"As emoções preparam e modulam os comportamentos levando o indivíduo a agir de modo a diminuir as experiências desagradáveis e prolongar os afetos positivos (ROAZZI, 2002) . O medo é ambíguo, inerente à nossa natureza, altera-se com a cultura, idade, gênero e, para muitos, é a emoção negativa mais comum. Este sentimento se encontra relacionado à preservação da vida e é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos. Segundo Delumeau, o medo é um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à morte. Porém se esse sentimento ultrapassa uma dose suportável, torna-se patológico e cria bloqueios (DELUMEAU, 1989). Os medos válidos nos dão dica sobre o perigo, nos trazem certa cautela como modo de proteção e alerta, tendo a sua razão de ser. Os medos falsos e exagerados causam apuro, mas podem também gerar estragos significativos (GLASSNER, 2003). Por outro lado, apresenta também um papel importante na relação de poderes, pois reforça seu poder disciplinante (JIMENEZ, 2005, p.17 ). O medo amputa a vida social e tem um poder de se tornar paralisante. Nesse exemplo temos as falas de representantes das assembléias estaduais do estado de Santa Catarina e Paraná respectivamente:
“A deputada justificou como obrigação dos parlamentares a exigência de todas as informações a respeito do caso e, com isso, devolver a tranqüilidade necessária para a continuidade do desenvolvimento do Estado.” (BERTOLINI, 2005) “A Assembléia Legislativa e a Câmara Municipal retomam as atividades na segunda-feira, cobrando do governo do estado e da prefeitura de Curitiba ações mais rápidas para diagnosticar a doença e não comprometer a atividade dos comerciantes que sobrevivem da venda de caldo de cana.” (CHAGAS, 2005)
Outrora o medo estava vinculado às grandes epidemias de peste como as que assolaram a Europa entre os séculos XIV e XVIII dizimando grande parte da população. As epidemias sempre despertaram o interesse dos povos e o medo pelo potencial de atingir um grande número de pessoas indistintamente (DELUMEAU, 1989).
Mais próximo a nós, tivemos a gripe espanhola no início do século XX. No Rio de Janeiro a epidemia assolou cerca de metade da população fazendo aflorar esse sentimento de medo ante às pestes no ano de 1918. Fato relevante foi que nesse episódio não somente foi reconhecido o papel da epidemia como também o problema do medo onde se lia no jornal O País de 17/10/1918: “O pânico há quatro dias deixa a cidade alarmada com a calamidade, um ambiente de terror pairando sobre nossa metrópole como se uma grande catástrofe houvesse paralisado a vida social”. A mídia chegou a ressaltar que seriam necessário combater as duas epidemias que abatiam a cidade: a gripe espanhola e o medo dela. Finalizavam que se aos médicos competiam a cura da espanhola, aos jornalistas cabiam curar o medo da gripe (BRITO, 1997, p.20).
A partir desse temor e pelas controvérsias médico-científicas no episódio da gripe no qual, no início, as notícias não continham qualquer sinal alarmista iniciou-se um processo de metaforização da doença (BRITO, 1997, p.17). Sontag aborda esse processo como sendo passível em qualquer doença que seja encarada como um mistério e temido de modo muito agudo. Nesse processo a doença, por colocar em xeque valores morais e de costumes, acaba terminando em um julgamento dessa comunidade (SONTAG, 1984). No caso da gripe espanhola o medo teve esse papel, sendo o desmoralizador da população. Os jornais da época divulgavam essa diminuição de circulação dos espaços públicos : “O bonde, o automóvel, o mascate, o moderno camelô do centro da cidade... o baile funesto abafou todas essas vozes, ... e o camelô morreu”. Seguindo essa paralisia diversas agências públicas e empresas privadas suspenderam suas atividades culminando com um feriado de três dias decretado pelo governo em 19 de outubro de 1918 (BRITO, 1997, p.23).
Talvez no episódio do caldo de cana
No caso da doença de Chagas
O medo não está somente nos casos históricos de epidemia. Ele segue
Citando Glassner: “Nossas preocupações vão além do razoável”. Nos EUA a expectativa de vida dobrou no século XX e, mesmo assim, ouvimos que o número de pessoas doentes entre nós é fenomenal. Em 1996, Bob Garfield, jornalista de uma revista norte-americana analisou uma série de reportagens sobre doenças graves em grandes jornais dos Estados Unidos e chegou à conclusão que 543 milhões de americanos estão gravemente doentes, quando a população do país não ultrapassava cerca de 266 milhões de habitantes, e sugeriu: “Ou estamos condenados como sociedade, ou alguém está chutando alto” (GARFIELD apud GLASSNER, 2003, p. 20).
A mídia não inventa as notícias que exibe, mas certamente escolhe o que mostrar. Entretanto, a mídia faz parte sim de uma dinâmica social, ela faz parte da construção de novas ideologias. Ainda que ela se apresente sob a forma da “imparcialidade”: “Isso quer dizer que a mídia não cria preconceitos, julgamentos ou verdades, mas absorve o imaginário social, revestindo-o de uma roupagem especial, tecnicamente sofisticada e específica para agradar aos mais diferentes segmentos sociais e aos mais variados gostos.” (NJAINE, 2002, p. 286)
Porém, a mídia não é isenta na elaboração e tratamento das notícias. No episódio do Mal de Chagas houve em diversos momentos a “espetacularização” com “excessos midiáticos”. Isto ficou mais evidente com a divulgação da possibilidade de que 50 mil pessoas poderiam estar passíveis de contaminação, na utilização de imagens, na divulgação da contagem do número de mortos e contaminados. Ao final do episódio foram confirmados 3 óbitos e durante a divulgação pela mídia chegou-se ao número de sete. A própria Vigilância chegou a divulgar esses números para mais tarde voltar atrás descartando os demais casos. O número de contaminados confirmados também chegaram a trinta mas depois tiveram uma redução nessas cifras.
Embora esse medo não possa ser creditado como um todo à repercussão das notícias pelos meios de comunicação. Claramente eles tiveram papel catalisador e amplificador dos medos e riscos que estavam contidos no episódio. Os jornais obviamente estavam no seu papel informativo daquilo que julgavam relevante. Porém as reações exageradas da população frente o episódio estavam intrinsicamente ligadas ao discurso acerca da contaminação. Esse exemplo remete ao caso da cobertura da imprensa francesa sobre a AIDS na década de oitenta como cita HERZLICH (2005, p.97):
“Os jornais sempre acreditavam que estavam nos informando sobre o impacto social da doença, estavam reproduzindo as reações coletivas a ela, mas essas reações não eram exteriores ao discurso articulado pela própria imprensa; de fato, sabemos pouca coisa a respeito das relações que unem a produção do discurso e seus efeitos nos receptores.”
Por vezes, televisão e jornal são importantes divulgadores de notícias acerca de situações de risco e na construção do medo (LEAL, 2005, p. 8)
Os nossos medos em relação à saúde são ilimitados, desde o medo de adoecer ao medo de ser tratado por certas vezes com intervenções mutilantes ou que deixariam potenciais seqüelas físicas ou psíquicas.
Outro caso que nos assemelha ao medo desmedido ocasionado pelo caldo de cana é o exemplo da “bactéria comedora de carne”. Em
Vale a pena lembrar de tantos outros episódios: Ébola, onde misturou-se imagens e roteiros de ficção com a realidade; doença da vaca louca; aqui, em suas proporções, a “doença do caldo-de-cana”. Mais recentemente, seria a vez da gripe aviária?
A outra face do medo desmedido e irreal tem como exemplo o medo do câncer. As mulheres americanas na faixa dos 40 anos acreditam ter uma chance em dez de morrer de câncer de mama. Na realidade isso estaria em uma em 250. Essa percepção exagerada é capaz de ter o efeito oposto. Um estudo com filhas de mulheres com câncer de mama mostrou uma correlação inversa entre medo e prevenção, isto é, mais medo e menos freqüência de auto-exames (GLASSNER, 2003, p.25). Com esse exemplo observamos o aspecto desmedido e o poder negativo e paralisante que o medo pode ter. E o risco de contaminação pelo caldo de cana seria passível de medição? Como orientar uma população de vários locais que tal episódio ocorrera em um determinado foco com local e data fixados?
No caso do surto de doença de Chagas
Outra situação que remete a repercussão além da forma de contágio seria o grupo atingido. A doença de Chagas no seu meio de transmissão mais comum atingiria aos grupos populacionais relacionados a pobreza e em regiões do país mais desprovidas. Em nosso caso os indivíduos suscetíveis e passíveis da contaminação encontravam-se em um grupo (o de turistas e moradores da região) geralmente compostos de membros da classe média."
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Fonte:
ANDRÉ LUÍS ANDRADE JUSTINO: "DOENÇA DE CHAGAS AGUDA, DO RISCO AO MEDO". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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