, que apenas trocou de uniforme no Iraque.

Em algum momento de nosso século se tornou comum a compreensão de que os homens uniformizados devem ser mais temidos. Os uniformes criam o símbolo dos servidores do estado, essa fonte de todo poder e acima de tudo do poder coercitivo ajudando e favorecido pelo poder que absolve da desumanidade. (...) O estado que vestiu homens de uniforme, de modo que estes pudessem ser reconhecidos e instruídos para pisar, e antecipadamente absolvidos da culpa de pisar
. (Bauman, 1998:28)

Durante o tempo em que permaneceu na prisão, Sayyid Qutb escreveu secretamente um livro que foi aos poucos contrabandeado para fora da cela, até ser publicado em 1964. No manifesto chamado Marcos, Qutb ponderava sobre a traição dos governos muçulmanos que se afastaram do Islã e mergulharam na jahiliyya, um período de ignorância e barbárie. Essa diferenciação entre muçulmanos foi o ponto de ruptura para justificar uma guerra contra o “inimigo próximo”, que colocaria muçulmanos contra muçulmanos.

Após a morte do profeta Maomé, a comunidade muçulmana se dividiu em duas vertentes políticas, os Sunitas e os Xiitas. Na compreensão de Qutb o islã mergulhou na fitna, o caos que dividiu a sociedade muçulmana e a está conduzindo à ruína. Segundo um dito muito conhecido do profeta Maomé, o sangue de um muçulmano não pode ser derramado, exceto por três situações: punição por homicídio, infidelidade conjugal e afastamento do Islã.

A doutrina teórica desenvolvida por Qutb excomungou aqueles que na sua visão se afastaram do caminho do Islã e mergulharam no estado da barbárie conhecido como jahiliyya. Para Marc Sageman (2004), embora Qutb não seja o
primeiro a utilizar esse conceito de cisão do Islã ele foi o primeiro a desenhar as suas implicações radicais. A partir da ideologia propagada através de Marcos, Qutb justifica o assassinato de muçulmanos pelas mãos de outros muçulmanos.

Nos anos 60, Nasser subestimou a influência de Qutb que voltou a conspirar contra o governo, mesmo após quase ser condenado à morte. Ao ganhar a liberdade, Qutb recebeu armas e dinheiro da Arábia Saudita, que temia secretamente pelo alcance da Revolução de Nasser (Wright, 2007). O financiamento de grupos radicais islâmicos por parte do governo saudita é uma prática recorrente no século XX, como veremos a seguir. Assim como a Arábia Saudita procurou desestabilizar o governo egípcio através do financiamento do terrorismo islâmico na década de 60, na década de 80 os radicais islâmicos do Afeganistão também receberam suporte de Riad.

O movimento radical islâmico no Egito foi desmascarado pela polícia secreta e Qutb foi novamente preso. O novo julgamento de Sayyid Qutb durou três meses e conforme se aproximava a condenação do egípcio, cresciam as manifestações populares nas ruas do Cairo. Nasser enviou um interlocutor de seu governo para propor uma conciliação entre ele e Qutb. Segundo Lawrence Wright, o general prometeu que, se Qutb apelasse da sentença, ele mostraria misericórdia.

Na verdade, Nasser estava até disposto a oferecer-lhe o cargo de ministro da educação novamente. Qutb recusou. Depois sua irmã, Hamida, que também estava na prisão, foi levada até ele. ‘O movimento islâmico precisa de você’, ela implorou. “Anote isto”, Qutb respondeu. “Minhas palavras serão mais fortes se me matarem
. (Wright, 2007:45)

A luta pessoal de Qutb até a sua morte gerou uma legião de seguidores da Sociedade dos Irmãos Islâmicos, que imigraram para outros países do Oriente Médio. Para Marc Sageman (2004), a influencia teórica dos preceitos radicais desenhados por Sayyid Qutb ocupou um vácuo ideológico, principalmente após a derrota do mundo árabe contra Israel em 1967. Alguns dos fundadores da Al Qaeda, afirma Sageman, eram discípulos egípcios da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos que encontram abrigo no Afeganistão com destaque para Ayman al-Zawahiri, segundo na cadeia de comando da rede Al Qaeda e homem de confiança de Bin Laden”.


---
Fonte:
Thiago Yoshiaki Lopes Sugahara: "TERRORISMO E INSEGURANÇA NO MUNDO PÓS 11 DE SETEMBRO". (Dissertação apresentada como pré-requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, sob orientação do Prof. Dr. Marco Aurélio Nogueira). Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2008.

Nota
:
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Visite o site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!