O Cinema Novo e a busca romântica pelo homem brasileiro

t

"O fim da década 1950 e o início dos anos 1960 apresentam nos movimentos sócio-culturais o traço que Ridenti denominou de “romantismo revolucionário”. No Brasil, entre os eventos que provocaram, que impulsionaram essa perspectiva de Revolução entre nós ele destaca:

(
...) algumas marcadas pelo ideário socialista e pelo papel destacado dos trabalhadores do campo, com a Revolução Cubana de 1959, a luta de Independência da Argélia em 1962, além da antiimperialista em curso no Vietnã, lutas anti-coloniais da África (RIDENTI, 2000, p.33).

Nos países periféricos, no âmbito do desenvolvimento capitalista cresce a esperança na participação das massas na transformação social, na perspectiva de uma versão terceiro-mundista de movimentos revolucionários não alinhados com as políticas dos países capitalistas ocidentais, nem com o socialismo vigente no Oriente nos estados socialistas. Essa perspectiva é também revestida de certo romantismo e apoiada nas classes médias intelectualizadas, que se viam obrigadas a se tornar trabalhadores assalariados pelo efeito da acelerada mercantilização das sociedades contemporâneas (RIDENTI, 2000, p.35).

Segundo Ridenti, no Brasil, as exigências por melhorias nos setores sócio–econômicos feitas pelos trabalhadores rurais e urbanos desestruturam a sociedade, que já não se contenta com a direção política que emperra as reformas de base reivindicadas pelos setores populares que põe em xeque a estabilidade das instituições, o direito de propriedade e a coercitividade do Estado. A mobilização pelas reformas estruturais conta com marcante presença das esquerdas e com as lideranças trabalhistas e nacionalistas, formando uma corrente difusa, que se coloca como uma força para a superação do capitalismo e para a construção do “homem novo” enraizado nas tradições populares (RIDENTI, 2000, p.52-55).

A reação, no Brasil, ao processo de industrialização, urbanização, concentração de rendas, impostas pelo desenvolvimento capitalista, induz os trabalhadores e demais despossuídos a reivindicações que são incorporadas pelos programas de vários grupos de esquerdas e pelos artistas, que se sentem chamados a se tornarem porta-vozes dos setores sociais que buscam a transformação das condições sociais. Aí, também, Ridenti reconhece uma tendência romântica, pois esse movimento identifica o camponês como representante por excelência de todo o povo oprimido, visto como a genuína expressão e raiz do homem brasileiro e de seus valores. Ocorre a construção de uma identidade abrangente de todos os oprimidos que identifica o campo, local marcado pelo misticismo e pela violência, como o espaço onde se trava a luta libertária (p. 24-25).

No campo da produção cinematográfica os cineastas se dividiam quanto à proposição de uma cinematografia atrelada ao conteúdo nacionalista. Na década de 1960, duas vertentes se conflitavam acerca da proposta de industrialização do cinema nacional, estando o cerne da polêmica na questão da temática a ser desenvolvida: se deveria privilegiar um conteúdo nacional ou um conteúdo cosmopolita, alternativas que Ramos assim caracteriza:

Surge a contrapartida clara e bem demarcada entre uma tendência que se vinculava ao forte centro de irradiação do nacionalismo da época, atravessando a cultura e o cinema pelo binômio “desalienação-libertação nacional”, e a concepção que submetia o “nacional” a valores ditos universais, caracterizando uma postura “universalista-cosmopolita”
(RAMOS, 1983, p. 39).

Naquele contexto, porém, a reatualização da renovação estética da década de 1920 e da literatura social da década de 1930 é que se torna referência para o projeto político nacionalista, exacerba o discurso de uma “autenticidade” nacional, adotando, muitas vezes, uma postura paternalista frente à cultura popular que acaba por predominar no cinema e nas artes em geral.

O filme de Nelson Pereira dos Santos, fiel ao livro publicado em 1938, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, autor que se destacara na literatura dos anos 1930, mostra as características gerais dessa cinematografia, ou seja, o caráter de denúncia social e de correlação dos aspectos climáticos e geológicos com a organização opressora do poder e da produção. Por outro lado, introduz uma abordagem poética, dentro de um estilo de linguagem seco e rude, construindo personagens que, entregues ao próprio abandono, tangidos pela seca, não conseguem articular mais que meias palavras, pois se vêem como bichos, destituídos de sua humanidade, num primitivismo assustador e num imobilismo ditado pela seca e pelo ambiente de submissão e silêncio imposto, que os obrigam a um eterno retorno. Nesse ambiente os homens são incapazes de nomear as coisas e de argumentar ou defender-se diante da opressão dos coronéis, patrões cruéis e exploradores. A impossibilidade de comunicação provoca o isolamento e a solidão, aprofundando a escassez generalizada de palavras, de afetos e de recursos materiais que marca suas vidas, deixando-os à mercê de violenta forma de manipulação, através da coação, mas, sobretudo do controle do saber, privados da articulação das palavras que os libertariam, que lhe permitiria a argumentação, a comunicação de idéias. A família de Fabiano move-se em busca da sobrevivência, do domínio da palavra, da comunicação dos sonhos que possam dar sentido ao caminhar sob o sol escaldante, que, como sonha Sinhá Vitória, esse caminhar pode levar à cidade onde não há isolamento e onde os seus filhos poderão aprender as palavras (RAMOS, 1995).

É para destacar a questão agrária em discussão na década de 1960, segundo Célia Aparecida Ferreira Tolentino (2001), que Nelson Pereira dos Santos, através do processo de embrutecimento dos seus personagens, retoma a denúncia de Graciliano Ramos contra as condições socioeconômicas das décadas de 1930 e 1940, que se mantêm na exploração dos desfavorecidos. Os problemas dos retirantes, narrados por Graciliano, permitem trazer à tona o subdesenvolvimento do país, assim pensado por Nelson Pereira dos Santos, e por outros jovens críticos e cineastas que integraram o movimento cinemanovista. Célia Tolentino faz notar que, também nesse filme, a narrativa do drama dos retirantes e a descrição do sertão seco, marcado por relações de trabalho centradas na exploração e pela crescente concentração de terras, além do abuso de poder, fazem da seca e da escassez a representação da correlação entre a ausência de recursos materiais e a forma de poder instituído:

Subscrever os problemas do Nordeste brasileiro ao subdesenvolvimento é uma atitude comum para a época, assim como tomar a particularidade do capitalismo em versão brasileira particularidade do capitalismo por ausência. Isso incluía a dificuldade de entender a maior parte da miséria como resultado da forma específica que o uso da propriedade e da força de trabalho adquirem no Brasil desde a sua condição colonial
(TOLENTINO, 2001, p. 147) .

Esta visão do subdesenvolvimento era tida como uma característica do capitalismo no Brasil, por alguns cineastas que atribuíam a dependência econômica e a colonização cultural à falta do pleno desenvolvimento do capital nacional.

O livro Raízes da indústria da seca: o caso da Paraíba (1993), de Lúcia de Fátima Guerra Ferreira, permite-nos entender a relação da seca com o abuso de poder, aliada à perpetuação de formas arcaicas de produção. De acordo com a autora, o sistema oligárquico que controlava famílias e dependentes, detentor, também, do controle político, econômico e fundiário, permitia a continuação de uma situação que, desde a seca de 1877-1879, com seu cortejo de flagelos e concentração de retirantes, se tornou marco do discurso dos representantes políticos nordestinos que reivindicavam a liberação de verbas governamentais para obras contra a seca. Obras que seriam realizadas dentro das cercas dos grandes proprietários, e a serem empregadas em “frentes de trabalho” que se concretizavam, de fato, na utilização dos flagelados em trabalhos forçados, gerando-se assim uma prática política que alimenta os efeitos calamitosos da seca:

Na verdade a seca afeta toda a economia nordestina, atingindo pobres e ricos, embora com intensidades diferentes. Enquanto a lavoura de subsistência do pequeno agricultor é totalmente destruída pelas estiagens prolongadas, o grande proprietário, que depende do algodão e da pecuária, tem condições de minorar seus prejuízos. Isso ocorre não pelas características da cultura algodoeira, mas, também, porque as reservas d’água dos açudes particulares são destinadas prioritariamente para o gado e raramente para a população pobre, que fica sem água sequer para beber
(FERREIRA, 1993, p.127).

Nelson Pereira é comentado por Galvão, Bernardet, Ramos e Tolentino, que estudam a cinematografia das décadas de 1950, 1960 e 1970, a partir de diferentes perspectivas. Vinculada ao nacional e ao popular pelos dois primeiros autores, relacionada ao Estado pelo terceiro e, finalmente, relacionada ao rural pela última autora. Esses autores reforçam o traço da construção de uma imagem nordestina na obra fílmica Vidas Secas.

A caracterização da região nordestina como seca, com relações pré–capitalistas, técnicas rudimentares, que tornam a produção dependente dos ciclos da natureza, aparece muitas vezes na literatura e na cinematografia brasileira como denúncia das condições de subdesenvolvimento do país, da exploração e do abuso de poder dos coronéis, que utilizavam o fantasma da seca para transformar o trabalhador em agregado inteiramente dependente, sujeito a contas fraudulentas, à expulsão e à violência, impossibilitado de concretizar o mais simples dos sonhos.

No filme de Nelson Pereira dos Santos, os sonhos de Sinhá Vitória, que almeja escola e roçado próprio para seus filhos, não têm ressonância em Fabiano porque a escassez material passa a ser uma escassez de afeto e de comunicação. Além disso, na prática diária e com sua falta de saber que carece de maior capacidade de abstração, Fabiano diferenciava-se de sua mulher que sabia fazer contas com o auxílio de sementes. Isso impossibilitava o diálogo entre o casal, dificultando a ação transformadora dentro do universo local. A responsabilidade dessa ação é transferida pelo diretor para a sociedade que recebe o filme, porquanto esse é o papel atribuído à cinematografia com que Nelson Pereira dos Santos se identifica e que difunde propondo a representação do nacional, deslocada para a região nordestina, como um mundo arcaico que, embora rico em tradições culturais, ainda não está pronto para fazer as mudanças necessárias, mas chama os espectadores à consciência social.

O filme, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, produzido em 1963, também expressa a impossibilidade da transformação enquanto o povo não tomar conhecimento das formas simbólicas coercitivas que lhe são impostas pelos grupos detentores do poder.

Inicia-se com uma imagem feita do alto, como se do céu víssemos o vasto sertão, sem fronteira, uma imensidão de terra seca e com rala vegetação; depois, é enquadrada uma caveira de boi, reforçando a imagem-clichê sobre esse espaço, que teve como matriz, o início do filme Aruanda, retomado em Vidas Secas e, bem mais tarde, na abertura do filme A Canga (de Marcus Vilar, 2001). Todos têm o mesmo cenário precedendo a introdução das personagens em cena. Essa fotografia se constituirá na imagem fundante de um lugar que representa o relicário das raízes do povo brasileiro, marcando um estilo nacional que se contrapõe ao estilo imposto pelos filmes estrangeiros. O filme de Glauber se faz na década de 1960, momento marcado por intensa discussão política e estética na cinematografia que, segundo ele:

De Aruanda a Vidas Secas o Cinema Novo narrou, descreveu, discutiu, analisou, exercitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria
(ROCHA, 1981, p. 30).

Em seu filme, Glauber Rocha toma o messianismo e o cangaço como formas de rebeldia primitiva que apontavam para a possibilidade da transformação do conformismo, visível na figura do Fabiano de Vidas Secas, na conscientização política para a qual o diretor propõe-se a contribuir com sua obra fílmica.

A eloqüência e a música, neste filme, são opostas à falta de musicalidade e de diálogos do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Glauber Rocha utiliza a narrativa do cordel como uma de suas fontes; com esse instrumental introduz aspectos de linguagem próprios da cultura brasileira. Apropria-se desta forma da literatura popular para trazer uma história da literatura da década de 1930 de volta à cena, desta vez na tela do cinema e num contexto agitado por discussões sobre a reforma agrária e sobre os caminhos para um cinema autônomo e independente (TOLENTINO, 2001, p. 174-175).

A narrativa fílmica de Glauber representa a vida do vaqueiro Manuel que, vivendo numa miséria esmagadora decorrente de uma produção primitiva e de uma violência insuportável, é levado, num momento de desespero pela exploração sofrida, a matar o seu patrão. Manuel, assim, tornando-se consciente das humilhações e da exploração, rompe com a opressão e tenta recuperar um pouco de sua humanidade que era cotidianamente suprimida. É, então, obrigado a fugir para a caatinga com sua mulher, Rosa, e se junta ao bando de fanáticos seguidores do Santo Sebastião, um profeta messiânico, portador de um discurso que afirmava: “O mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar”, prometendo ao pobre riqueza, no reino de Deus, e pobreza para o rico, no inferno. Tal discurso remete aos milenarismos da tradição judaico-cristã, recuperados por Glauber Rocha por mexerem com o imaginário coletivo, em que a esperança de recuperação do Paraíso mobiliza os sonhos e permite suportar a dureza e a concretude da vida. Portanto, ao retratar uma sociedade injusta, esse cineasta se apropria do espírito profético, que propõe um mundo novo como instrumento de transformação, mas acaba por desmistificá-lo na cena final, em que mostra a corrida livre de Manuel pelo sertão que se transforma em mar revolto, revolucionário.

Eliade atribui ao mito do milenarismo uma função de otimismo que acalenta o sonho de um mundo melhor, cujo advento, porém, ocorreria após uma catástrofe purificadora.

Este mundo o Mundo da História é injusto, abominável, demoníaco; felizmente, ele está em vias de decomposição, as catástrofes já se iniciaram, este velho mundo já começa a fender-se de todos os lados: muito em breve ele será aniquilado, as forças das trevas serão definitivamente derrotadas, os “bons” triunfarão e o paraíso será recuperado. Todos os movimentos milenaristas escatológicos dão provas de otimismo
(ELIADE, 2000, p.64-65).

Após a morte de Sebastião, executado por Rosa, numa expressão de violento amor pelo marido e pelo desejo de libertá-lo da loucura imposta pelo Santo, o casal fugitivo e despossuído se sem outra escolha senão a de juntar-se ao bando de Corisco, apresentado como o cangaceiro de “duas cabeças”, debatendo-se entre o desejo de uma vingança pessoal e a possibilidade de uma ação mais ampla em defesa de um povo oprimido. Sem conseguir atinar com o sentido do derramamento de sangue, Manuel entrega-se cegamente a atos de brutalidade e sadismo sob o comando do cangaceiro.

Manuel, porém, sobrevive à catástrofe, o massacre dos fanáticos (“Deus”) e dos cangaceiros (“Diabo”), provocada por Antônio das Mortes. “Antônio das Mortes, matador de cangaceiros”, é personagem de consciência ambígua, pois se como jagunço que recebe dinheiro dos representantes do poder, mas percebe que suas vítimas não têm consciência da situação em que vivem: o contexto social que produz o cangaço e o messianismo. Assim, apesar de ver-se como jagunço, projeta-se também como aquele que liberta o povo dos mitos, permitindo, por seus atos, que o homem do povo se torne capaz de exercer seu papel na história porque “a terra é do homem, nem de Deus nem do Diabo”. Poupado do massacre, com sua mulher, como testemunhas dos atos de Antônio das Mortes, na cena final do filme Manuel sai em desabalada corrida pelo vasto sertão, não se detendo nem quando Rosa cai ao chão, e prossegue em movimento enquanto a superfície da terra sertaneja se transmuta em um mar revolto, símbolo da dinâmica da transformação revolucionária que o filme busca contemplar com a proposta de engajamento.

O filme, rico em imagens resultantes da análise social, econômica e política e da apreensão das formas de expressão do povo nordestino, torna-se uma contundente representação dos problemas do campo no Nordeste e no Brasil. A abordagem de Glauber Rocha, nesse filme, não se limita a uma visão maniqueísta, mas expõe as contradições de Manuel que, de vaqueiro, torna-se matador do patrão, depois seguidor do santo missionário e finalmente cangaceiro, em uma épica jornada, na qual a terra, que pertence ao homem, não a ‘Deus e nem ao Diabo, pode ser alcançada no percurso transformador e na agitação das convulsões sociais expressas nas imagens do mar revolto invadindo o sertão.

A linguagem nacional popular torna-se o objetivo a ser atingido pelos novos cineastas, preocupados com a realidade social. Assumem o homem brasileiro como foco e adotam uma técnica própria que rejeita o formalismo e os valores estrangeiros, valoriza a secura e o despojamento da fotografia direta para a aproximação da realidade. Essas posturas são coerentes com a preocupação fundamental dos cinemanovistas que viam como sua missão a mobilização da sociedade rumo à transformação revolucionária, o que parecia exigir que veiculassem nas suas narrativas fílmicas, uma representação unificada do país e do povo, deixando de lado as imensas diversidades. A fundação de uma nova nação pelo povo de uma região inóspita, que precisou ser valentemente desbravada, é a visão de resistência escolhida pelos cineastas, através da qual estabelecem sua identificação com os movimentos sociais.

O culto ao povo projeta a idéia de um herói mítico, transformador das condições sociais, herói esse significando todas as categorias de oprimidos catalisadas numa força revolucionária cuja identificação se através da posição de classe. Tal interpretação sociológica para a sociedade brasileira se traduz, nesses filmes, pela insistência em ações impulsivas, incontroláveis, perigosas e explosivas para descrever o Nordeste como lugar de representação do povo e da origem da nação. Esses conjuntos de traços, muito evidentes no Cinema Novo, permitem, sem dúvida, enquadrá-lo como expressão do “romantismo revolucionário”, como o faz Ridenti, com base no conceito formulado por Löwy e Sayre, para caracterizar o cinema brasileiro e outras criações artísticas da década de 1960 (RIDENTI, 2000, p.29-30). É, afinal, esse conjunto de traços que também nos faz reconhecer, no filme A Canga, ao qual voltaremos mais adiante, o personagem Zé como detentor da carga heróica do filme, como aquele que questiona o pater poder enquanto representação do mando dominador e da exploração.

O Nordeste, palco das Ligas Camponesas na década de 1950, inspirará a escolha da figura heróica do camponês como símbolo não apenas de uma classe, mas de um povo unificado e revolucionário, impregnado de poder sagrado, evocado para revigorar a concepção de uma identidade nacional que teria permanecido a mesma desde um passado que busca o imemorial e mítico. Trata-se de um processo semelhante ao que nos apresenta Hobsbawm nas suas discussões sobre o termo “tradição inventada”, que se aplica à busca de recriação de um passado para institucionalização de uma proposta nacional presente. Este autor faz notar que em certas situações, o passado elegido como sagrado nem sempre é tão longínquo, mas, no caso da construção da identidade nacional com base na transformação ou resistência de uma classe, articulam-se as velhas e unanimente reconhecidas imagens dos camponeses para compor a representação de um povo com virtudes de continuidade histórica, adequada às exigências do contexto presente (HOBSBAWM E RANGER, 1997, p. 9-10). Portanto, buscar uma origem do povo brasileiro é voltar ao “tempo forte”, mencionado por Eliade como tempo de origem, que permitirá, de certo modo, uma nova criação, uma nova nação, colocando-se, assim, nas mãos do povo mítico a missão revolucionária que o mundo moderno atribuía à ação de uma classe, de um partido ou de uma personalidade política. A “perfeição do princípio”, ligada à idéia da perfeição e da beatitude, e fundamentada no mito da origem, é projetada para o futuro atemporal, que restaura o estado “paradisíaco” inicial, idealizado como superação futura da atual situação cultural e socioeconômica (ELIADE, 2000, p. 52).

Podem-se reconhecer esses processos na identificação da nação brasileira buscada pelos cineastas do Cinema Novo em suas obras, com o intuito de levantar discussões sobre o caráter de dependência socioeconômica e cultural do país, essenciais às transformações que a sociedade brasileira requisitava, segundo a visão desse movimento cinematográfico. A necessidade de resgatar a representação de um povo originário de uma mesma nação, num tempo remoto, implica na eleição do homem simples do povo como depositário das características simbólicas deste povo primordial, articulando elementos do passado aos novos elementos para a construção da identidade nacional.

Fiéis à temática geral da nova tendência, focalizando o homem simples do povo brasileiro, os filmes Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, o documentárioAruanda de Linduarte Noronha e os curtas-metragens, Arraial do Cabo, de Paulo César Saraceni, e Um Dia na Rampa, de Luís Paulino dos Santos, que mostra um dia de trabalho na rampa do Mercado Modelo, em Salvador, são experiências incorporadas ao movimento denominado de Cinema Novo, cujos fundamentos, experimentos e propostas foram divulgados principalmente pelos cineastas Glauber Rocha, Gustavo Dahl e Claude Bernardet, dentre outros (ROCHA, 1981).

Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Eli Azevedo, Miguel Borges, Luiz Paulino, Gustavo Dahl, David Neves, Claude-Bernardet, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Carlos Diegues, Miguel Torres, Paulo César Saraceni, dentre outros, desde o princípio integraram o movimento do Cinema Novo. Inspiravam-se na literatura da década de 1930 e no movimento modernista da década de 1920, vanguardas da busca da verdadeira imagem do povo brasileiro em suas expressões sócio-culturais. Como definiu Gustavo Dahl, citado por Rocha:

Não queremos Eisenstein, Rosselini, Bergman, Felini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o de Humberto Mauro que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte
(ROCHA, 1981, p.17).

Concluindo, Glauber afirma:

No Brasil o cinema novo é uma questão de verdade e não de fotografismo. Para nós a câmara é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia, mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil! Isto é quase um manifesto
(ROCHA, 1981, p.17).

Para Galvão e Bernardet, o conceito de obra de autor do Cinema Novo é entendido como uma arte de contestação, de posição diante do mundo, na qual a relação entre o individual e o social configura uma linguagem específica do cinema brasileiro, muitas vezes condensada na expressão “uma idéia na cabeça e uma câmara na mão”, típica desse movimento cinematográfico. A “câmara na mão” indicando, por certo, “a maleabilidade e liberdade de utilização da câmara” e um estilo de filmagem, mas também um tipo de produção e uma temática centrada naquilo que os cinemanovistas consideravam as autênticas raízes brasileiras (1983, p.203).

As lutas sociais reais, que crescem no país no início da década de 1960, na cidade e no campo, aprofundam a disputa ideológica no campo artístico e cinematográfico, de acordo com a avaliação de Ramos.

Agudizam-se também as relações artístico-intelectuais/intelectual- sociedade, surgindo possibilidades de aliar o movimento cultural mais organicamente às perspectivas de transformações sociais. Penetramos numa época em que o ideário isebiano sofre redefinições, as “reformas de base” catalisando os embates políticos e particularmente para o campo artístico-cultural estávamos sobre forte influência do CPC. Uma “arte popular revolucionária” devia ser construída pelos “militantes da cultura popular” (ou “artistas revolucionários”) visando intensificar em cada indivíduo a sua consciência de pertencimento ao todo social, esta era a receita cepeciana, conferindo um papel bem determinado ao intelectual nas suas relações com o “popular”
( 1983, p. 41- 42).

A forma de abordagem do popular, quase sempre é direcionada por uma visão dicotômica e simplista, expondo, no seu discurso, as manifestações populares desprovidas de sua diversidade, e é marcada por uma postura paternalista e didática pretendendo direcionar as classes sociais populares para a missão de aglutinar numa unidade as insatisfações do conjunto da sociedade.

Ramos acredita que a cultura, assim concebida, é politizada por representar o discurso nacionalista, através da construção de uma narrativa cinematográfica que homogeneíza as diversidades regionais para produzir uma identidade nacional com base em supostas características específicas do povo brasileiro em geral. Ramos nos faz ver essa postura, através do encadeamento de uma série de expressões do cineasta Nelson Pereira dos Santos:

(...) a procura do “nosso ser cultural”, da ”autenticidade” e “raízes” “do homem brasileiro”, tudo encaminhado para a “independência cultural” e o rompimento da “colonização cultural” é algo louvável e um bom antídoto para posturas “etnocêntricas” e ações autoritárias, que podem dominar os intelectuais na sua relação com a cultura popular
(RAMOS,1983, p. 130-131)

Segundo Salles Gomes, citado por Galvão e Bernardet, a autenticidade do nacional e uma identidade cultural verdadeiramente brasileira são buscadas, mesmo pelos não nordestinos, no rural e no Nordeste porque aí teria resistido uma tradição que não fora ainda devorada pelo “progresso” (1983, p.119-120). A estilização artística da região provém, assim, de um fundo comum que compõe a imaginação coletiva e que torna essa construção ficcional verdadeira, ou verossímil, aos olhos do público (GOMES, 1980, p. 219-220). A literatura dos primeiros tempos republicanos já tinha inaugurado uma contemplação do mundo arcaico como representação do nacional com a obra de Euclides da Cunha que, ao longo dos anos, vai exercer uma forte influência sobre a imaginação artística brasileira, incorporando-se ao folclore, à literatura e às artes a representação das condições de vida da região mais pobre do país como elementos constitutivos de certas formas de heroísmo. Tal persistência da visão descortinada por Cunha expressaria, na sua essência, a aspiração por justiça e igualdade social presente nos brasileiros de todas as regiões que vêem, espelhadas nos sertões, a miséria que povoa também suas existências (CUNHA, 1982 , p. 47-101).

A imagem representativa do trabalho do homem do povo, de seu pensamento e sua imaginação será uma preocupação predominante do Cinema Novo. Hobsbawm (1997, p.9-10) sugere que, para formar uma cultura nacional que se expresse nas diversas formas culturais e artísticas, é necessária a construção mítica das origens da nação como representação cultural, dando-lhe um caráter imutável por meio de repetidas narrativas sobre um passado imemorial, situado num tempo mítico:

Em poucas palavras elas são reações a situações novas que assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. E o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social
(...) (HOBSBAWM, 1997,p.10).

O Nordeste, em algumas das obras de cineastas identificados com a proposta nacionalista, representa-se como o lugar dos ancestrais, situado num tempo remoto que demora a passar e no qual as relações e as práticas sociais se cristalizaram através da manutenção das tradições. A seca era retratada através de uma imagem estável e unívoca do lugar (o sertão) que deveria suscitar o sentimento de pertença para nordestinos e brasileiros, estendendo-se para o espaço nacional. Estas reflexões, referentes às imagens do Nordeste vinculadas à seca, apoiam-se nas concepções de Chartier que vê as representações como “instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma ‘imagem’ capaz do reconhecimento em memória e de figurar tal como ele é”, ou como pensamos que é (CHARTIER, 1990, p. 20).

No caso da representação do Nordeste nas obras analisadas, o privilegiamento das imagens da seca à custa da ocultação de suas florestas luxuriantes, de fato coloridas de verde, amarelo, roxo e atravessadas por córregos d’águas − ajusta o lugar à representação escolhida para dar crédito e valor à criação da diferença ou à exploração de diferenças preexistentes. É a partir de uma imagem contínua um Nordeste de ponta a ponta esturricado pelo sol, ao longo de um tempo sem fim – que ocorre a forma de hábitos e práticas que determinam limites e posições sociais, fazem e desfazem os grupos sociais. A veiculação dessa imagem, constante nos discursos regionalistas da classe dominante, bem como nos próprios textos literários e cinematográficos e outros ainda, que com a intenção de denúncia e crítica dessa mesma classe dominante, como que obriga os nordestinos a serem o que se diz que eles são.

Após o golpe de 1964, as intenções cinemanovistas podem ser muito bem compreendidas pelo manifesto de Glauber Rocha, Eztetyka da fome, que defende a idéia de que as imagens da fome, da miséria e da seca são capazes de fazer com que a obra cinematográfica e os cineastas intervenham efetivamente na realidade social, conscientizando o espectador para a necessidade de transformação tanto da própria arte quanto da sociedade. Muitos artistas, através de suas abordagens sociológicas, procuravam mostrar a atuação política do sujeito na sociedade com uma postura que mobilizava os interesses do grupo com o qual se identificava.

A reivindicação da autonomização cultural, numa perspectiva nacionalista frente ao produto estrangeiro, foi uma das principais bandeiras erguidas pelos cineastas liderados por Glauber Rocha, o mais eloqüente porta-voz do cinemanovismo, que não hesita em defender uma estética da violência. Glauber afirma que a violência é definidora, instrumento de alerta e de luta contra a exploração do colonizador produtora da miséria e da fome, traços escolhidos como identificadores do povo nordestino e brasileiro. Na medida em que setores sociais ligados ao poder rejeitam aquilo que chamavam de “miserabilismo” do Cinema Novo, reforça-se nesse movimento artístico e político a tendência à denúncia social. O cinema, segundo Glauber, deve expressar a violência da fome como símbolo, numa forma dramática de enfrentamento da exploração e de desmascaramento dos padrões políticos e estéticos da elite, numa estratégia de provocação ou de testemunho. Segundo Glauber, a inquietação causada pela exibição da violência é indispensável à conscientização da sociedade e o único caminho para que o faminto se faça ouvir: “Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida (...)” (ROCHA, 1981, p.31-32).

Alguns filmes introduzem, explicitamente, a fome na cinematografia com suas personagens sujas e famélicas em busca de meios para sobreviver. É o caso, por exemplo, do documentário Aruanda, marco da introdução desse traço na cinematografia, e de Vidas Secas, que mostra a família de Fabiano fugindo da seca e da miséria, em condições subumanas. Porém, a fome e a escassez são, sobretudo, instrumentos de denúncia da exploração, da concentração de terras e da violência exercida pelos poderosos ou representantes do poder. O recurso à violência simbólica aparece mesmo nos seus representantes subalternos, como o “soldado amarelo” de Vidas Secas, impondo sua autoridade por meio de uma mentira cultural, não permitindo a Fabiano rebelar-se. Ao afirmar “governo é governo”, o “soldado amarelo” coloca-se como representante de uma força que está acima da compreensão do retirante e à qual só lhe resta submeter-se e esquecer, em seu mudo sofrimento, a fome de justiça e respeito. Trata-se do retrato da violência que, segundo alguns críticos e cineastas, reflete a situação do país, preso pelas amarras coloniais e dependente de interesses internacionais. Essa filmografia, ao denunciar as condições do subdesenvolvimento, aponta a própria dependência do cinema brasileiro, como sugere Gomes:

Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento. (...) O filme brasileiro primitivo (...) na procura de subsistência, tornou-se um marginal, um pária numa situação que lembra a do ocupado, cuja imagem refletiu com freqüência nos anos vinte, provocando repulsa ou espanto
(GOMES, 1980, p. 85 e 89).

No filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, a violência é a manifestação cultural da condição de miserabilidade que Glauber atribuía às áreas que sofreram um cruel processo de colonização. A violência é, nesse contexto, um instrumento revolucionário para a conscientização, pois mina as estruturas da dominação quando expõe, sem maquiagem, a fome, a sujeira, a miséria e, conseqüentemente, a loucura. É, também, a violência dos castigos impostos pelo Santo Sebastião às prostitutas e pelos sacrifícios exigidos aos seus seguidores, chegando ao extremo de sacrificar uma vida humana para a purificação das almas que se expressam nos condenados à fome. A violência do cangaço, com requintes de sadismo, nas intensas e incômodas cenas de castração e de esfolamento, é alerta para o horror e para a explosão que a brutal fome e a desumanidade podem produzir.

O
discurso proferido pelo Cinema Novo, defendendo uma linguagem cinematográfica própria, combatia a sujeição ao padrão externo, principalmente ao norte-americano. Apesar desses cineastas afirmarem as especificidades da representação da miséria da/na cinematografia brasileira, não negam influência recebida da obra do cineasta russo Eisenstein, em que forças sociais se confrontam sem que apareça, geralmente, o herói individual, mas sim a exaltação dos movimentos revolucionários. Essa influência pode ser reconhecida também nos cortes rápidos, efeitos de aceleração e utilização de primeiros planos e iluminação fortemente contrastada, que segundo Vanoey e Galiot-Lété são características da cinematografia de Eisenstein (1994, p.29). Essa abordagem é visível nas obras de Glauber Rocha, principalmente, em Deus e o Diabo e Terra em Transe, ao lado de outras influências do cinema europeu, como o neo-realismo italiano, e a nouvelle vague francesa.

O cinema brasileiro era parte de um contexto mais amplo e as influências estrangeiras não poderiam ser evitadas nem desprezadas, pois estimulavam e tornavam fecundas as obras dos cinemanovistas, sempre em busca de alternativas para a formulação de estilos que afirmassem a cinematografia nacional, em diálogo com as outras cinematografias, principalmente as vanguardistas que buscavam alternativas ao modelo hollywoodiano.

O orgulho de ser brasileiro, na época em que o Brasil vivia uma efervescência cultural, realçada pela premiação de O Pagador de Promessas, em Cannes (1962), é frustrado com a vitória do golpe militar de 1964, fim do sonho de um Brasil revolucionário. O governo militar, após a edição do Ato Institucional Nº5 (AI-5), de 1968, acentua as suas posições antidemocráticas que têm um impacto terrível sobre a produção cinematográfica brasileira ao defender os interesses estrangeiros e ao esvaziar, através da censura, a sua conotação política (RIDENTI, 2000, p.37-40). A nação é submetida a um discurso unificador autoritário, ditado por um poder coercitivo que sufoca qualquer tentativa de construção de representações que questionem a legitimidade dessa identidade imposta."

---
Fonte:
ROSSANA DE SOUSA SORRENTINO LIANZA: "CINEMA E HISTÓRIA: UMA IMAGEM DO NORDESTE". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de Ciência Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba UFPB, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica. Orientadora: REGINA MARIA RODRIGUES BEHAR). João Pessoa, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!