Aids: da “questão social” a “questão sociológica”


“Como socióloga a primeira pergunta que fiz, antes de empreender esforços para pesquisar portadores do vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida foi: atualmente, até onde podemos encarar a aids uma “questão social” relevante?

Os mais de 25 milhões de mortos em decorrência da aids ocasionaram impactos demográfico, econômico e social em diferentes partes do planeta. Diferentemente da maioria das doenças que abatem principalmente crianças e velhos, a aids causa o maior número de mortes entre a população jovem, na fase mais produtiva de sua vida (REVISTA VEJA: 2000: 49). Paulilo (1999: 12) lembra que, economicamente, este fato é demasiado preocupante, pois, “ao longo do tempo, enquanto membros da população economicamente ativa tornam-se infectados, poucos sobreviverão para formar o grupo etário mais velho, na faixa de 40 a 60 anos, grupo que traz em termos de trabalho, uma experiência acumulada”. Tais “perdas prematuras na força de trabalho poderão exercer um impacto desestabilizante nos índices de produtividade e, conseqüentemente, nos níveis de renda e investimentos” (PAULILO: 1999: 12).

Outra questão digna de nota é o alto índice de contaminação feminina. Em 1986 a razão entre casos masculinos e femininos no Brasil era de 18: 1, em menos de 6 anos caiu para 4: 1. Atualmente, o Brasil apresenta a razão de 2:1 em conseqüência da contaminação entre as mulheres ter aumentado 175% de 1994 a 2004, enquanto que durante o mesmo período entre os homens o aumento foi de 29%. É bem verdade também que o sexo feminino já responde pela maior parte dos novos casos de aids em mais de 200 cidades do país e dados do Ministério da Saúde revelam que há localidades em que houve uma inversão, ou seja, para cada sete mulheres soropositivas, há um homem portador do HIV. O alto índice de contaminação entre as mulheres é a principal causa do aumento significativo da transmissão perinatal que correspondia a 23,3%, no período 1985-1987 e atingiu 84,5% dos casos notificados em 1995” (GUIMARÃES, 2001: 13).
Particularmente no Brasil havia até fevereiro do ano 2000 cerca de 30.000 crianças órfãs de mães que morreram vítimas da aids, 60.000 filhas de mulheres que já desenvolveram a doença e 137.000 que tinham mães portadoras do HIV. “O cenário é ainda mais sombrio que o desvendado pelas estatísticas oficiais. O levantamento baseou-se nos registros de óbito por Aids das mulheres que tinham filhos. Ficaram de fora as crianças obrigadas a viver longe da família porque os pais doentes não têm como cuidar delas” (REVISTA VEJA, 2000: 64). Dificilmente as crianças órfãs de pais que morreram de aids encontram pessoas que queiram adotá-las. Na maioria das vezes elas são enviadas para abrigos de menores abandonados.

No que diz respeito ao impacto social negativo da aids para crianças e adolescentes,
Paulilo (1999: 12) adiciona outro ponto importante: “nota-se (...), nas comunidades mais afetadas, um impacto adverso em educação, na medida em que muitas famílias não conseguem manter seus filhos na escola, seja pela necessidade de tê-los trabalhando, seja pela necessidade de tê-los cuidando de alguém doente”.

Inicialmente a contaminação por HIV e o desencadeamento das patologias associadas à aids estavam estreitamente relacionadas à camadas sociais de elevado poder aquisitivo; no presente, o quadro é bastante diferente e assistimos uma crescente notificação de pessoas carentes. Bastos (2000: 10) discorrendo sobre este assunto cita entre os fatores de maior vulnerabilidade dos pobres à contaminação do HIV: indisponibilidade de recursos essenciais à prevenção (como preservativos masculinos e seringas estéreis) devido a barreiras culturais; falta de recursos; situações de constrangimento subjetivo e objetivo de natureza diversa (a título de exemplo, pensemos na precariedade e nos riscos presentes nos locais de consumo de drogas); dificuldade de acesso a serviços de prevenção e tratamento; impossibilidade de implementar politicamente decisões comunitárias; menor escolaridade e menor domínio da linguagem escrita que impossibilitam o acesso a informações atualizadas; maiores empecilhos de manutenção de comportamento preventivos, ao longo do tempo, pela pressão permanente de ameaças concretas e prementes como o desemprego, os problemas de moradia ou a fome.

Assim, nestes 25 anos, enquanto o HIV sofre mutações genéticas que dificulta a
descoberta de uma vacina e da cura, a epidemia de aids tem sofrido inconstâncias sociais que impedem a contenção do avanço da doença. Contudo, Guimarães (2001: ) ressalta que esses deslocamentos sociais não significam que a aids se tornou uma doença restritiva a “pobres” e “mulheres”, como querem alguns de seus intérpretes. Uma vez que, “o mecanismo de enquadramento da epidemia em novas categorias mais “normais” tende a minimizar as categorias referentes ao meio “desviante”, como se as novas categorias fossem casos mais resolvidos ou menos preocupantes”.

Paradoxalmente, mesmo diante de tudo que foi explicitado anteriormente, a aids ainda não alcançou o patamar estatístico de doença mais mortal da humanidade. Na realidade, ocupa o quarto lugar,
apesar da década de 80 ter sido uma época em que se previa uma epidemia de proporções catastróficas:

Em 1987, a OMS falava em taxas de infecção alarmantes, de cerca de 100 milhões de pessoas durante a década seguinte – até hoje, estima-se que tenha havido 65 milhões de infecções. Especialistas então citados numa reportagem da revista Time afirmavam que alguns países, nesse período, perderiam um quarto de sua população, vítima da aids . “Não havia uma previsão de quantos morreriam. Ninguém tinha como fazer essa conta, mas sabiam que seria uma catástrofe, uma epidemia de proporções capazes de dizimar a
população até o final do século”, afirma Paulo Teixeira, ex-diretor do Programa Nacional de Aids e do programa de aids da Organização Mundial de Saúde (OMS). “De 1982 a 1985, o número de casos dobrava a cada seis meses no mundo”. Mantido esse ritmo de crescimento, temia-se pela sobrevivência da própria raça humana. Ao longo da década seguinte, contudo, a catástrofe, embora preocupante, revelou-se bem menor do que imaginavam os alarmistas (Aids: 25 anos, Época, p. 68, 19/06/2006).

Curiosamente, os meios de comunicação de massa referem-se à aids como a ameaça global utilizando por base quase tão somente os dados estatísticos associados a ela:

A aids é hoje uma ameaça global que já matou 25 milhões e dizimou o continente africano, onde há 25 milhões de soropositivos. A cada ano, 5 milhões de pessoas contraem o vírus, cerca de 90% em países em desenvolvimento. Isso equivale a 14 mil novas infecções todo dia. A cada minuto, dez pessoas são infectadas. Conte até seis e – pumba! - alguém acaba de contrair o HIV. No Brasil, desde o início da epidemia, há 25 anos, o vírus já contaminou mais de 820 mil pessoas. Dessas, mais de 370 mil desenvolveram aids e 171 mil morreram. Estima-se que [...] atualmente haja 650 mil portadores do HIV no Brasil
(Aids: 25 anos, Época, p. 66, 19/06/2006).
Não obstante, vale ressaltar que estes dados são de certa forma consoladores. No tocante ao Brasil, em 1992 o Banco Mundial previu que o país teria 1,2 milhão de casos de HIV até 2000. Felizmente, em 2006, o número de infectados é de 650 mil, e entre 1996 e 2002, o número de mortos por causa da aids caiu 50%, aparentemente devido ao uso dos remédios anti- retrovirais. Segundo o governo brasileiro, a distribuição desses remédios salvou a vida de cerca de 90 mil pacientes e significou a economia de US$ 1,2 bilhão, que seriam utilizados em tratamentos médicos contra possíveis infecções oportunistas.

As autoridades em saúde pública afirmam que, embora perante sua ampla disseminação, a epidemia ainda está em seus estágios iniciais e estimam que as doenças e mortes representam apenas 10% do impacto total possível comprovando: até o presente momento, o “estrago” que a aids tem causado, não se reflete numa taxa exorbitante de óbitos.

Devo acrescentar também que outras patologias são responsáveis por efeitos sociais até mais devastadores do que a aids, a título de exemplo, o câncer, cujos diagnósticos crescem a cada dia. Considera-se que o aumento progressivo e o peso absoluto e relativo das doenças crônicas não transmissíveis no quadro de morbidade da população mundial é um reflexo dos seguintes fatores: processos de urbanização e industrialização que produzem modificações profundas na situação sanitária de vários países; aumento da expectativa de vida das populações; transformações de estilo de vida e maior exposição a determinados riscos ambientais.

Conforme, o que foi apresentado não há dúvidas: a aids, por ambíguas razões, é uma “questão social” relevante. Porém, Tavares dos Santos (1989:58) esclarece que a “questão social” “é apenas um momento instigador, pois é preciso que haja a metamorfose desta (...) em uma questão sociológica, a fim de que possamos ultrapassar a imediatez da percepção e das visões ideológicas (...)”.
E como fazer isso? Tavares dos Santos (1989:55-56) considera que a metamorfose é possível através de um trabalho “de criação de conhecimento sobre a realidade orientado por uma fecunda relação entre a teoria, a observação e a interpretação”. Ao passo que o pesquisador empreende esforços neste sentido confronta seu objeto científico (questão sociológica) com o objeto real (questão social), conquistando-o, construindo-o e constatando-o. A conquista do objeto científico dá-se, primariamente, “face ao senso comum e contra as pré-noções formadas pela percepção social” o que resulta numa dialética metodológica: ao mesmo tempo, que a “questão social” é o ponto de origem do pesquisador, deve ser ultrapassada, mas nunca esquecida, para que o pesquisador possa mais tarde reencontrá-la, explicada, enquanto questão sociológica (TAVARES DOS SANTOS, 1989:59).

Já a construção do objeto científico, nas palavras de Tavares dos Santos (1998: 59), é fundamental para um exímio trabalho sociológico e requer senso de problematização do pesquisador, exigindo dele uma capacidade intelectual de levantar questões tanto para o social – questões produzidas pela história – quanto para ele próprio que sobre elas se debruça.

O momento da constatação é aquele em que o pesquisador legitima cientificamente as hipóteses elaboradas acerca do seu objeto científico, mediante vivência empírica, “definida como uma relação que se estabelece entre o teórico e o objeto real, operacionalizado pelos métodos e técnicas de investigação, os quais, sabemos, não são senão “teorias em atos”. (TAVARES DOS SANTOS, 1989:59).

Contudo, a fim de conferir a aids a qualidade de uma “questão sociológica” saliente, sem negligenciar o que a respeito dela intriga-me, um outro método foi importante. Consistiu, a priori, na formulação de uma pergunta de partida, através da qual eu pudesse exprimir o mais exatamente possível o que procuro saber, elucidar, compreender melhor sobre ela (QUIVY, 1992: passim). Eis, minha “pergunta de partida”: Como explicar que a aids, mesmo não sendo a patologia mais mortal da humanidade, seja para muitos a peste atemorizante do século XX e XXI, enquanto que, para alguns portadores do HIV assintomáticos que se esforçam em omitir suas condições sorológicas é definida uma doença como outra qualquer?

Ao procurar respostas empíricas e teóricas para esta questão, concomitantemente, fui atendendo à explicitação das perguntas inquietantes que me induziram à escolha do presente objeto de pesquisa: se a aids é para os assintomáticos uma doença como outra qualquer o que os motiva a omitir a sorologia positiva para HIV? Como eles conseguem manter o diagnóstico positivo oculto de familiares, vizinhos e amigos?

Vale salientar que esta pesquisa ao alicerçar-se num esforço de conquista, construção e constatação da questão sociológica que me propus investigar, fundiu as distintas fases metodológicas sugeridas por Tavares dos Santos nos diferentes capítulos desta dissertação e os resultados são os que seguem.

O segundo capítulo evidencia que a peste, assim como a saúde e a doença, é uma
construção sócio-cultural e a aids muito herdou da memória das mais assustadoras pestes do passado (lepra e sífilis): a doença do “outro”, do “estrangeiro” e do “estranho”, transgressor de valores morais que merece ser punido e rechaçado. Aqui, são lançadas as bases para a hipótese: os efeitos nefastos da aids disseminados no imaginário social tanto dos que não portam o HIV como dos soropositivos assintomáticos, provêm, sobretudo, de uma ordem simbólica e não das conseqüências biológicas do vírus no organismo, o que comprova, simultaneamente, que quando os soropositivos assintomáticos especificam a aids uma doença como outra qualquer, não estão levando em consideração os signos e símbolos que a representam mas, simplesmente, a inexistente condição de morbidade física.

No terceiro capítulo apresento os sujeitos de minha pesquisa e faço uma breve leitura de alguns aspectos importantes de suas histórias de vida. Já o quarto capítulo comprova que se a morte física um dia amedrontou os soropositivos assintomáticos entrevistados, após alguns anos convivendo com o HIV, ela não os assusta tanto quanto antes. Ainda neste capítulo, retomo algumas concepções teóricas para confirmar que o tabu da morte é fruto de uma construção social e a degeneração físico-psicológica não, necessariamente, é resultado da ação do HIV.

O quinto capítulo tem por objetivo explicitar teórico e empiricamente as motivações envolvidas na manipulação e ocultamento do estigma do HIV/aids: o temor do rechaço e associação da contaminação com a transgressão moral. Neste capítulo, aprofundo a discussão sobre a moral e poder que ela possui na produção da culpa e do castigo tomando por referência teóricos como Marcel Mauss, Durkheim e Nietzsche.

No sexto capítulo abordo o Hospital São José dado que foi nesta instituição de saúde
onde fui buscar os sujeitos de minha pesquisa. Também julguei importante enfocar esta instituição porque, como salienta Foucault, historicamente os hospitais surgem para atender o controle disciplinar propiciando a qualificação e classificação dos doentes. O H.S.J figura no imaginário cearense como centro especializado exclusivamente no tratamento da aids, logo, ser avistado nele é para os participantes da pesquisa uma denúncia de suas condições sorológicas. Omitir a soropositividade implica, portanto, em estratégias de manipulação da informação: “faço tratamento médico no Hospital São José”.
O sétimo capítulo tem teor essencialmente empírico e nele exponho as várias estratégias utilizadas pelos entrevistados a fim de manter oculta a sorologia positiva para HIV. O oitavo e último, por sua vez, é gênese de revelações inesperadas. Dos dez entrevistados, quatro mulheres e dois homens, alguns por motivos similares e outros por motivos totalmente díspares, disseram que haviam rompido relacionamentos amorosos mesmo apaixonados. Os homens afirmaram que evitam terminantemente relacionamentos intensos e duradouros mas isso não implica abstinência sexual, enquanto as mulheres negam-se até mesmo a manter relações sexuais. Questões de gênero e sexualidade, bem como, as concepções teóricas de amor romântico e confluente são trabalhadas neste capítulo com o objetivo de entender e explicar tais comportamentos.

Na conclusão exponho o que os capítulos anteriores visam esclarecer: acreditar que a aids é para os soropositivos assintomáticos uma doença como outra qualquer, é crer no superficial e simplesmente aparente. Em virtude da sócio-dinâmica de estigmatização e do poder que a moral exerce sobre os indivíduos, os assintomáticos desta pesquisa acabam compartilhando da idéia de que suas condições sorológicas provam que eles comportaram-se mal, conseqüentemente, são simbolicamente sujos, poluídos e moralmente inferiores, daí a importância de ocultá-la e omiti-la.

Quero ressaltar que esta dissertação não foi construída numa “assentada”, pelo
contrário, foi um trabalho de grande fôlego realizado pouco a pouco, por retoques sucessivos. Também não me sinto no direito de afirmar que ela é produto de um esforço “exclusivamente” meu, pelo contrário, é obra de um trabalho coletivo. É bem verdade que o exposto nestas páginas é resultado de um processo protagonizado por mim, contudo, tive ajuda de vários atores coadjuvantes, entre estes, destaco os principais: minha orientadora, Auxiliadora Lemenhe, meus entrevistados e os componentes da banca de qualificação, Lea Carvalho e Isabelle Braz".

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Fonte:
Kelma Lima Cardoso Leite: "APARTHAIDS: Uma Análise Sociológica da Manipulação e Ocultação do Estigma da Aids". (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado acadêmico em Sociologia da Pós-Graduação, da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Sociologia. Orientadora: Maria Auxiliadora de Abreu Lima Lemenhe). Fortaleza – Ceará, 2006.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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