O Bandeirante e o Bandeirantismo



O bandeirante Raposo Tavares


O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO

A análise do movimento bandeirantista,
fora da ótica do herói, a partir do estudo
das condições sociais de vida, evidencia o
alto nível de violências perpetradas contra os silvícolas ...
Luiza Volpato

Do mito ao homem comum
O marco inicial da colonização efetiva do Brasil foi a fundação da Vila de São Vicente, por volta de 1532. Situado em estreita faixa litorânea, o núcleo populacional nascente, instituído por Martim Afonso de Souza, voltava-se para a Metrópole de além-mar. Já no princípio do povoamento, foi construído o primeiro engenho de açúcar da Colônia, sob o nome de São Jorge dos Erasmos, tendo o segundo surgido quase simultaneamente, denominado Madre de Deus. Distante duas léguas, nascia também a Vila de Santos, erigida por Brás Cubas.

O cultivo canavieiro em São Vicente logrou êxito, com produção suficientemente satisfatória para que o porto de Santos sustentasse movimentado comércio. A navegação regular que paulatinamente se estabeleceu, propiciou aos vicentinos um cotidiano sem graves carências,
permitindo-lhes inclusive a obtenção de produtos provenientes da Metrópole.

A Serra do Mar foi transposta duas décadas depois da fundação de São Vicente, a 08 de setembro de 1553, ensejando a ocupação do planalto paulista. Estava lançada a semente de uma sociedade que viria a se distinguir daquela que vivia na orla marítima. No lugar onde era a aldeia Inhapuambuçú, do líder indígena Tibiriçá, os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta fizeram germinar a Vila de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554, referência decisiva para o engrossamento da ocupação planaltina.

Do povoado que então se formou surgiria a figura do sertanista, do andejo que viria a adentrar as matas visando apresar índios para, num primeiro momento, escravizá -los no labor assistencial e, posteriormente, com a demanda de mão-de-obra dos engenhos, comercializá-los. Essa relevante faceta do bandeirante, caçador e traficante de indígenas, é minimizada sobremaneira na obra de Ricardo, que engendra uma concepção identitária do homem planáltico representado predominantemente como um desbravador heróico e cristão, em busca de ouro e pedras de valor.

Confessa-se o chefe da bandeira antes de sair. Logo depois parte o grupo heróico e aguerrido. Rezarão por ele os poucos que ficaram. Também ele o fará, já nos confins do mundo ...(RICARDO, 1942, p. 211).

O autor de Marcha para Oeste ainda confere aos bandeirantes as qualidades de arautos da democracia, de opositores do capitalismo mercantilista europeu e de promotores da miscigenação racial.

Evidenciou-se em VOLPATO (1985) que as bandeiras não eram agregações democráticas, caracterizando-se por uma rígida estratificação hierárquica, onde o mando do cabode-tropa ou mestre-de-campo era proeminente. A participação indígena nas expedições desenvolvia-se sob o espectro do autoritarismo, sendo que os trabalhos executados por não índios, situados nos patamares hierárquicos inferiores, também ocorriam sob a mesma égide.

Ressaltemos que muitos aborígenes engajados nas bandeiras de caça ao índio, eram eles mesmos provenientes de apresamentos anteriores.

Essa prática remonta aos primórdios do bandeirismo, quando os primeiros índios foram amansados pelos paulistas.

Na obra A questão indígena na província de Mato Grosso escreveu Vasconcelos:

Marcante, contudo, foi a formação de bandeiras com a presença de índios para combater e capturar outros índios. (...) Desde o século XVI os portugueses usaram intermediários indígenas na busca de cativos (VASCONCELOS, 1999, p. 105).

Tecendo considerações sobre os subterfúgios apologéticos de Ricardo, observou o mesmo autor:
Na obra Marcha para oeste, Cassiano Ricardo tentou eximir o bandeirante da responsabilidade sobre a chamada fase da ‘bandeira de prea’, dando um significado mais complexo ao bandeirantismo (VASCONCELOS, 1999, p. 104).

Essas palavras de Vasconcelos são lapidares, uma vez que propiciam um entendimento mais crítico acerca do tergiversar de Ricardo, que busca evasivas para ocultar a característica do
bandeirante como caçador de indígenas. Evidenciando não apenas o apresamento, como também o engajamento do próprio índio nas expedições apresadoras, Vasconcelos contribui notadamente para protrairmos a intencionalidade presente no discurso de Ricardo, que simplesmente fundamenta a mobilidade bandeirantista na perspectiva de obtenção de minérios valiosos, lançando mão de um vocabulário exageradamente épico, evocando até mesmo seres mitológicos, guardiães de riquezas naturais ignoradas pelos paulistas. Vejamos as palavras de Ricardo sobre as motivações das marchas bandeirantistas:

... Atrás daqueles mataréos trágicos que pareciam querer contar-lhes o segredo de uma fortuna escondida por dragões exclusivistas e odiosos. Esses mitos, sim – arrastaram os grupos terra adentro. Naquela mobilidade dramática e estrepitosa que ainda nos enche de espanto ... (RICARDO, 1942, p. 46).

Panegirista do bandeirismo, Ricardo afirma, na mesma obra, que o objetivo principal das expedições era a busca de pedras preciosas, chegando a mencionar que “uma esmeralda valia mais que um latifúndio” (RICARDO, 1942, p. 51). Nota-se claramente a tendência antagônica de suas assertivas, posto que na mesma obra o autor atribui aos bandeirantes a característica de opositores do capitalismo mercantilista europeu. Parece-nos que quem parte para os mataréos trágicos em busca de algo de grande valor, está em verdade raciocinando sob a lógica capitalista, ansiando por lucro pecuniário. Expedições que buscavam unicamente riquezas minerais realmente existiram, porém a maioria das bandeiras tinha como objetivo principal o apresamento de índios, visando o labor escravo assistencial e o tráfico escravista para os engenhos canavieiros, o que também era uma atividade mercantil do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva. Algumas dessas expedições, ao mesmo tempo que apresavam aborígenes, não se furtavam de promover também a prospecção de jazidas minerais, com as atenções de seus integrantes também voltadas para este fim.

MONTEIRO (1994) explica que o ciclo bandeirantista de apresamento de índios só findou-se no final do século XVII, quando a busca de jazidas auríferas robusteceu-se notadamente.

No que tange à miscigenação, a representação mítica do bandeirismo engendrou a idéia de igualdade e democracia racial. A igualdade inter-racial inexistiu nas bandeiras. Exemplo modelar é o de Fernão Dias Pais, que para seus dois filhos dispensava atenções díspares. Um deles, Garcia, “legítimo branco”, recebia atenções paternais convencionais; o outro, José, “mestiço-bastardo”, experimentou o detrimento imposto por sua hibridez.

A última expedição de Fernão Dias partiu do planalto paulista em 1674. Já no sertão houve um motim, que foi debelado com a execução dos amotinados. Entre os assassinados estava José, o filho mestiço do chefe bandeirante.

Domingos Jorge Velho extinguiu definitivamente o Quilombo de Palmares em 1695, quando matou o líder negro Zumbi. Tempos depois, instalado na propriedade que recebeu como recompensa pelo feito, foi visitado pelo Bispo Dom Francisco de Lima. O religioso horrorizou-se, quando Jorge Velho apresentou-se com suas sete concubinas índias.

Ao Bispo horrorizavam particularmente as ‘barbaridades, costumes e vícios’ do paulista, que andava ‘metido pelas matas à caça de índios e índias, estas para o exercício de suas torpezas e aqueles para o granjeio de seus interesses.’ (GRYZINSKI, 1995, p. 74)

A democratização biológica mitificada por Ricardo, parece em primeira instância, esbarrar na poligamia. As relações sexuais entre bandeirantes e índias eram principalmente pautadas por motivações unilaterais, com o sertanista subjugando a mulher, não se importando com
sua disposição para o ato.

Observemos o que escreveu Volpato:
Era comum ao homem do sertão o uso de índias como concubinas. Esse concubinato era ao nível da exploração, numa relação na qual a índia era aviltada, tanto em sua condição de mulher, como em sua condição de raça dominada (VOLPATO, 1985, p. 73).

O abuso sexual de mulheres autóctones era na verdade um costume claramente recorrente entre os bandeirantes. Muitas vezes, as índias nem mesmo eram tomadas como concubinas, já que o concubinato é entendido como convivência e conjunção carnal cotidianas. O uso de índias como concubinas, como escreveu Volpato, talvez fosse uma prática menos ultrajante – se podemos assim dizer – que a curra ou o estrupo propriamente ditos, verificados principalmente nos ataques às reduções jesuíticas. Quando do assalto dos paulistas à redução de Jesus Maria, observemos o que escreveu o Padre Ruiz de Montoya:

Às mulheres deste povo e de outros destruídos, quando de boa aparência, fossem elas casadas, solteiras ou pagãs, encerrava-as o dono consigo num aposento, passando com elas as noites como o faz um bode num curral de cabras (MONTOYA, 1985, p. 246).

Relações sexuais forçadas, onde a aquiescência das índias era obtida através da violência. Estas são as situações mais recorrentes na história do sertanismo, sendo bem mais esporádicas as ocasiões onde a cópula era precedida por cortejos, ou após o consentimento do autóctone progenitor da mulher desejada.

Neste sentido, a democratização biológica que Ricardo atribuiu aos bandeirantes não parece ter sido construída em bases essencialmente democráticas. Contudo, vejamos as palavras desse autor: “... A mestiçagem é uma reação bio -democrática da raça contra uma condição social anti-democrática” (RICARDO, 1942, p. 63, Vol. 2).

Conforme ficou claro em Gryzinski, Volpato e Montoya, o uso sexual das mulheres naturais da terra era encetado pela vontade inflexível dos sertanistas. Em outras palavras, parafraseando Ricardo, pode ser dito que a mestiçagem é uma reação bio-ditatorial contra
uma condição social democrática. Arriscamos essa paráfrase entendendo que em qualquer condição social democrática a mulher é livre para escolher seu parceiro sexual, situação essa que não era comum na conjunção física entre bandeirantes e índias. Parece-nos até que Ricardo comete um anacronismo, ao perspectivar a análise da mestiçagem sob o prisma da democratização racial, uma vez que aos atos cotidianos do Brasil Colonial não parece ser adequada a evocação dos valores da democracia, como ela era entendida nos anos quarenta do século XX, quando foi publicada sua obra Marcha para Oeste, onde reiteradas vezes ele tange a miscigenação como elemento fomentador da democracia racial.

A quintescência da antítese da democracia racial foi protagonizada por João Leme. Tal sertanista mantinha uma índia como concubina, vindo a descobrir que ela era amante de um índio. Aviltado em seus brios, João Leme mandou prender os dois, torturou-os, providenciou a castração do rival e finalmente consumou a dupla execução. João Leme era um dos legendários irmãos Leme, que mesmo inseridos no universo violento do bandeirismo, lograram granjear fama de facínoras temíveis.

Os diversos crimes desses homens façanhudos3 acabaram por levar suas cabeças a prêmio. Tais criminosos foram mortos, tendo sido o juiz Godinho Manso quem instituiu a recompensa. Panegirista proeminente do bandeirismo, Taunay apelidou Godinho Manso como abutre forense (Taunay apud Ricardo, 1942, p. 238).

A história do bandeirismo é sobretudo impregnada do derramamento de sangue indígena, do despovoamento das matas e da exploração do homem pelo homem. Os núcleos populacionais ensejados pelas expedições, em suas características iniciais, configuravam-se como pequenas agregações humanas, próximas ou mesmo insinuadas nos perímetros então esvaziados, onde antes aldeias inteiras existiram, povoando desde há muito o interior do continente. Arrancado de sua vida tribal, o homem natural da terra tornou-se trabalhador escravo nos engenhos e nas lavouras de cana, sendo também utilizado sobretudo como flecheiro, em novas expedições de apresamento. Teríamos muitos exemplos para corroborar as mazelas impostas aos índios no Brasil Colonial. No entanto, basta evocar dentre tantos outros, o caso da bandeira de Domingos Jorge Velho, que promoveu o assassinato em massa de aproximadamente 300 tapuios no Nordeste, devastando suas principais aldeias. Em 1638, o rei Felipe IV nomeou uma comissão de espanhóis e portugueses, visando a apuração das denúncias feitas pelos jesuítas contra os bandeirantes. Tal comissão acusou os andejos paulistas do apresamento ou morte de 300 000 (trezentos mil) índios. Volpato, contudo, esclarece que não se sabe ao certo a quantidade de silvícolas arrancados das matas e missões jesuíticas: “ Grande parte deste contingente se perdia nas longas caminhadas a pé
desde o local de apresamento até São Paulo” (VOLPATO, 1985, p. 14).

Levando-se em conta o que escreveu Monteiro, no que diz respeito ao fechamento do ciclo de caça ao índio no final do século XVII, conclui-se que após a apuração da comissão mista em 1638, as muitas outras expedições de apresamento promoveram escravização e morte de um número não estimado de indígenas, que elevou a estimativa calculada pelos portugueses e espanhóis nomeados por Felipe IV. O próprio bandeirismo de contrato de Domingos Jorge Velho, que devastou os tapuios no Nordeste, passando à larga do apresamento e praticando o assassinato em larga escala, ocorreu já no último decênio dos seiscentos.

Com as bandeiras de busca ao ouro a utilização de mão-de-obra indígena não se extinguiu, mas orientou-se de outras formas. O índio continuou a servir os sertanistas em labores diversos, embora já não mais fossem objeto de tráfico intensivo. Nas roças, na coleta de alimentos, na caça de subsistência, o homem natural da terra continuava vivendo sob o despotismo de seus mandantes. O mel era alimento particularmente apreciado pelos expedicionários paulistas, que para obtê-lo se serviam dos silvícolas, hábeis em encontrar colméias seguindo as abelhas com os olhos. Em outubro de 1722, o sertanista Miguel Sutil dirigiu-se do Arraial de Coxipó até a localidade onde hoje se ergue a cidade de Cuiabá, visando observar uma roça já iniciada. Lá chegando, ordenou que dois índios saíssem à cata de mel, munidos de machados e cabaças. Os índios demoraram a retornar, só o fazendo já noite avançada, tendo Sutil os recebido com rispidez. Os meleiros haviam falhado na procura de colméias, mas apresentaram ao irritado paulista um embrulho feito com folhas, contendo vinte e três granitos de ouro, que pesavam cento e vinte oitavas. Assim, ao acaso, foi descoberto o ouro em Cuiabá, por dois indígenas destros nos rastreamento melífico. Ocupamo-nos, até o presente momento, em evidenciar alguns aspectos básicos do universo bandeirantista, emanados das páginas da historiografia. Fez parte deste intuito divisar os bandeirantes como homens comuns, que premidos pelas circunstâncias contextuais de seu tempo, buscaram alternativas práticas para a solução de seus problemas diários. A conotação heróica do sertanista paulista foi iniciada pela historiografia produzida no final do século XIX, tornando-se alentada no início do século XX.

Nos estertores do Governo Imperial, os cafeicultores de São Paulo prosperavam pronunciadamente. Observemos o que escreveu Volpato:
Esse é o período em que os cafeicultores paulistas, impulsionados por um surto de desenvolvimento que o governo imperial não tinha como atender e premidos por exigências, ascenderam ao poder através da Proclamação da República (VOLPATO, 1985, p. 19).

Já encarapitados no poder, os dirigentes cafeeiros iniciaram a urdir a legitimação popular de suas aptidões hereditárias de mando. Nessa urdidura, tais aptidões eram sugeridas como provindas da ancestralidade bandeirante.

Sertanistas paulistas, cafeicultores paulistas ... Gerações extemporâneas de uma mesma e gloriosa linhagem, com habilidades já há muito comprovadas no exercício do poder. Posteriormente, já nos anos 20 do século XX, o governo do estado de São Paulo investiu significativamente em projetos de pesquisa sobre o bandeirismo, através de incentivos e financiamentos. Essa iniciativa fez proliferar o número de trabalhos sobre o tema, com vários livros sendo publicados. Surgiu deste rol a mais extensa obra sobre o assunto, História Geral das Bandeiras Paulistas , de Afonso d’E. Taunay.

Heroicizado, o planaltino comum das origens de São Paulo, que outrora marchara para oeste, foi identificado com a expansão dos cafezais, que então avançavam na mesma direção. Herdeiros de um legado ancestral de liderança, instrumentalizado na representação mítico/política do bandeirante, os cafeicultores paulistas buscaram a afirmação de seus dirigentes, catapultandoos ao suposto nicho social que alojava os homens mais aptos para governar. Quanto a isso explica Volpato:

Assim, os paulistas, descendentes dos bandeirantes, deveriam assumir o destino que lhes estava reservado e, a exemplo de seus ancestrais, tomar a liderança do país. Aos paulistas os brasileiros deviam as conquistas e as riquezas do passado; aos paulistas os brasileiros deviam o desenvolvimento do presente. Sua liderança não deveria ser questionada, porque lhes era própria. (VOLPATO, 1985, p. 19)

Confundindo os interesses de alguns com os de todos, ou seja, os interesses dos grupos cafeeiros com os da Nação, a historiografia de então não apenas configurou-se como elemento político-ideológico, mas também contribuiu sobremaneira na transmutação do sertanista planaltino em figura mítico/legendária, herói épico de um contexto rústico, que lhe reivindicava características excepcionais para a solução das portentosas adversidades que se multiplicavam. Como corroboração, observemos as virtudes do bandeirante apresentado por Ricardo, após a queda da República Velha, revestido como detentor das qualidades de chefe da ditadura nacionalista do Estado Novo:

O costume de só vermos o herói no chefe de bandeira nos leva a esquecer, ainda, outros aspectos de sua figura - entre os quais o governador investido de todos os poderes, o chefe de um executivo que tudo ordena, o legislador que decreta as leis ... o juiz que dá remédio às desavenças e queixas ... provê todos os atos da vida civil. Ele não é apenas o cabo de tropa, o generalíssimo: é o próprio poder público, o ditador, o chefe de estado. (RICARDO, 1942, p. 27)

Essas palavras de Ricardo são emblemáticas tanto no que diz respeito à instrumentalização
política do bandeirante, como no que tange à sua representação heroicizante. Para o autor, o bandeirante não é apenas herói - “O costume de só vermos o herói ...” -, mas também possuidor de características administrativas que o qualificam a gerir expedições sertanistas ou nações: “Ninguém como o chefe da bandeira encarna tão bem a concepção de governo forte.” (RICARDO apud VOLPATO, 1985, p. 20)

As características de comando e capacidade administrativa são aqui atribuídas ao bandeirante em adição à sua condição de herói. Ao mencionar que o sertanista paulista possui outros atributos, em adendo à sua probidade heroística, Ricardo conota como inalienável esta sua última faceta. Destarte, torna-se clara a insinuação do bandeirante como detentor de óbvio, legítimo e irrefutável heroísmo. Ora, se o costume nos leva a só ver o herói em alguém, é porque este alguém é supostamente herói em primeira instância. Se acaso este alguém possui ainda outras qualidades, as possui além de sua condição primordial de herói. Em Ricardo, a historiografia do bandeirismo engendrou um indivíduo que detém não apenas heroicidade, mas ainda inúmeras outras qualificações em apêndice.

A própria hibridez racial do bandeirante, anteriormente desprezada e lançada no limbo das
etnias, passou a ser exaltada pelos panegiristas do bandeirismo, considerada como a forjadora de um homem com características especiais. Um homem que reunia a inteligência do branco e as habilidades físicas do índio. Este homem novo, apontado como privilegiado, era o mameluco, o bandeirante mestiço. Em síntese, a mestiçagem, antes considerada degenerescente, passou a ser apresentada como fator de aprimoramento racial, que propiciou o surgimento de um ser humano excepcional, o mameluco, membro da raça de gigantes.

O interesse pelo estudo do bandeirismo, ensejado no fim do século XIX pelos próceres da cafeicultura, e robustecido pelo governo paulista nos anos 20 do século XX, propiciou uma vasta bibliografia sobre o tema. Autores como Taunay, Ricardo e Alcântara Machado tornaram-se referências, em conseqüência de suas alentadas obras no que tange o assunto.

Bem antes dessas publicações, ainda no século XVIII, Pedro Taques de Almeida Paes Leme escrevia sua Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genealógica. Essa obra, publicada juntamente com outros trabalhos na década de 20 do século XX, já enaltecia os feitos bandeirantes, porém não em proporções tão desbragadas quanto à produção bibliográfica que foi estimulada primeiramente pelas cúpulas da cultura cafeeira, e posteriormente pelo governo do estado de São Paulo.

Desde então, intermitentemente, o mito do bandeirantismo ressurgiu como insuflador de sentimentos de varonilidade e tenacidade entre o povo paulista. Ressalta-se como exemplo modelar a Revolução Constitucionalista de 19324, quando São Paulo insurgiu-se ante a ditadura de Getúlio Vargas, empunhando armas sob o argumento da reinstauração da democracia. O Governo Federal apontou tal movimento como separatista. São Paulo contava inicialmente com o apoio de Minas Gerais e Mato Grosso. Em dado momento, com o confronto bélico já deflagrado, Minas Gerais inusitadamente aderiu às tropas governistas. A contribuição matogrossense foi um batalhão de menos de uma centena de homens, comandado por Bertholdo Klinger. Nosso objetivo, ao abordar essa luta armada, não é o de penetrar no âmago de suas implicações, mas tão somente o de evidenciar a evocação da ancestralidade bandeirante5, num momento que particularmente reivindicava a afirmação de sentimentos altaneiros e desassombrados. Atentemonos para a letra do Hino da Revolução Constitucionalista, de autoria de Octávio Médice:

Marchai Paulistas
Bandeirantes da nova cruzada!
Paulistas da terra de glória!
Erguei-vos pela Pátria sagrada,
Que o Brasil quer a nossa victória!

As falanges valentes, guerreiras,
De entusiasmo e ardor varonil,
Formarão destemidas Bandeiras
Para honra do nosso Brasil!

No horizonte brilha o sol
O sol da Lei e da Verdade;
E de São Paulo é o arrebol
De toda a nossa liberdade!

Piratininga! A tradição!
Dos nossos filhos corajosos
E a desejada salvação
Dos brasileiros bravos e gloriosos!

Marchai, Paulistas!
Fortes soldados da lei!
Marchai, altivos!;
Nosso Brasil defendei!

Bandeirantes de valor!
Vede o nosso céu de anil!
Vossos peitos e a altivez do nosso amor,
São trincheiras da vitória do Brasil!

Bandeirantes! Para a guerra!
Em defesa da nação!
A coragem que São Paulo encerra,
É de toda a nossa gente redenção!

Evocando os laivos épicos emanados da historiografia do bandeirismo, Médice construiu versos incitadores.

A letra desse Hino Marcial denota a postulação do legado ancestral de liderança dos paulistas, herdado dos sertanistas de Piratininga, revelando também a intenção de mesclar e confundir interesses grupais (no caso os de São Paulo) com interesses gerais (os da Nação7). A liderança hereditária por merecimento, bem como a generalização de interesses, segundo Volpato, foram as tônicas da instrumentalização política do bandeirante, efetivada no último decênio do século XIX pelos dirigentes cafeeiros, e robustecida, com incentivos financeiros, pelo governo paulista, nos anos vinte do século XX, como já vimos anteriormente. Mencionamos novamente essa manobra político/ideológica, pretendendo verificar sua eficácia no que diz respeito ao espraiamento da mitificação bandeirantista junto aos paulistas. A letra do hino Marchai Paulistas foi escrita em julho de 1932, época em que a obra de Taunay se avultava como a mais alentada dentre as produzidas na década anterior, quando dos incentivos pecuniários governamentais.

A historiografia do bandeirismo, unilateral e desbragadamente elogiosa no que tange ao sertanista piratiningano, parece ter logrado êxito nos seus intuitos, disseminando eficazmente nas instituições de ensino a construção mítico/heróico/épica dos habitantes das origens de São Paulo. A letra desse Hino Marcial Paulista, foi composta, portanto, num contexto em que inexistiam trabalhos ou obras que contrapunham a representação mítica da figura do bandeirante. Atentemo-nos para o fato de que o autor da letra de Marchai Paulistas era um professor, um educador, que no transcurso de sua própria formação escolar assimilara (e até muito bem, pelo conteúdo das quadras escritas) a conotação heroicizante do bandeirante.

Até mesmo a concepção imagética dos livros didáticos atuais apresenta o sertanista paulista como um homem alto, forte e viril, paramentado com chapéu de abas largas, botas altas, gibão acolchoado e mosquetão. A expansão territorial lhe é atribuída em primeira instância,
qualificando-o como responsável pelas dimensões geográficas do Brasil. O corajoso desbravador das matas é a figura primordial que se aloja no universo cognitivo dos educandos do ensino fundamental, desdobrando-se no senso comum, onde se reproduz em dimensões consideráveis. A reportagem publicada pela Revista Superinteressante (Abril/ 2000), aborda as bandeiras sob a ótica acadêmica atual. O texto publicado apresenta como referências John Manuel Monteiro e Sérgio Buarque de Holanda, enfocando os massacres de índios e missões jesuíticas, bem como o apresamento e tráfico dos negros da terra. A capa da revista exibe mestiç os maltrapilhos, encardidos e descalços, empunhando rústicas armas de fogo, encimados pelos dizeres: Bandeirantes, a verdadeira cara dos conquistadores8. Parece-nos óbvio que tal chamada de capa não seria necessária, caso o grande público tivesse conhecimento dessa configuração dos bandeirantes. Em outras palavras, a concepção dos bandeirantes como heróis agrestes e bem paramentados parece estar bem disseminada na sociedade brasileira.

Até o momento, nossas considerações visaram abordar o processo que lançou os bandeirantes à linha limítrofe que separa mitologia e história, transformando numa representação construída o homem comum de Piratininga. Na historiografia do bandeirantismo, a tênue linha que divide história e mito foi notadamente ultrapassada, causando ação deletéria nas intenções de compreensão do período colonial brasileiro. Oportuniza-se aqui observar o que escreveu Vilar: “... não negligenciemos o mito, porém certifiquemo-nos de que ele seja inserido numa evolução histórica mais concreta, que deve ser reconstituída.” (VILAR apud D’ALESSIO, 1998, p. 43)

Entendemos que negligenciar a aura mitológica que envolve o bandeirismo seria uma omissão de nossa parte, embora não seja necessariamente o fulcro de nosso objeto de estudo. Por esse motivo, detivemo-nos neste assunto até agora. Nossa intenção essencial foi desalojar o bandeirante de seu nicho de glória, onde se torna difícil lobrigar o ser humano convencional. Fomos movidos pelo cientificismo, uma vez que nossa postulação centra-se na atividade física proeminente do bandeirante-homem, não do bandeirante extra-humano, situado num patamar onde seus feitos são exaltados e glorificados, em detrimento de sua condição não extraordinária."

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Fonte:
MANUEL PACHECO NETO: "PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII". (Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História, Região e Identidades. Orientador: Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos). Dourados, MS, 2002.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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