Randazzo (1997), explicando como uma marca ocupa espaço no mercado, coloca-a como tendo, além de aspectos físicos, também aspectos psicológicos. Os aspectos físicos, como já foi dito, são o preço, utilidade, apresentação na prateleira etc. Entre ‘atributos físicos’, estão muitas vezes a PUV (Proposta Única de Venda), que é o que teoricamente diferencia a marca no mercado, ou o que é novidade.
Esse mecanismo pode ser percebido com o lançamento de cosméticos, por exemplo, que, para sobreviverem entre tantas marcas, estão sempre procurando criar diferenças. Alguns exemplos de aspectos físicos dos produtos no cotidiano: O Seda Shampoo: ‘Com essências naturais’, ou o bloqueador solar Nívea: ‘fórmula com proteção UVA/UVB e resistente à água’.
Além desse aspecto físico há uma “entidade perceptual que existe num espaço psicológico do consumidor” (RANDAZZO, 1997, p. 25) e que não é de forma alguma estática, pelo contrário, tem que ter um dinamismo que acompanhe as tão rápidas mudanças que ocorrem atualmente. Seriam os “benefícios decorrentes do uso” seriam . No exemplo do Seda Shampoo citado acima: cachos definidos, alongados e hidratados, além da imagem da moça no produto, que naturalmente tem um lindo cabelo e de uma certa forma se vincula ao elemento mitológico ‘donzela’, que se diferencia das demais, justamente pelo uso do produto. No caso do bloqueador solar Nívea: proteção segura contra queimaduras e o envelhecimento precoce da pele, muito alta proteção, tudo isso reforçado pela imagem da Giselle Bündchen.
Para tornar-se uma entidade perceptual na mente do consumidor, deve ser criado um “inventário de imagens, simbolismo, sentimentos e associações” (ibidem, p. 27) que o público ao qual se destina a mensagem deverá reconhecer. Esse ‘inventário perceptual’ é criado com o intuito de seduzir e persuadir o leitor. Por intermédio dessas pistas, é possível ter acesso à forma como esse consumidor é visto pelo produtor do anúncio e a determinados acordos da sociedade que afloram na argumentação multimodal construída no anúncio, já que não se pode ter acesso à mente do consumidor.
O autor afirma que esse inventário existe de maneira pouco consciente na mente dos consumidores. Afirma também que para isso os publicitários fazem uso de uma ‘mitologia latente’ ao produto ou serviço que se anuncia:
Essa mitologia abarca a totalidade das percepções, crenças, experiências e sentimentos associados ao produto. A mitologia latente do produto decorre das experiências do consumidor com o produto genérico, e também com a história, os fatos e o folclore que o cercam... (ibidem, p. 25)
Os aspectos, físicos e “benéficos”, ligados ao produto, fazem parte da realidade que é criada na mente do consumidor. Esse inventário perceptual que é percebido pelo consumidor do anúncio, de maneira subliminar, é a realidade mais importante.
Essa ‘mitologia latente’ ultrapassa as características físicas ou o uso que se faz do que se quer vender. Ela é criada levando-se em consideração o tipo de imagem que o consumidor de determinado produto ou serviço gostaria de ter de si próprio ao se ver retratado enquanto personagem usuário desse produto, serviço, marca. Dessa forma, tenta-se criar uma afetividade entre marca e consumidor. Aí, entram aspectos culturais, pois deve-se ter muito cuidado para não se criarem imagens ‘dissonantes cognitivamente’. (RANDAZZO, 1997)
Para Randazzo (1997), a partir do momento em que o consumidor potencial do produto é representado no anúncio como uma imagem, um símbolo do que ele gostaria de ser, passa-se uma imagem mitologizada, onde apenas alguns aspectos de um todo são realçados.
A imagem mitologizada que se cria é “um sistema semiológico segundo” no dizer de Barthes (2003, p. 205). O consumidor já não é mais ele próprio, inteiro, mas algo que se acopla ao desejo de ser outro, onde apenas as características positivas e desejáveis ocupam todo o espaço de significação. É por esse motivo que na publicidade a imagem visual se impõe com tanta força, pois ela é lida muito mais rapidamente “... ela se transforma numa escrita, a partir do momento em que é significativa” (ibidem, p. 205), isto é, essencial para a construção dos sentidos.
Barthes (2002, p. 11) se interessa por mitologia, justamente por indignar-se com a normalidade com que as coisas são veiculadas através da mídia, no cotidiano das pessoas, nas artes etc. Sua indignação ocorre porque percebe a “naturalização” de coisas, dos fenômenos sociais e culturais que fazem parte, não do mundo natural, como um terremoto, mas do decorrer da história, isto é, de um processo de mudanças, desde o seu surgimento até a atualidade, e são por ela determinados, mas que são constantemente insinuadas pela mídia como conseqüências da natureza das coisas. Esse processo serve para ofuscar relações históricas e cria uma realidade envolta em nebulosidade que aparece como estado original do ser.
Da mesma forma que ocorre a tentativa da naturalização de coisas, fatos e fenômenos históricos, ocorre a tentativa de naturalização da publicidade. Esta não deixa de ser, como outros fenômenos sociais, um fenômeno que se encontra naturalizado e perfeitamente integrado à paisagem cotidiana e embora muitas vezes não mais seja percebida, faz parte de nossas vidas, muito mais do que desejaríamos admitir. As categorias de análise que servem de parâmetro para a ACD, assim como investigar usos de elementos mitológicos, são formas de desmistificar essa naturalização e trazê-la para fora da rotina onde está imersa, questionando esse convívio.
Essa naturalização da publicidade ocorre com a reorganização do cotidiano, apagando possíveis conflitos culturais, econômicos, ideológicos etc. Dela desaparece, por exemplo, o percurso que o produto faz desde sua produção até sua venda. Como desaparecem, também, conflitos econômicos ligados à produção e ao poder de aquisição das pessoas. As relações de produção e disponibilização no mercado são “higienizadas” e naturalizadas. Esse processo de inculcação traz consigo um projeto social em potencial capaz de fazer com que indivíduos assumam como seus alguns interesses que nem sempre servem a seus próprios grupos, mas sim aos grupos que os ‘higienizam’ e apresentam como ‘naturais’.
Trata-se de uma tentativa de ‘naturalização’ da ideologia do cotidiano da sociedade de consumo. Nesta sociedade os objetos do consumo, ‘naturalizados’ pela publicidade, passam a dar forma e significado à vida cotidiana.
Uma maneira de conseguir desvendar essas características é buscar o inventário perceptual que se cria através da publicidade, pois é ela, a publicidade, que nos permite ter acesso ao tipo de vínculo afetivo que o publicitário tenta criar entre o consumidor e a marca, o produto ou o serviço. É dentro desse espaço que temos as narrações, feitas com determinada argumentação, com seus inúmeros sentidos e silenciamentos, com personagens e situações sedutores, sempre na tentativa de se ligar afetivamente ao consumidor.
As categorias de análise a serem usadas serão as que foram expostas: Herói, Grande Pai, Grande Mãe e Donzela. Será analisado de que forma a escolha e organização dos elementos lingüísticos e visuais que compõem o anúncio se cruzam com os elementos arquetípicos/mitológicos escolhidos para fundamentar as narrativas publicitárias. Por intermédio dessa articulação, podem ser demonstradas a que inventários perceptuais as empresas desejam ser Vinculadas"
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Fonte:
Clélia Barqueta: "O Íntimo e o Coletivo
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Mitologia na publicidade
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