Graciliano Ramos: o ontem sem descanso


O Romancista só pode escrever bem
o seu tempo e o seu meio. Eu só sinto o mandacaru.
Graciliano Ramos

"Poderia começar esse tópico trançando, ou melhor, copiando uma fácil listagem de fatos, nomes e datas que compõem o tempo de Graciliano Ramos e que traria aquela impressão de biografia que sugere credibilidade. Ora, biografias excelentes já foram feitas sobre o “Velho” e me contento com elas. Para o meu propósito aqui, prefiro começar assim: “falo somente o que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca.” 41 As palavras do escritor são poucas e afiadas. As letras têm o gume das lâminas impiedosas e nos sopram um hálito sinceramente pessimista – apesar de seu dono negar, ás vezes. Como descreve Otto Maria Carpeaux, “...é muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não é essencial, as descrições pitorescas, o lugar comum das frases-feitas, a eloquência tendenciosa.”

Já se tornou lugar comum classificar a prosa graciliânica de seca, econômica, faminta, pessimista, mas são características que não podem simplesmente ser esquecidas porque foram exaustivamente especuladas. Compreender o tempo graciliânico através de suas obras é observar o debater de conteúdo-forma com a sua época. A obra luta não só para dizer que seu mundo é assim, a maior luta da obra é entrar, estar no mundo, e nele sobreviver. Quando em
Memórias do Cárcere Graciliano relata o encontro com seus dois primeiros romances – Caetés (1933) e São Bernardo (1934) – que estão sendo lidos pelo russo Sérgio, seu colega de cela, o fá-lo assim:

“...Com um estremecimento de repugnância, vi Sérgio embrenhado na leitura do meu primeiro romance.
– Pelo amor de Deus não leia isso. É uma porcaria. Ingênuo tentei explicar-lhe em grande embaraço. A publicação daquilo fora consequência de uma leviandade.”
(...)
Uma vez encontreio-o agarrado ao meu segundo romance. Virou a folha, avizinhei-me, entrei a rever pedaços da minha terra. Ia chegando ao fim da página esquerda e o moço voltou a folha de novo.
Não é possível que você tenha lido essas duas páginas, afirmei.
– Porquê?
– O autor dessas drogas sou eu, e apenas li uma vez.”

Grosseira mentira sempre sustentada em público. Graciliano estava constantemente em combate com sua própria obra e o remexer constante no texto revelava a busca de uma perfeição. Mas não podia ele ser um militante da vaidade artística. No íntimo, em cartas a Heloísa – sua segunda esposa – a conversa era outra:
“O S. Bernardo está muito transformado, Ló. Seu Paulo Honório, magnífico, você vai ver.”

O mesmo pode ser dito em relação a
Vidas Secas. Em texto publicado em 1943 – numa espécie de resumo de sua trajetória – o comentário que faz sobre a saga de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cadela Baleia é este: “Mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo, agora. Aqui fiz o meu último livro, história mesquinha – um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos.” Novamente é em carta, de 1937, também a Heloísa, que a oposição entre a opinião em público e a privada e a diferença entre a auto-crítica no calor da hora e a esfriada pelo passar dos anos se estabelece:

Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás.”

De história mesquinha,
Vidas Secas passa a ser o olhar sobre o desejo dos homens, inclusive do autor que vê em suas convicções políticas uma fonte para a realização na terra, em vida, daquilo que padre Zé Leite só espera que venha depois da morte – sei que a temporalidade está invertida, mas a questão é: não importava a máscara que o escritor usasse para confrontar-se com seus escritos, eles são seu maior manifesto. E mais, Baleia é a figura da renúncia, da eterna espera que caracteriza os homens que não fazem o seu caminho, que enxergam “preás” gordos somente em sonhos, com a morte, é a metáfora que alerta a utopia. Anos depois, a crítica apontaria Baleia como um dos personagens mais humanos da literatura graciliânica. Aliás, no caso do escritor alagoano, a crítica foi uma das responsáveis por sua incursão na literatura. É que Graciliano, antes de todos esses romances até agora citados, ficara famoso como literato sem ter lançado um livro sequer. O estranho cartão de visitas para o mundo da literatura fora uma coletânea dos relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios-AL, Graciliano Ramos, ao então governador Álvaro Paes, entre 1928 e 1930.

Chamo
Os Relatórios de estranho cartão de visitas, porque a crítica, os jornais, os intelectuais em geral enxergaram neles verdadeiras peças literárias camufladas na burocracia de relatos administrativos e cifras de réis. O que mais me interessa, no entanto, é o painel político e a estrutura social que Os Relatórios apresentam. Neles, o olhar severo, e ao mesmo tempo cuidadoso, escrutinador, que lança à sociedade, mostra um prefeito diferente, que os jornais da época alcunham de “revolucionário” – claro, com os arrodeios que o termo exigia na época:

O Sr. Graciliano Ramos tem se revelado na administração de seu município um verdadeiro revolucionário, mas um revolucionário na independência de ação em benefício de sua terra.
O relatório de seus primeiros atos ao assumir o cargo de Prefeito de Palmeiras dos Índios, vazado em moldes humorísticos, demonstra o vigor de sua atuação. O afastamento de funcionários sem idéia do bem público e falhos no cumprimento de seus deveres foi o seu primeiro ato. Depois vieram os outros: construção de estradas de rodagem, limpeza de cidade, higiene, uma grande série de serviços, enfim, que o recomenda à gratidão de seus munícipes.”

Mas é a partir das palavras do próprio prefeito que elenco alguns pontos para a discussão em torno do processo de elaboração de
São Bernardo e Vidas Secas enquanto isso, elas servem também como pretexto para pitadas essenciais de biografia e contextualização.

Dentre elas, citemos umas que mostram a prática do patrimonialismo:

“Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do
município tinha sua administração particular, com Prefeitos coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos do Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.”

E levou, ou melhor, atiraram, mas o tiro não atingiu o alvo. No carro, em Palmeira dos Índios, passando por estradas que cortavam propriedades rurais, na volta de um passeio, estavam Graciliano, Heloísa – grávida do primeiro filho – e o motorista do carro. Dois homens os emboscaram, atiraram. O motorista sacou da arma e respondeu ao ataque. Graciliano correu atrás de um deles, conseguindo pegá-lo. O outro fugiu. O atirador não confessava quem dera a ordem para matar o prefeito. E Graciliano, após alguns dias acompanhando o interrogatório movido a safanões, mandou-o embora:

“Mas antes avisei:
– Escuta aqui. Você é de Pernambuco?
– Não sou de lugar nenhum.
– Está bem. Mas, se for, não volte. Não cruze a fronteira. Se voltar é um homem morto. Entendeu?”

Mas Graciliano não era um líder local. Aliás, não tinha nem a índole de político, apesar de ainda vir ser candidato a Deputado Federal pelo Partido Comunista, no período de sua legalidade entre 1945-47, e participar de campanhas pró-Assembléia Constituinte livremente eleita. Mas a carta que manda para seus conterrâneos a fim de pedir-lhes votos é por demais curiosa e revela uma certa ausência de iniciativa, de tato para a vida política. Na carta as linhas falam: sou candidato a deputado, mas deixem-me como escritor.

Mas voltemos ao atentado que Graciliano sofre, à insatisfação gerada por sua “revolucionária” administração e, agora, à construção de
São Bernardo. Essa relação nada amistosa que tivera com os coronéis que queriam ser prefeitos ou mesmo com fazendeiros que não queriam ser “perturbados” pela administração ajudara Graciliano a compor – dois anos após sua renúncia do cargo de prefeito, ou seja, 1932 – o universo de São Bernardo e as relações que Paulo Honório, protagonista do romance, mantinha. Na imprensa local, em Viçosa-AL, era o Azevedo Gondim redator e revisor da revista local Cruzeiro. Gondim era amigo próximo a Paulo Honório e muitas vezes punha a Cruzeiro a serviço do latifundiário. com a imprensa da Capital, a relação ficou arranhada quando o Costa Brito, editor da Gazeta, publicara notícia insinuando que Paulo Honório havia matado seu vizinho e rival em questão de terras, o Mendonça. A notícia foi a público porque Paulo Honório não mandara a quantia que o Costa Brito tentara lhe extorquir. Com o governo local Pereira a relação era de troca de favores, apoio político nas eleições com votos de cabresto; já com o governo Estadual a relação dava-se também por garantia de curral eleitoral, empréstimos e benfeitorias públicas que o fazendeiro deveria fazer, associando sua iniciativa ao nome do governador. Com a lei o juiz, Dr. Magalhães – a relação era de favores envolvendo questões de terra e vistas grossas, não enxergando “pequenos” delitos, “pequenas violências”. Nesses casos, aparecia a figura eficiente do advogado – João Nogueira. Todos esses personagens que compõem a trama de São Bernardo são figuras que fazem parte dos jogos políticos e das relações sociais no período da nebulosa fronteira que separa a Velha da Nova República. O romance e, mais precisamente, Paulo Honório são frutos do olhar que Graciliano lança à sua época e terra, percebendo as contradições por que passa o país e como o Nordeste está nascendo nesse meio (,) confuso.

Como dito antes, Graciliano não era líder local – sua renúncia no início de 1930, por questões tanto pessoais como pelo quadro político que se desenhava, tal fato revela que sua intenção não era a de um carreirista. Não operava através do mandonismo clássico ou acordos com a coronelada. Nas suas próprias palavras, a campanha que sofrera fora da prefeitura, estava carregada de bílis.

Aparentemente, Graciliano descontentava porque não fazia o jogo de favores envolvendo o poder local e o poder privado dos fazendeiros. E completa em outro momento de seus relatórios, num tom de desabafo, o fardo que é administrar uma cidade encravada em vícios seculares:

“Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável, quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras do caminho.
Perdi vários amigos, ou indivíduos que possa ter semelhante nome.
Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos.
O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres diabos sem proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou em falta destes, à Divina Providência.”

Do relatório, podemos extrair ainda a passagem que fala sobre a agricultura e a relação de pequenos e grandes proprietários rurais.

“Favoreci a agricultura, livrando-as dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais; exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor.
Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.
Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma solução heróica: encomendava-se a Deus e ia à capital. E os Prefeitos achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretário do Interior, por intermédio da polícia.”

Nesse caso, a saga de Fabiano e sua família, retirantes que vagam
fazenda a outra, de um patrão a outro, bem como a saga de Paulo Honório na tentativa de trazer os seus sob suas rédeas e sugar-lhes, ambas sagas já eram, de certo modo, apontadas nos relatórios. O contato que o autor alagoano tivera com essas gentes possibilitaram a feitura de suas personagens:

“Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que eu penso, mas talvez me engane. É possível que eles não sejam, senão, pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam.”

As experiências com as diversas faces do poder autorizam Graciliano a falar do seu meio e do seu tempo de forma que o escritor sempre pôde escrever – aos moldes do Zaratrusta de Nietzsche – com o próprio sangue. E é a partir de
Infância e Memória do Cárcere mais do primeiro do que do segundo, creio que podemos ver esse sangue escorrer nas páginas do escritor, as quais oprimem não as letras que a elas se prendem de modo ajustado, rígido (forma), mas a sua mensagem que não fala de outra coisa que não seja o embate entre homens que querem prender e homens que precisam, e nem sempre conseguem, fugir (conteúdo).

O autor alagoano tem sua vida e sua obra marcadas pelo controle, pela disciplina e pela punição. Sua infância está repleta de episódios que traduzem várias situações que mais tarde irá pôr em suas obras de ficção. Os castigos para aprender a ler e a punição sumária sofrida por delitos não cometidos, bem como a sequidão dos pais ou a ausência de comunicação entre os membros da
família, esses acontecimentos irão formar o conceito de justiça que estará a conviver com ele durante toda sua vida.

Em
Infância, são esses os episódios escolhidos para compor a maioria do corpo da obra, é o que escolhe o autor, é o que ele quer mostrar, deixar registrado. Em Memórias do Cárcere, aquele conceito de justiça que abraça os homens de seu tempo está presente em toda obra. Graciliano, de certo modo, volta até sua infância e revê a dificuldade do homem em transitar no seu meio. Nessas memórias, o cárcere toma a forma metafórica da fazenda e o carcereiro é a figura – cercada de todos os símbolos – do pai.

Mas se nos atermos a
Infância, e acho que é suficiente, veremos o autor tentando resolver – não suprimir – as lembranças do seu passado. São Bernardo, Angústia, Vidas Secas, todas essas obras haviam sido formas de se entender com as lembranças de seu passado mais remoto, num exercício de reversibilidade entre mundo vivido e o mundo do presente, pois o escritor sabia da impossibilidade de contar e de lembrar o passado tal qual foi. Quando lança seu primeiro romance dito autobiográfico, Graciliano o faz sobre a base já arquitetada nos seus romances de ficção que, de algum modo, já continha o caráter autobiográfico. Em contrapartida, o presente, como também quer Benjamim, deve ser o fator principal da lembrança. Esse passado sem descanso a serviço do presente é o combate no hoje de mesmas batalhas injustamente perdidas por ele, tanto no passado como ainda no presente, e também por aqueles que ele vê sofrer ou sabe que sofre. Desse modo temos uma criança triste às voltas com a incompreensão do mundo:

“As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas
e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.”

O trecho acima é do caso do cinturão do pai que estava perdido e cuja
culpa recai sobre o menino Graciliano que repousava atrás dos caixões de mantimentos – seu costume. O narrador conta que fora arrancado do esconderijo após o pai acordar, enfurecido, à cata do cinturão. Não havia ninguém por perto e a ira é toda canalizada no menino.

“Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil
explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.”

Utilizando o vocabulário graciliânico, vemos outros pares de “brutos” se
reproduzindo em combates injustos. Essa dupla se repete em São Bernardo, quando Paulo Honório demonstra seu poder a Marciano, empregado da fazenda. O estopim para a fúria – assim como fora o sumiço do cinturão de seu Sebastião Ramos –, um detalhe: cochos vazios do gado que, segundo Paulo Honório, também o narrador, aquele que recorda movido pelo presente, geraram ofensa, desrespeito:

– Já para as suas obrigações, safado.
Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano perfilando-se.
– Acabou nada.
– Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que nos alumia.
– Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira.
Marciano teve um rompante:
– Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém agüenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo.
– Você está se fazendo de besta, seu corno?
Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue.”

Batia porque podia bater, e isto era natural. O menino frente ao pai:
devendo-lhe a vida, a comida, o vestir, um teto... O empregado frente ao patrão: temendo-lhe a retirada da vida, da comida, do vestir, do teto... O poder que Graciliano pinta nas relações de seu tempo é um poder total, com sendas milimétricas que rumam confusas e sem garantias para a liberdade. Por exemplo, no caso específico de Paulo Honório, quando num rompante de ira, ofendido, chama a Marciano de “corno”, usa a expressão não somente como insulto. Está-lhe dizendo a verdade. Anuncia sua condição de mandado em todos os sentido possíveis, pois a Rosa, esposa de Marciano, há muito, desde que Paulo Honório adquirira a São Bernardo, vinha-lhe servindo além das obrigações de doméstica e a situação era, aparentemente, sabida por todos. Em comentário que faz sobre Marciano, páginas antes do incidente, o elogia assim:

“Todos esses malucos dormem demais, falam à toa.
/ Marciano, coitado, nem por isso. Cuida bem do gado, é marido da Rosa.”

Outro par de “brutos”: Fabiano e o soldado amarelo. Na cidade, na
venda de seu Inácio, bebendo cachaça, o primeiro entra num jogo de trinta-e-um a convite do segundo. Fabiano começa a perder o dinheiro que era para a compra do querosene e sai apressado, sem se despedir de ninguém. O policial, que também vinha perdendo, se sente ofendido e vai atrás. Debaixo do Jatobá da praça, o encontro. Bem menor que Fabiano, o franzino soldado o encara reclamando respeito. (Façamos uma pausa. Há aqui uma inversão no que se refere ao porte físico, pois enquanto a relação Davi-Golias se estabelece entre o menino Graciliano e seu Sebastião Ramos e entre Marciano e Paulo Honório, no caso de Fabiano com o soldado amarelo, essa relação ao mesmo tempo se inverte e se transforma numa metáfora que confirma o caso bíblico. Se o soldado amarelo é como o pequeno Davi e Fabiano como o gigante Golias, Deus – leia-se governo – está do lado do primeiro, confere-lhe a autoridade, guia os movimentos de sua funda, aliás, dispensa-lhe o uso de funda. No lugar desta lhe dá uma farda e um apito.) Fabiano diz que o soldado só quer confusão, que, assim como ele, também estava perdendo e não tinha culpa disso. O soldado pisa-lhe com força o pé:

“– Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto.
Veja que mole e quente é pé de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.
Toca pra frente, berrou o cabo. Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. [Onde estava o cinturão] Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando:
Hum! hum!”

Fabiano fica lá, confuso, pensando no que acontecera e por que acontecera. Não encontra resposta. Não sabe por que os outros homens faziam isso com ele, que tinha tão pouco e era tão pouca coisa. Cercado de portas e janelas fechadas e um teto enegrecido, o menino Graciliano é conduzido ao meio da sala por uma mão peluda que logo em seguida manobra uma folha de couro que lhe fustiga as costas. Assim como fora para Fabiano e Marciano, “uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro.”

Mais tarde, em 1936, Graciliano iria ser menino de novo nos porões do Manaus – navio que levou presos da polícia política de Getúlio Vargas – saindo de Maceió rumo à prisão no Rio de Janeiro.

A relação de Graciliano Ramos com suas personagens já foi interpretada de várias maneiras. Para alguns críticos, o autor é uma espécie de sádico que maltrata suas personagens, não lhes tem carinho e não os poupa dos infortúnios da vida. Para outros – bebendo em Lukács – o escritor soube observar os seus redores e as suas dores, a fim de compor romances de análise social a partir de ‘personagens-problemas’ ou ‘heróis problemáticos’.

lista de diagnósticos se estenderia demasiado e seria bastante diversa. Abarcaria um Wilson Martins, um Alfredo Bosi, um Helmut Feldman, uma Flora Süssukind, um Wander Mel o Miranda, um Antonio Candido, dentre outros. Todos eles se puseram a analisar a importância da obra de Graciliano. Se não figuraram mais fortemente neste momento do trabalho, é porque eu não queria alongar-me demais, pois já que suas análises serão úteis em pontos mais específicos que virão a seguir. Mas o ponto a que se pode chegar nessa relação de Graciliano com suas personagens é o da espera (ou esperança) de um futuro que se resolva a partir da ruína, da tristeza que foi o passado. O presente, como sempre, se dissolve entre as duas polaridades da vida. É, no máximo, o momento da triste reflexão com base nas lembranças e marcas daquilo que era bom, ou se achava bom, e passou, e do que não era bom e continuou. A sensação de futuro a se construir, a se desejar, a se esperar, a se enfrentar, deixada nas últimas páginas de São Bernardo e Vidas Secas, tal sentimento denuncia essa insatisfação com o passado distante e com o passado recente que desembocaram em presentes medíocres. Se assim não fosse, o futuro não precisaria ser lembrado. Graciliano usa a ficção para preencher as lacunas que seus relatórios de prefeito ou seus livros autobiográficos não conseguiriam ou não poderiam preencher, porque neles há a aura da observação precisa, cerca-os a atmosfera de documentação, apruma-lhes a conduta a sensação de compromisso com a verdade, impera a mecânica da comprovação. Neles, Graciliano não pode desejar; nos outros o faz discretamente – é o espaço mais fecundo para seu realismo – mas o faz.

Para concluir este tópico, mostro o diagnóstico que Graciliano, em um discurso de homenagem ao seu qüinquagésimo aniversário, faz de sua própria obra:

É
preciso descobrirmos um motivo para esta reunião.
Penso, meus senhores e amigos, que a devemos à existência de algumas figuras responsáveis pelos meus livros – Paulo Honório, Luiz da Silva, Fabiano. Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos, porque não sou Paulo Honório, não sou Luiz da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os recursos duma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso, aqui me reduzo à condição de aparelho registrador – e nisso não há mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes que povoam a terra.”

O estilo sempre “pessimista”, sobretudo quando o assunto é ele mesmo, não muda. O seu passado, exaustivamente solicitado, aqui também não tem descanso. E as personagens que habitaram sua vida (ficcional?) também são chamadas. Graciliano no seu hoje olha mais uma vez para trás, mas não precisa apurar muito a vista. Seu passado está pertinho, não passou, não descansou e mais uma vez ao associar seu nome ao de Paulo Honório, Fabiano e Luiz da Silva, o escritor transforma-se em personagem de sua própria obra e transforma suas personagens em seres de sua própria vida. Ficção e realidade não se confundem, apenas se irmanam na tentativa de compreender o tempo e mostrar o homem necessitado de mudança, de melhora."


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Fonte:
Francisco Fabiano de Freitas Mendes: "Ponto de Fuga: Tempo, Fome, Fala e Poder em ‘Vidas Secas’ e ‘São Bernardo’. (Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de mestre em História Social à Comissão Julgadora da Universidade Federal do Ceará, sob a orientação da Profª Drª Ivone Cordeiro Barbosa). Fortaleza, Março, 2004.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponivelmente digitalmente em : Domínio Público

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