“Desde os tempos antigos, antes mesmo da invenção da imprensa, as doenças já faziam parte da História. Lepra, peste bubônica, tuberculose, tifo, varíola, cólera, sífilis... A lista de enfermidades é variada. Com a presença dos micro-organismos, considerados as primeiras formas de vida do planeta, o homem sempre conviveu com surtos, atingindo inicialmente grupos isolados. Porém, foi se expondo cada vez mais a partir da conquista de novos territórios e da ocupação desordenada sobre a Terra, invadindo o meio antes habitado por vírus e bactérias.
Diversos fatores ligados ao desenvolvimento tiveram relação direta com a susceptibilidade a novas doenças. A domesticação de animais, que possuíam os seus próprios micro-organismos, facilitou a adaptação dos germes ao hospedeiro humano. O armazenamento de comida também atraiu espécies que se alimentavam do lixo, como os ratos, trazendo consigo bacilos. A construção de poços e canais acabou se tornando ideal para a proliferação de mosquitos transmissores de moléstias. Por outro lado, as navegações e o comércio de especiarias, já na Idade Moderna, permitiram o transporte de vírus e bactérias a lugares distantes.
Hoje, sabe-se que as doenças infecciosas são causadas por micro-organismos que entram no corpo, atacando as funções e os órgãos vitais do organismo. O contágio pode ocorrer de diversas maneiras. Gotas de saliva, tosse e espirro de um doente podem levar a pessoa a contrair gripe ou tuberculose. Alimentos e água contaminados com fezes de um indivíduo com cólera se tornam as principais formas de transmissão da moléstia. Relação sexual sem proteção é um risco em potencial para as doenças sexualmente transmissíveis, em especial a Aids. Já o mosquito Aedes aegypti pode ser vetor do vírus da dengue ou da febre amarela.
Com o progresso da ciência e a elucidação do papel das bactérias, o homem pôde saber a real causa das doenças e desenvolver então tratamentos preventivos e terapias adequados. Antigamente, porém, a interpretação das enfermidades era feita com base no misticismo e nas crenças religiosas. Para os povos antigos, as infecções eram enviadas pelos deuses, muitas vezes como ação benéfica. Na Grécia, acreditava-se que as doenças eram enviadas por Apolo, deus do sol e patrono da verdade, da medicina e pai da profecia. Na mitologia grega, Apolo tinha o poder de atrair e erradicar pragas. Asclépio, um dos seus filhos, foi cultuado a partir do século VI a.C. durante quase 1.000 anos por deter a arte da cura através das plantas medicinais. Nesse período, foram construídos mais de 200 templos, locais sagrados onde as pessoas buscavam o restabelecimento da saúde.
Os doentes que se dirigiam a esses templos eram acomodados nos pavilhões e se purificavam por meio do jejum, banhos e óleos passados na pele. Posteriormente, adormeciam e tinham a chance da cura pelo sono, no qual recebiam entidades que os curavam ou os orientavam sobre procedimentos terapêuticos. Dessa forma, as doenças infecciosas eram encaminhadas ao poder de Asclépio; e a morte dos doentes tinha como explicação não uma bactéria, mas o fato de eles não terem se purificado adequadamente ou de serem incuráveis. (UVJARI, 2003, p. 21-2)
Naquela época, as bactérias ainda não tinham sido descobertas, razão pela qual o homem acreditava na origem divina das doenças. A purificação do corpo baseada em crendices e métodos pouco eficazes do ponto de vista clínico era a alternativa encontrada para a cura. A morte, por outro lado, era encarada como uma expiação para aqueles que não se purificavam adequadamente ou eram considerados incuráveis.
Assim como doença, a noção de epidemia também é milenar e faz parte do imaginário popular desde os tempos mais remotos. Diversas batalhas e guerras foram decididas por epidemias em acampamentos militares, que muitas vezes não tinham condições higiênicas adequadas, favorecendo a contaminação entre os soldados. A Bíblia relata a morte de mais de 100 mil assírios por uma epidemia virulenta, no final do século VIII a.C., durante uma tentativa de invasão a Jerusalém. O extermínio dos inimigos foi assim creditado como “obra do Senhor”.
Embora sejam vistas como um agente externo, as epidemias estão diretamente ligadas ao corpo individual e social. É a partir dele que a doença se manifesta, torna-se real aos olhos e se dissemina para outros corpos. A relação das pessoas com as epidemias é material e subjetiva ao mesmo tempo, uma vez que lida com o agente transmissor, o indivíduo infectado e o trabalho de controle da doença (mundo material) e as representações e os valores do fenômeno epidemiológico na sociedade (mundo subjetivo).
Por incidirem sobre a esfera pública, as doenças infecciosas em especial ultrapassam a questão biológica com mais força, construindo significados no mundo, a partir das diferentes formas de contágio e o risco em potencial que representam para a vida das pessoas. “Para toda sociedade, a doença um problema que exige explicação – necessário que ela tenha um sentido” (NASCIMENTO, 2005, p. 35). Pela sua dimensão social, a doença é historicamente construída, conforme os diversos saberes e práticas constituídas que aliam a ordem biológica e social.
Para a epidemiologia, ciência que norteia a saúde pública, a doença pode ser definida como a falta ou perturbação da saúde. Dessa forma, a epidemia se caracteriza como a ocorrência de doença em um número de pessoas acima do esperado ao mesmo tempo (ROUQUAYROL, 2003, p. 134). Originalmente, o conceito de epidemiologia era restrito ao estudo das epidemias de doenças transmissíveis, tendo evoluído, posteriormente, para todos os agravos que acometem a saúde das populações.
O médico grego Hipócrates (
No seu livro sobre epidemias, Hipócrates relatou a ocorrência de uma desses eventos epidêmicos – possivelmente provocado pelo vírus da gripe ou da difteria – na cidade de Mármara, próximo a Istambul, atualmente situada no território turco. O tratamento prescrito por ele previa a sangria para eliminação do sangue em excesso do organismo, provável causador da diarréia ou vômito. Prática, no entanto, de eficácia duvidosa pelo risco na perda de sangue do paciente.
Apesar de ser um fenômeno coletivo, o processo epidêmico possui uma singularidade histórica que o individualiza no tempo e no espaço (FOUCAULT, 2006[1963], p. 26), expressando-se de diferentes maneiras no contexto social, econômico, político e cultural.
Contagiosa ou não, a epidemia tem uma espécie de individualidade histórica. Daí a necessidade de usar com ela um método complexo de observação. Fenômeno coletivo, ela exige um olhar múltiplo; processo único, é preciso descrevê-la no que tem de singular, acidental e imprevisto.
Cada epidemia tem sua própria história, marcando determinada época e espaço. Le Goff (1985, p. 8) diz que “a doen a pertence não só história superficial dos progressos científicos e tecnológicos como também à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades”. Para ele, há uma história de sofrimento e dor nas epidemias, sobretudo nos séculos passados, quando a origem das doenças era um desafio para a ciência.
Esta história das doenças conhece a febre conjuntural das epidemias. É uma história dramática que revela através dos tempos uma doença emblemática unindo o horror dos sintomas ao pavor de um sentimento de culpabilidade individual e colectiva (sic): lepra, peste, sífilis, tísica, cancro e, num pequeno território fortemente simbólico, a SIDA. (p. 8)
Por muito tempo, a origem das epidemias foi uma incógnita, dando margem a diversas interpretações. Na Idade Média, a Igreja com todo o seu poder teve uma forte influência sobre a mente da população cristã europeia, orientando-a quanto às explicações e aos métodos para evitar os males das pestes provocadas pelos pecados da humanidade decorrentes da blasfêmia, avareza, luxúria, usura, cobiça e falsidade. Desesperada e sem saber a causa das epidemias que lhes abatia, a população seguia as determinações sem questionar. Foi assim com a peste bubônica; foi assim com a hanseníase (lepra), duas das doenças que fizeram história entre os séculos XI e XVIII, ao lado da sífilis, da febre tifóide, da varíola e da tuberculose.
Ainda hoje, a hanseníase é uma das moléstias que mais chamam a atenção pelo preconceito, devido à má reputação desde os tempos bíblicos. O Levítico, terceiro livro do Antigo Testamento, menciona a doença como um sinal de impureza e castigo de Deus. De caráter legislativo, a obra dá indicações minuciosas sobre o diagnóstico da lepra e expõe as normas que diferenciam o puro do impuro no tocante à moléstia. Além disso, ressalta a necessidade de banimento do doente para sua purificação, tendo o sacerdote um papel fundamental tanto na expulsão quanto na sua reintrodução na comunidade onde vive.
E Jav falou a Mois s e Aarão dizendo: „Quando um homem tiver sobre a pele de sua carne um tumor, uma inflamação ou uma mancha branca e vir assim sobre a pele do corpo uma chaga de lepra, será conduzido a Aarão, osacerdote, ou a um dos sacerdotes, seus filhos. O sacerdote examinará o mal que está sobre a pele do corpo: se o pêlo da parte doente se tiver tornado branco e se o mal parecer profundo que a pele da carne, é uma chaga de lepra: o sacerdote, após examinar esse homem, declarar-lo-á impuro.
[...]
O leproso atacado de lepra trará suas vestes estraçalhadas e deixará em desordem seus cabelos, cobrir sua barba e gritar : „impuro! impuro!‟. Por todo o tempo que durar sua chaga, será impuro. Ele é impuro; habitará sozinho; sua morada será fora do acampamento. (capítulo 13, versículos 1-3, 45-46)
Durante a Idade Média, os leprosos foram perseguidos e expulsos das comunidades de origem sob orientação da Igreja. No passado, a hanseníase era uma das mais temidas enfermidades, possivelmente pela imbricada relação que o termo lepra teve com o contexto religioso. Por muito tempo, a palavra era associada à ideia de pecado e impureza. Nos dias atuais, mesmo tendo tratamento e cura, a hanseníase ainda carrega a marca da vergonha entre os doentes, considerados por muitas pessoas na sociedade como “intoc veis” e “proscritos”. Uma reação cruel e discriminatória a um medo da doença convertido no medo do outro sem qualquer razão em pleno século XXI.
Sontag (2002[1978], p. 75-6) diz que a noção de doença como punição é antiga e tem na hanseníase uma das histórias mais cruéis, suscitando significados moralistas.
Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada de significação. Primeiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção, decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. A própria doença torna-se uma metáfora. Então, em nome da doença (isto é, usando-a como metáfora), aquele horror é imposto a outras coisas. A doença passa a adjetivar. Diz-se que isto ou aquilo se parece com a doença, com o significado de que é nojento ou feio.
No passado, Sontag lembra que as doenças epidêmicas designavam metaforicamente uma desordem social, espécie de signo encarnado do “mal”. Da pestilência, veio então o adjetivo pestilento para denominar o doente de peste bubônica. Da mesma forma, surgiu o termo leproso, derivado de lepra, bem como aidético, de Aids. Mais do que caracterizar os doentes, os três termos citados em nada tem de neutros, sendo reflexo do estigma e do preconceito de uma qualidade negativa imposta ao doente face a uma “potencial ameaça externa” que o outro traz consigo (a doença).
Em Houaiss (2009, p. 1.170), leproso tem como sentido figurado aquele cujo convívio é maléfico ou extremamente desagradável, pessoa que provoca nojo e repulsa, que faz mal, asqueroso ou repugnante. O estigma da palavra – fincado num passado distante – parece não estar muito longe da pintura do artista flamengo Bernard van Orley (1491-1552), que retrata o leproso na Idade Média, com deformidades nos membros e usando instrumentos sonoros para alertar a sua presença (figura 1).
Guardadas as devidas diferenças, o aparecimento da Aids fez o mundo reviver o medo da desfiguração do corpo, assim como havia ocorrido com a hanseníase e a sífilis em séculos anteriores, só que desta vez sob os holofotes midiáticos. Semelhante às antigas epidemias, a Aids era interpretada como sinal de castigo divino, ressuscitando a intolerância, o preconceito ao extremo e até a procura de bodes expiatórios. Também expôs julgamentos morais a respeito de comportamentos e opções sexuais das pessoas infectadas pelo HIV, revelou a imagem negativa sobre o doente, que se consumia em direção à morte, e pôs em xeque o aparente controle que se imaginava ter sobre as doenças infecciosas, como recorda Moulin (2008, p. 33):
Aids ocupa um lugar à parte na história do corpo do século XX, embora só tenha marcado as suas duas últimas décadas. Tal como a sífilis, ligada à exploração do Novo Mundo, como a cólera, associada à aceleração dos transportes e à expansão colonial, infligiu um duro desmentido a um século que pretendia eliminar as doenças infecciosas. Projetou uma sombra sobre a liberdade sexual, abalou os usos e costumes dos eruditos e dos homens comuns, e mostrou claramente a grandeza e os limites da ciência.
Nenhuma enfermidade parecia ter atingido o corpo de forma tão pública quanto a Aids, expondo os corpos transfigurados por uma doença ainda sem cura. O pânico provocado pela epidemia levou doentes, familiares e militantes a protestarem contra a discriminação face à impotência terapêutica e a comunicarem suas experiências pessoais, diferentemente de séculos anteriores, quando os enfermos aceitavam a culpa imposta e sofriam calados, muitas vezes às escondidas, e segredados na sociedade.
Assim como a hanseníase e o câncer, a Aids “revigorou” o temor dos efeitos da doença sobre o corpo, representando uma ameaça real à questão estética. As marcas provocadas no rosto, locus da beleza humana, indicavam uma dissolução progressiva da pessoa, que definhava pouco a pouco numa sucessiva piora até o fim. A Aids parecia antecipar no imaginário social cristão o juízo final, como se a doença já fosse um castigo divino antecipado na Terra pela “conduta pervertida” adotada ainda em vida.
A matéria Portador de HIV sem amparo, do Jornal do Commercio de 1º de dezembro de 2009 (data em que se celebra o Dia Mundial de Luta Contra a Aids) “real a” essa imagem do soropositivo em estado de “decomposição” (magreza comovente / doente que definha / rim encolhendo) e a omissão do poder público em garantir assistência ao paciente.
Uma jovem de 25 anos, de magreza comovente, em pleno meio-dia se contorce com frio. Descobriu há menos de dois anos, após o nascimento do filho, que tinha HIV. Nos últimos três meses, segundo o companheiro, começou a piorar. Definha. “Tem febre todos os dias, dor nos ossos e o rim parece que est encolhendo”, descreve o rapaz, enquanto agasalha a mo a na calçada, no Centro do Recife. Diz que tentou vaga em dois hospitais e não conseguiu. E que ligou do orelhão para o Samu e também ouviu um não. Estão juntos há nove anos e ficaram sem teto quando ele perdeu condições de pagar o aluguel de um barraco na Ilha Joana Bezerra. (JC, 01/12/2009)
Outra reportagem, Os 20 anos de direitos dos portadores de HIV, desta vez publicada no Diário de Pernambuco no dia 29 de novembro do mesmo ano, relata o caso de discriminação e consequente depressão sofridos por uma criança soropositiva de 10 anos de idade que teve o acesso à educação negado, devido ao medo causado pelo vírus no ambiente escolar.
Aos 10 anos, Felipe (nome fictício) não quer mais ir à escola. Guarda na memória lembranças de um processo de rejeição que sofreu preconceito no ano passado. E que teve início quando a mãe resolveu contar no colégio que o filho vive com o vírus HIV. Primeiro foram as desculpas para que o menino voltasse para casa sem assistir às aulas. Depois, a recusa da professora em levar o garoto, que também tem dificuldade de locomoção, ao banheiro. Terminou com o menino em depressão e uma queixa prestada contra o colégio na Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente. (DP, 29/11/2009)
Ao refletir acerca das metáforas, Sontag (1989, p. 49) avalia que, por trás de alguns juízos morais, “juízos estéticos a respeito do belo e do feio, do limpo e do sujo, do conhecido e do estranho ou insólito”. Segundo a ensaísta americana, ela própria vítima de um câncer na década de 70 do século XX, muitas moléstias tinham efeitos terríveis sobre o corpo, a exemplo da poliomielite. Mesmo assim, não eram consideradas repulsivas por não deixarem marcas no rosto, espaço do corpo fundamental para “nossa avalia ão da beleza ou da ruína física”. Outras doenças, como a varíola, desfiguravam o rosto, mas as marcas deixadas não pioravam. Conseguiam ser estancadas, sendo consideradas posteriormente “as marcas do sobrevivente”.
Na Aids, não havia sobreviventes, restando apenas o juízo final. O corpo era o espetáculo no qual se desencadeava uma narrativa dolorosa do paciente em direção ao fim inevitável, tendo a família, os amigos e a própria sociedade como espectadores. Para Sontag, por mais que:
[...] a filosofia e a ciência modernas tenham atacado a separação cartesiana entre mente e corpo, não foi nem um pouco afetada a convicção de nossa referente à separação entre rosto e corpo, que influencia todos os aspectos dos costumes, modas, apreciação sexual, sensibilidade estética – praticamente todos os nossos conceitos do que é correto. Essa separação é um dos principais elementos de uma das tradições iconográficas fundamentais da Europa – a representação do martírio cristão, com um abismo surpreendente entre o que é expresso pelo rosto e o que está acontecendo com o corpo. As incontáveis imagens de são Sebastião, santa Ágata, são Lourenço (mas não a do próprio Cristo), em que o rosto demonstra sua superioridade tranqüila em relação às atrocidades sofridas pela parte inferior – lá embaixo, a ruína do corpo; no alto, a pessoa, encarnada no rosto, geralmente voltado para cima, sem exprimir dor nem medo; pois a pessoa já não está mais lá. (Só Cristo, ao mesmo tempo Filho do Homem e Filho de Deus, manifesta sofrimento no rosto: ele sofre sua Paixão.) O próprio conceito de pessoa, de dignidade, depende da separação entre rosto e corpo, da possibilidade de que o rosto esteja isento – ou que ele próprio se isente – do que está acontecendo com o corpo. E, por mais letais que sejam, as do coração e a gripe, não danificam nem deformam o rosto jamais provocam o terror mais profundo. (p. 47-8)
Na avaliação da autora, as doenças mais temidas são aquelas que “animalizam” o doente (o “rosto leonino” do leproso) ou conotam putrefação (a exemplo da sífilis). No caso da Aids, a desfiguração do corpo provocada pela ação do vírus revelou o aspecto mórbido da doença, além do desequilíbrio entre o indivíduo e a sociedade. Através das metáforas utilizadas, diz ela, é possível enxergar um pouco da sociedade repressiva, permitindo “que uma doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de „outros‟ vulner veis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos” (p. 76). Os adjetivos e os próprios discursos produzidos acabam trazendo consigo parte do medo que permeia a história da humanidade diante do desconhecido, do diferente e do estrangeiro que a doença, muitas vezes, representa.
Ao propor uma análise sobre as metáforas, Marcuschi (1984) diz que termos dessa natureza ultrapassam a esfera puramente semântica, representando a criação de novos universos de conhecimento.
[...] a metáfora é essencialmente mais do que uma simples transferência de significado baseada em certos artifícios semanticamente explicáveis, e, muito mais do que uma simples comparação abreviada. Na verdade, ela pode ser tida como ponto de apoio para uma análise de capacidade criativa espontânea do indivíduo, sendo então, apenas do ponto de vista operacional, uma transposição de significado, mas do ponto de vista genético e psicológico, ela seria a criação de novos universos de conhecimento. Criaria, pois, uma realidade nova. (p. 17, grifos do autor)
Para Marcuschi, a consciência se baseia na experiência empírica acumulada ao longo da vida para construir novos significados além da própria experiência. Na concepção dele, a metáfora não resulta de um processo comparativo anterior, e sim funda uma comparação a partir dela, tendo a ordem psicológica preponderância sobre a ordem lógica. Segundo ele,
[...] a metáfora no seu mais legítimo sentido tem uma finalidade em si e não exige compreensão definida e sim apenas sugerida. O conhecimento novo que ela nos sugere é fornecido por uma intuição e por um pensamento que não se baseia em comparação alguma e foge à explicação lógica. Neste sentido a metáfora como que produz a comparação e não a formula simplesmente: a comparação é, no máximo, um resultado da metáfora e não o contrário. (p. 28)
No Brasil, o compositor Cazuza (1958-1990) foi o primeiro artista a admitir publicamente que tinha Aids, pouco antes de morrer. Em 24 de abril de
Tanto na pintura secular de van Orley (figura 1) quanto na fotografia jornalística recente da Veja (figura 2), as transfigurações causadas pela hanseníase e a Aids revelam um pouco da historicidade das representações imagéticas dessas duas doenças e nos faz refletir sobre a sensação de pena e repulsa que se costuma ter diante do corpo desfigurado. Pensando em Moulin (2009, p. 19-20) quando diz que o século XX representa um período paradoxal ao negar o exibicionismo da doença – “O corpo o lugar onde a pessoa deve esforçar-se para parecer que vai bem de saúde” – e perturbar essa aparente calma denunciando “uma desordem secreta” por meio da medicina preventiva, vemos que a noção do corpore sano vai impondo a todo custo e cada vez mais o equilíbrio físico do homem. Ao mesmo tempo em que o corpo visivelmente anormal é exibido, ressaltando o drama do doente, há uma clara intenção de pô-lo à parte dos ditos corpos sadios.
De acordo com ele, essa invenção foi possível graças às reflexões feitas inicialmente no campo da psican lise por Freud, ao constatar que “o inconsciente fala atrav s do corpo”, al m dos filósofos Edmund Husserl e Maurice Merleau-Ponty e do antropólogo Marcel Mauss, igualmente importantes no aprofundamento das questões do corpo associadas à consciência e ao inconsciente, fundamentais para redimensionar o sujeito e dotar o corpo de uma experiência social. Aliado a isso, os movimentos feministas, homossexuais, étnicos e estudantis passaram, a partir da década de
“Nosso corpo nos pertence!” – gritavam no começo dos anos 70 as mulheres que protestavam contra as leis que proibiam o aborto, pouco tempo antes que os movimentos homossexuais retomassem o mesmo slogan. O discurso e as estruturas estavam estreitamente ligados ao poder, ao passo que o corpo estava ao lado das categorias oprimidas e marginalizadas: as minorias de raça, de classe ou de gênero pensavam ter apenas o próprio corpo para opor ao discurso do poder, à linguagem como instrumento para impor o silêncio aos corpos.
Com todas essas transformações empreendidas no seio da sociedade, o corpo ganhou uma representatividade autônoma no século XX – o “corpo animado”, como diria Merleau-Ponty (apud COURTINE, 2009, p. 7), tornando-se objeto de transformação e lugar de realização da pessoa no binômio cruel direito-dever à saúde. Direito porque a saúde passou a ser considerada uma nova garantia do homem pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade”. E dever pelo movimento de expropriação e reapropriação que o corpo vem sofrendo nas últimas décadas pelas imposições construídas socialmente ao indivíduo de estar permanentemente “em dia” com a sa de e por uma necessidade quase que esquizofrênica de manter distantes a doença e a morte. Na visão de Moulin (2009, p. 15-6), tal movimento poder levar o homem a se tornar talvez um dia “médico de si mesmo, tomando a iniciativa e as decisões com pleno conhecimento de causa”.
No mundo ocidental, principalmente no Brasil, a exacerbação do corpo é vista no culto estético que enaltece a magreza e os músculos nas academias de ginástica. Mas não apenas isso. Também pode ser observada na possibilidade de transformar o corpo sem qualquer esforço (apenas com um bom dinheiro...) por meio de cirurgias plásticas, lipoaspirações, colocação de próteses de silicone, implantes capilares, bronzeamentos artificiais e um sem número de cosméticos e procedimentos clínicos que prometem o rejuvenescimento facial e o fim das gorduras, das celulites e estrias. Ao mesmo tempo em que a população conta uma expectativa de vida maior, devido ao desenvolvimento da medicina preventiva e uma melhor qualidade de vida, a juventude torna-se uma meta, um ideal a ser alcançado por uma sociedade que menospreza a velhice, considerando-a uma etapa de decadência e antecessora da morte.
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Fonte:
Luiz Marcelo Robalinho Ferraz: “EPIDEMIA E MEMÓRIA: Narrativas jornalísticas na construção discursiva sobre a dengue". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Profª. Drª. Isaltina Maria de Azevedo Mello Gomes). Recife, 2010.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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