"Enquanto Bastide (1980), Lima (1999) e Albuquerque Junior (2001) descrevem a região nordeste apresentando alguns aspectos geográficos, históricos e culturais, continuamos o mesmo percurso neste tópico, já que o nordeste e o sertão não estão dissociados, e para serem compreendidos permanecem em estreito contato. Tomamos como referência teórica novamente Bastide (op.cit) para explanar sobre a formação étnica da civilização sertaneja e o desenvolvimento econômico do sertão, acompanhamos o estudo acrescentando Farias (1997) e concluímos o tópico com o conteúdo sobre a produção de riqueza e trabalho no sertão, através de Arruda (2005).
Bastide (1980) expõe que a origem da formação dos povos da região litorânea e sertaneja, deve-se também ao desenvolvimento econômico do nordeste. No litoral surge o cultivo da cana-de-açúcar, envolvendo a produção e fabricação do açúcar, que contribuiu para o desdobramento da agricultura comercial. O autor lembra que a cana-de-açúcar surgiu no país, ainda no período das capitanias hereditárias, e que inicialmente os investimentos no cultivo foram implantados em algumas cidades da região sul, especificamente no litoral. Enquanto nessa região o resultado do plantio não foi satisfatório, na região nordeste, em território também próximo ao litoral, durante o ano de 1584, constavam 108 engenhos, destacando-se o maior número de canaviais nos estados da Bahia e de Pernambuco.
No século XVII, o desenvolvimento dessa cultura canavieira propagou-se pelos estados: da Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão e o Pará. O êxito da economia canavial sucede, dentre alguns fatores, devido ao solo fértil do litoral nordestino adequado ao plantio e pela proximidade geográfica do oceano atlântico como ponto estratégico que facilitava o escoamento do produto. Dessa maneira, a necessidade de uma mão-de-obra abundante para o trabalho exaustivo nas lavouras explica o predomínio principal da civilização negra, na época.
Em seguimento ao estudo do autor sobre o nordeste, encontramos no sertão também um espaço de produção e exploração econômica. Na região acentuou-se o cultivo pastoreio, através da criação de gado. O homem do sertão, que é reconhecido como caboclo do interior ou vaqueiro, caracteriza-se pelo seu espírito aventureiro e nômade, recoberto por uma visão de liberdade devido ao tipo de trabalho que realiza “[...] o homem da caatinga nada tem diante de si, a não ser um céu imenso implacavelmente [...] erra o gado em rebanhos, tudo incita à partida, à marcha, ao galope a cavalo, em luta contra o espaço” (Bastide, 1980, p. 87).
Diante do desenvolvimento econômico no nordeste, através da cana-deaçúcar no litoral e do pastoreio do sertão, o autor destaca duas civilizações distintas: a civilização do sertão, constituída pelo caboclo, ou vaqueiros livres e a civilização da cana que se compõe predominantemente pela raça negra. Apesar desta diferenciação, ambas civilizações tornaram-se complementares e adequadas de acordo com as situações de interesses econômicos envolvidos. Bastide (1980) cita como fato desses laços ajustados:
[...] a civilização do sertão é a continuação ou conseqüência da civilização da cana. O engenho necessitava de bois para a alimentação do pessoal, para o transporte das canas (Bastide, 1980, p. 88).
A civilização indígena, juntamente com o branco, especificamente os portugueses colonizadores possibilitou a formação da população sertaneja, e a junção dessas raças originou uma população mestiça, nomeada de caboclos e que tinham a ocupação principal de cultivar a terra e cuidar do gado. A presença dos índios, no século XVII, na constituição dos povos sertanejos mostra-se marcante nos costumes encontrados por todo nordeste, apresentamos alguns deles: a rede de dormir, utensílios domésticos utilizados para alimentação, pinturas faciais, a mandioca, o instrumento musical maracá e suas crenças.
A partir dessa inserção no mundo indígena, pontuamos que esses costumes permanecem ativos na sociedade atual, seja aquela oriunda da zona rural ou da região urbana. Reconhecemos o aspecto de transcendência destes hábitos da cultura indígena para outros espaços, já que em períodos anteriores somente pertenciam e eram autorizados a delimitados grupos sociais. Além desses caracteres, recordamos que o estado do Ceará, apropriado de um extenso território sertanejo, também apresenta várias cidades designadas por nomes de procedência indígena, pois provavelmente foram os índios, os primeiros habitantes dessas terras nordestinas conquistadas.
Farias (1997) relembra que no ano de 1500 residiam nas terras do Brasil aproximadamente quatro milhões de índios. O autor ressalta que atualmente existe apenas cerca de pouco mais de cento e cinqüenta mil índios no país, impressiona a redução exorbitante dessa população. De acordo com o historiador essa constatação decorre do extermínio absoluto desses sujeitos pelos colonizadores, que impuseram aos índios várias situações de vulnerabilidade: doenças, miséria, expulsões de suas moradias, exploração do trabalho, desfacelamento das famíl as ea destruição da identidade cultura.
A conquista das terras dos sertões nordestinos desdobrou na domesticação dos índios que acabaram na dependência de grandes senhores de terra. Os coronéis detentores de muitas propriedades rurais utilizavam-se da mão-de-obra indígena para interesses particulares, ou como pistoleiros para lutarem nos confrontos entre as famílias para apropriação de novas terras, ou tirando proveito da mão-de-obra nos trabalhos da lavoura e do pastoreio.
Atentamos com essa leitura, que o surgimento do sertão não procedeu de maneira única e linear, lembrando que a nossa referência não se limita apenas ao espaço geográfico, mas também à compreensão dos sujeitos desse lugar. A própria história apresenta-nos fatos repugnantes que, muitas vezes, são esquecidos ou intencionalmente encobertos para legitimar a ação da classe dominante. A construção do sertão perpassou por um processo de muito sofrimento, através de vários conflitos e entraves sejam culturais, econômicos ou sociais enfrentados pela força do poder entre colonizador e colonizado. Compartilhamos da denúncia realizada por Farias (1997):
O processo de colonização do Ceará, como de todo o Brasil, apresentou um grande perdedor: o índio, vítima de uma insana destruição física e cultural. Os nativos sobreviventes à ação civilizadora e cristã do branco, acabaram marginalizados pela sociedade, passando a ser denominados de caboclos como se simplesmente tivessem desaparecidos por completo ou miscigenados com outros grupos étnicos – vindo daí o falso mito de que o Ceará era um estado onde não havia índios (Farias, 1997, p. 34).
Compreendemos que o povo indígena instituiu na história do Brasil um lugar de vítima, por vivenciarem tantas situações de submissão à classe dominante. Contudo, tratamos de esboçar o conteúdo colocado por Farias (op.cit) em que cita uma postura ativa e consciente dos índios, através da Guerra dos Bárbaros, registrada no século XVII que durou 30 anos. Um fato histórico, exemplo da dura resistência indígena à colonização, em que se uniram alguns índios, na maioria pertencente aos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte para enfrentar os invasores que destruíram as suas terras, os brancos.
Até aqui, lembramos que o desenvolvimento econômico da região sertaneja estendia-se essencialmente ao pastoreio com a criação de gado e contou com a participação na mão-de-obra indígena, entre outras, no exercício da função de vaqueiros, de acordo com Bastide (1980) e Farias (1997). Ao falarmos do trabalho no sertão remetemo-nos a Arruda (2005) que proporciona alternativas de produção, na formação de riquezas nesse território, além das referidas até o momento.
Arruda (2005) destaca a importância das riquezas produzidas através da criação de gado, o cultivo do algodão e na extração de óleos vegetais. Assim, a economia da região semi-árida, que abrangia o sertão e o agreste, conforme área referida na figura 2, não se reduzia apenas à exploração da pecuária e do algodão. O autor acrescenta que até a primeira metade do século XX, grande parte da mão-de-obra estava voltada para a produção de alimentos, que também era aproveitada para o extrativismo vegetal e o plantio do algodão, enquanto que o restante, uma pequena parcela dos trabalhadores, estava ocupada nas fazendas de gado.
Por volta dos anos 50, segundo Arruda (op.cit) a indústria que estava presente no semi-árido, geralmente localizada nas capitais, centralizava a sua produção no setor têxtil, no curtume e no beneficiamento de oleaginosas. Também ressalta que embora a presença desse desenvolvimento capitalista representasse uma opção ao mercado de trabalho, a indústria da época não gerava um número significativo de empregos para a região.
Em relação ao desenvolvimento econômico, Arruda (op.cit) explica a existência do baixo fluxo monetário que cerca as atividades econômicas do semiárido, no entanto esta verificação não designa a ausência ou a impossibilidade de produção de riquezas. O pesquisador cita alguns aspectos singulares presentes no mercado econômico que proporcionaram a acumulação de capital, limitada a uma minoria detentora do poder local: pouca inversão, que seria o investimento de capital com fins especulativos, e a predominância das relações de trabalho não-capitalistas. Destaca-se como exemplo dessas relações a prática de parceria, o autor informa:
[...] o sistema de parceria no semi-árido se alicerça na cessão de terras feita pelo fazendeiro à família do agricultor, que aí constrói sua moradia, planta milho, feijão, mandioca e cria aves e animais de pequeno porte. Pelo uso da terra, o trabalhador remunera o fazendeiro com a terça, quarta ou meia parte da colheita (Arruda, 2005, p. 50).
No desenvolvimento da pecuária, também se verificou um sistema de remuneração não-capitalista, a quarteação, em que se estabelecia em que a cada quatro bezerros nascidos um seria destinado ao vaqueiro, como moeda de pagamento pelos serviços prestados nas fazendas. O autor registra esse procedimento nas relações de trabalho, entre o vaqueiro e o dono da fazenda, iniciando no período colonial, estendendo-se até a época republicana e perdurando, com alguns resquícios ainda no século XX.
Retomamos o destaque realizado por Bastide (1980), anteriormente, sobre a economia do nordeste estar centrada principalmente na pecuária e na cana-de-açúcar, sugerindo-se uma partitura no desenvolvimento da economia nordestina, onde no litoral estava o cultivo da cana e no sertão predominava a criação de gado. Sobre essa polaridade, acrescentamos o pensamento de Arruda (2005) que chama a atenção para o imaginário social construído historicamente e relaciona algumas palavras identificatórias da pecuária e da cana-de-açúcar. A criação do gado está simbolizada com cunho pejorativo: pobre, secundário, atrasado, irracional e frouxo. Enquanto no cultivo da cana classifica-se: rico, principal, moderno, racional e rígido.
O autor, ao delinear o mapeamento das produções econômicas existentes no semi-árido sertanejo, estabelece que o sertão ostenta um espaço pleno de crescimento e desenvolvimento, já que ali ocorre uma constante movimentação das relações sociais de trabalho, oscilando a expressividade de alguns setores, em determinados períodos. Essa percepção privilegia um pensamento que vai ao desencontro a idéia do nordeste miserável, que na verdade:
[...] é uma construção que escamoteia a dominação exercida sobre o sertanejo, pois, ao naturalizar a miséria dos homens, nega a formação de riquezas produzidas ao longo dos anos [...] (Arruda, 2005, p. 43).
Seguindo o nosso percurso de analisar alguns aspectos sejam econômicos ou culturais, sobre a interpretação do sertão nordestino, apresentamos na seqüência a descrição da relação de proximidade construída entre o sertanejo e a natureza. Tornando assim o ambiente do sertão um lugar decifrável, que passa a ser significativo pela sabedoria popular. Os autores trabalhados, até este momento, citaram constantemente alguns fenômenos predominantes na região, especificamente de origem climática, como a seca. Então, o dia de chuva passaria a representar um evento extraordinário de acalento, ansiosamente aguardado pelo sertanejo. A propósito das respostas sobre as questões que envolvem o exato período e por qual motivo as chuvas caíram nas terras do sertão, não estaríamos autorizados a concebê-los. Assim, delegamos essa missão aos profetas do sertão.
Retomamos Bastide (1980) quando descreve que o sertanejo nada tem diante de si, pode contar apenas com o infinito das terras e o imenso céu com raríssimas nuvens. Apesar dessa imagem de infinitude, o autor esboça que na região rural alguns moradores prevêem o tempo, definindo as estações do ano através da seca do verão e às escassas chuvas do inverno. Essa previsão acontece devido à observação a alteração das plantas e dos animais silvestres. Conforme lembra:
O canto dos pássaros, sua maneira de fazer os ninhos, os saltos das cabras, a invasão de bandos de lagartos ou de formigas vermelhas, os locais que as aranhas escolhem para tecer suas teias, o mês em que o ipê floresce tudo é pretexto para adivinhar o que trarão os meses vindouros, tudo é promessa de esperança ou anúncio de tragédia (Bastide, 1980, p. 93).
A autora explica que os profetas do sertão obtêm um diagnóstico do tempo através da leitura de sinais transmitidos pela natureza, conforme registro no Anexo C, observando a direção do vento e o acasalamento dos bichos, dentre outros fatores. O aspecto relevante dessa experiência, conforme propõe a autora, é que a profecia no ambiente do sertão assume uma ação estratégica de sobrevivência imaginária psíquica, instituída para lidar com o sofrimento da fome e da morte.
Entendemos que a profecia favorece uma ação providencial, de ordem psíquica, para o enfrentamento das situações de privações vivenciadas pelos sujeitos. Deste modo, possibilita outras formas de viver e pensar no sertão, deslocando o sertanejo de uma postura submissa para uma outra, produtora de novos sentidos. O suposto controle do tempo, quando se prevê o dia de chuva, promove o estreitamento dos laços socais, permeando uma sensação de harmonia como as brincadeiras das crianças nas chuvas, o encontro dos vizinhos para conversar sobre as previsões, a mobilização para a produção e o consumo de alimentos. Percebemos a riqueza da profecia, pelo fato desse fenômeno, permeado de traços culturais e religiosos, ser o resultado genuíno de uma construção subjetiva, do próprio sertão.
Estudar um ambiente, como o sertão nordestino implica conhecer também o sujeito que ali vive e o transforma culturalmente, assim o espaço e o sujeito não se constituem de maneira isolada, estratificada. Esse sujeito sertanejo apropria o seu lugar e o anuncia. É o que pretendemos apresentar no capítulo seguinte."
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Fonte:
LILIANA LEITE CHAGAS: "DO ARADO AO BORDADO: mudança no trabalho do homem do sertão". (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Psicologia do Centro de Ciências Humanas da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, como requisito para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Ambiente, trabalho e cultura nas organizações sociais. Orientador: Prof. Dr. José Clerton de Oliveira Martins). Fortaleza, 2007.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponivelmente digitalmente em : Domínio Público
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