O pensamento de Jung



“No mundo contemporâneo, atribulado, numa época em que a racionalidade impera absoluta, pode ser intrigante que um trabalho educativo seja pautado por questões que se proponham a conduzir os sujeitos a estados nos quais a fantasia e a imaginação sejam dominantes, como é o caso da utilização das vivências estéticas baseadas nos mitos, rituais e histórias. No caso da arte, não poderia se optar pelo contrário, levando em conta simplesmente as questões da razão. O contato com aquilo que não se explica logicamente apenas é um importante desencadeador de processos capazes de transformações e elevação de consciência das pessoas.

Por confiar nisso, conduzi as oficinas com base na construção ritualística e utilizei as histórias e mitos para configurar as vivências. Todas essas questões encontraram no trabalho de Jung um respeitável suporte. Assim, não poderia deixar de fazer um breve “passeio” pelo pensamento desse estudioso, que introduziu importantes conceitos na esfera da psicologia e cuja linha teórica será um guia deste trabalho.

A arte como atividade psicológica foi efetivamente analisada a partir de Freud, mas foi Jung (2003) quem a estudou como impulsionadora da atividade terapêutica. Freud, com seu método reducionista, restringia a arte reportando-a a infância e aproximando-a dos núcleos neuróticos. Seu método baseia-se na suposição de que existem conteúdos psíquicos, normalmente de caráter moral e negativo, que ficam reprimidos no inconsciente. A psicologia analítica, fundamentada por Jung, de outro lado, analisou a arte sem compara-la com aspectos doentios e considerou a expressão artística como um importante método para a liberação dos conteúdos inconscientes, os arquétipos, portanto um fator auxiliar no processo terapêutico (ABBAGNANO, 2003).

A evidência de que o inconsciente age, em muitos casos, como inspirador do artista ao concretizar sua obra, podendo ser, inclusive, seu único inspirador, pautou o pensamento de Jung. Dessa forma, o inconsciente pode se manifestar na obra, de modo que a própria mente consciente acompanhe o processo com espanto. Isso comprova o preceito junguiano de que o consciente é influenciado pelo inconsciente e, em algumas situações, pode ser dirigido por ele. Como afirma Hauser (1994), “não é apenas a razão que guia os nossos atos, pois além dela, operam, em nosso inconsciente, fatores que para lá foram empurrados porque os consideramos inconvenientes em nossa vida tão racional e organizada”. (p. 15). Quando nos deixamos guiar pelo inconsciente ao criarmos uma representação artística, quase sempre expressamos conteúdos arquetípicos, ao contrário do que pensava Freud acerca da mera representação de conteúdos neuróticos e reprimidos.

Outra questão na qual o pensamento de Jung (2003) se diferencia do de Freud é que este considera o inconsciente como de natureza exclusivamente pessoal, ao passo que aquele, embora admita o inconsciente pessoal, afirma que ele repousa sobre uma camada mais profunda, inata, que chamou de “inconsciente coletivo”. A natureza do inconsciente coletivo é universal; ele não deve sua existência à experiência individual, mas à hereditariedade, não sendo, portanto, uma aquisição do indivíduo.

Postula Jung (2003) que o inconsciente coletivo possui conteúdos que são os mesmos em todas as partes e para todas as pessoas, constituindo um “substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo”. (p. 15). Esses conteúdos nunca estiveram na consciência, como os do inconsciente pessoal. Para Jung, no inconsciente coletivo estão armazenadas as verdades eternas do ser humano, sem limites de espaço e tempo.

Minha tese é a seguinte: à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de caráter coletivo, não-pessoal, ao lado do nosso consciente, que por sua vez é de natureza inteiramente pessoal e que [...] consideramos a única psique passiva de experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência. (p. 54).

Jung (2003), entretanto, não nega a importância da consciência; ao contrário, afirma que todas as nossas ações inconscientes deveriam, como ideal, ser assimiladas pela consciência. Também não divinizou os processos inconscientes, mas percebeu neles padrões que estruturam e coordenam as atividades da consciência humana, incluindo as religiões e as descobertas científicas. Para Jung (2003), o inconsciente apresenta dois aspectos: um retrospectivo, que aponta para trás, em direção ao instinto pré-consciente e pré-histórico, e outro que antecipa potencialmente o futuro, que é o conteúdo prospectivo. “Chamamos o inconsciente de ‘nada’, e no entanto ele é uma realidade in potentia: o pensamento que pensaremos, a ação que realizaremos e mesmo o destino de que amanhã nos lamentaremos já estão inconscientes no hoje”. (p. 272).

Outra questão importante do legado junguiano a ser considerada no decorrer desta pesquisa é o conceito de arquétipo, principalmente pelas suas implicações na teoria do imaginário de Durand. Jung (2003) afirma que os arquétipos estão armazenados no inconsciente coletivo e que é por meio deles que o inconsciente se manifesta. “Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipo”. (grifo nosso, p. 53). Entende que, quando nos referimos aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos nos referindo a tipos arcaicos ou primordiais, isto é, a imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. Esses conteúdos são os arquétipos, cujas manifestações ocorrem em forma de fantasias e imagens simbólicas dos instintos, estes entendidos como os impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos.

A origem dos arquétipos não é conhecida, ainda que se repitam em qualquer época e qualquer lugar do mundo. Segundo Jung (1964), os arquétipos “parecem quase dotados de um feitiço especial [...], criam mitos, religiões e filosofias que influenciam e caracterizam nações e épocas inteiras”. (p. 79). Seriam, então, esquemas ou potencialidades funcionais que determinam inconscientemente o pensamento. Todo o arquétipo condiz, portanto, com uma forma preexistente. Constituem um bem inalienável da psique e pertencem aos mais supremos valores da alma humana; logo, descartá-los como algo insignificante representa realmente uma perda. Os arquétipos aparecem nos mitos e contos de fadas, bem como nos sonhos e nos produtos das fantasias, nas representações artísticas e no imaginário em geral. Longe de serem invenções arbitrárias, são elementos autônomos da psique inconsciente, anteriores a qualquer invenção. Na pessoa os arquétipos aparecem como manifestações involuntárias dos processos inconscientes; no mito, porém, são formações tradicionais de idades que não podemos calcular. Os arquétipos representam essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se manifesta através de sua conscientização e percepção.

Jung (2003), entretanto, faz um alerta que julgo pertinente mencionar no caso da representação e da análise de arquétipos: “Em momento algum devemos sucumbir à ilusão de que um arquétipo possa ser afinal explicado e com isso encerrar a questão.” (p. 161). A melhor tentativa de explicação de um arquétipo apenas serve para transpô-lo a outra linguagem metafórica, gerando uma outra imagem sobre ele. Para Jung não há substantivo “racional” para o arquétipo. No caso de uma psicoterapia, todo entendimento deve ser buscado conjuntamente com o paciente, pois os arquétipos assumem matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifestam. Esse pensamento é corroborado por Durand (2002), que afirma que os arquétipos não apontam para um único ponto no espaço imaginário; antes, indicam uma direção, levando essas “realidades dinâmicas” a se agruparem nas “categorias do pensamento”.

Os arquétipos também são fatores de ligação entre o consciente e o inconsciente, por meio dos símbolos que os representam, levando a um maior grau de autoconhecimento e, como conseqüência, a um melhor ajustamento ao mundo no qual o indivíduo está inserido.

A partir do momento em que os arquétipos entram na esfera pessoal da psique, ou seja, no nível do inconsciente pessoal, por necessidades psicológicas individuais, tomam forma e se expressam em imagens ou símbolos numinosos, que constituem uma ponte entre a consciência e o inconsciente, para poderem ser elaborados não já em nível impessoal e atemporal, mas no âmbito individual da psique. (HAUSER, 1994, p. 20).

Nesse ponto, em virtude da abordagem que utilizo, a qual leva em conta as questões das manifestações arquetípicas e simbólicas, cabe promover um entendimento do que seja símbolo com base na postura junguiana. Para Jung (2003), símbolo é o produto concreto de um arquétipo, a sua configuração formal, sua imagem, sua expressão. O arquétipo habita o plano da potencialidade, ao passo que o símbolo se encontra no plano material. Como exemplo, no arquétipo central, ou self, o símbolo pode ser manifestado de muitas maneiras, como representações de mandalas ou outras formas a ele associadas.

Outra diferença ocorre porque o arquétipo é somente inconsciente, ao passo que o símbolo inclui a polaridade consciente-inconsciente. O símbolo alia esses dois pólos, aglutina as energias psíquicas e as conduz à consciência, podendo, assim, produzir uma reordenação na ordem vigente naquele momento. Dessa forma, a análise simbólica do produto plástico possui inúmeros substratos, que, ao serem pensados conjuntamente com o sujeito, podem promover uma nova elaboração psíquica.

Outra questão abordada por Jung (2003) em suas postulações é o chamado “pro cesso de individuação”: “Uso o termo ‘individuação’ no sentido do processo que gera um ‘individuum’ psicológico, ou seja, uma unidade indivisível, um todo”. (p. 269). Para Jung,

este processo corresponde ao decorrer natural de uma vida, em que o indivíduo se torna o que sempre foi. E porque o homem tem consciência, um desenvolvimento desta espécie não ocorre sem dificuldades; muitas vezes ele é vário e perturbado, porque a consciência se desvia sempre de novo da base arquetípica instintual, pondo-se em oposição a ela. Disto resulta a necessidade de uma síntese das duas posições. Isto implica uma psicoterapia mesmo no nível primitivo, onde ela toma a forma de rituais de reparação. (p. 49).

Jung (2003) afirma não ser apenas a consciência que representa a totalidade da psique do sujeito, mas o conjunto dos processos inconscientes também compõe essa totalidade. Para ele, porém, os conteúdos inconscientes não fazem parte do eu consciente, pois, se fizessem, seriam necessariamente conscientes. Esses “fenômenos ditos inconscientes têm tão pouca relação com o eu, que muitas vezes não se hesita em negar a sua própria existência. Apesar disso os mesmos manifestam-se na conduta humana.” (p. 49). Assim, seria um preconceito supor que algo nunca pensado possa não ter existido dentro da psique.

O processo de individuação compreende, com base nesses pressupostos, a possibilidade de convivência equilibrada entre consciente e inconsciente, levando em conta a incapacidade da consciência de abranger o inconsciente totalmente. Evidentemente, o inconsciente também não pode se impor à consciência; caso isso ocorra, Jung (2003) descreve as patologias mentais, nas quais a consciência não está bem estruturada para se sobrepor ao inconsciente.

Consciente e inconsciente não constituem uma totalidade, quando um é reprimido e prejudicado pelo outro. Se eles têm de combater-se, que se trate pelo menos de um combate honesto, com o mesmo direito de ambos os lados. Ambos são aspectos da vida. A consciência deveria defender sua razão e suas possibilidade de autoproteção, e a vida caótica do inconsciente também deveria ter a possibilidade de seguir o seu caminho, na media em que o suportarmos. (p. 281).

Um indício que se apresenta ao terapeuta acerca do processo de individuação do seu paciente é a análise da simbologia apresentada na sua produção artística e sua conexão com o conteúdo arquetípico. Alguns desses símbolos17 são aportes para que se vislumbre o processo de individuação, daí emergindo novas situações ou novos estados de consciência. Para Jung (2003), “a meta de uma psicoterapia que não se contenta apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade em direção à totalidade” (p. 282), finalidade da individuação. Para Durand (1995), também os símbolos são fonte de saúde psíquica, associando a doença mental à incapacidade de simbolização:

Pela doença mental a individuação é desregulada de dois modos: em primeiro lugar, pelo domínio das pulsões instintivas que não chegam a “simbolizar”conscientemente a energia que as anima e faz com que o indivíduo se desligue do mundo ambiente – como nos “casos” estudados pela psicanálise. Ou então pela ruptura do equilíbrio em favor da consciência clara, quando o símbolo se estreita num signo e a pessoa perde seu “sentido” humano, transformando -se em simples engrenagem de todas as justificativas racionais. (p. 37).

Outro entendimento de Jung (2003), importante de ser enfocado, é o conceito de self ou si mesmo, que para ele é o centro da personalidade, um local central no interior da alma, com o qual tudo se relaciona e que ordena todas as coisas. Esse centro representa também uma fonte de energia: “A energia do ponto central manifesta -se na compulsão e ímpeto irresistíveis de tornar-se o que se é, tal como todo organismo é compelido a assumir aproximadamente a forma que lhe é essencialmente própria”. (p. 353). Esse núcleo não é pensado como se fosse o eu, mas como sendo o self, anterior e mais completo do que o eu consciente. Sua manifestação através da simbologia arquetípica oferece pistas. o aparecimento dos arquétipos e sua representação simbólica, como o círculo, as mandalas, o quadrado e outros - acerca do processo de individuação do sujeito.

A interpretação da imagem produzida em arte, com seus símbolos advindos do inconsciente a fim de serem decifrados e compreendidos, pode ser um dos recursos mais eficazes para que esses conteúdos sejam agregados à consciência. Há uma maior possibilidade de conjunção entre os conteúdos inconscientes e conscientes, por meio das imagens e da forma e sua agregação à consciência pelas leituras pessoais e grupais.

A imagem é veículo do Ser. Encontra-se no profundo da pessoa, no mundo de suas intuições, uma vida interna a querer se expressar. De início, uma lenta e penosa gestação onde todo um universo de experiências começa a tomar forma. No momento exato, há a ruptura definitiva e o Ser se manifesta em forma de imagem. Na imagem que há por trás das emoções a “voz do Ser” se faz ouvir. A compreensão do Ser, a clareira do Ser, abrigou-se nessas imagens. (GOUVÊA,
1989, p. 30).

Assim, na criação e na forma se conjugam ação e imagem num processo de organização mental e material. Para Philippini (2002), a matéria ajuda a “em-formar”, a dar forma, para se obter uma “in -formação”, ou uma configuração interna, inconsciente, o que dará origem às ações de “trans -formação”. Logo, no momento em que os conteúdos tenham a qualidade “trans”, de trânsito entre os diferentes níveis psíquicos e transposição de formas de ação propostas por essa nova configuração psíquica, novos níveis de consciência podem se desvelar ao sujeito.

Uma vez imposta a dualidade da pessoa e da imagem concretizada no material, haverá um conscientização do fenômeno, o que possibilitará um novo estágio, uma nova dinâmica, uma dialética consciente-inconsciente. Haverá, então, uma transposição a um novo estágio de consciência, possibilitando um avanço no entendimento psíquico.”


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Fonte:
Lilian Cláudia Cordeiro Araldi: "A EDUCAÇÃO ESTÉTICA E O FEMININO: PROPOSTAS PARA UMA VISÃO HUMANIZADORA EM EDUCAÇÃO". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação da Dra. Graciela R.Ormezzano). Passo Fundo, 2006.

Nota
:
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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