As diferentes desigualdades



"Nossas sociedades são dominadas por uma contradição fundamental: como sociedades democráticas, afirmam a igualdade por essência de todos os sujeitos. Como sociedades capitalistas, não param de construir mercados que hierarquizam as competências e os méritos. Tal contradição parece cada vez menos superada. Na tentativa de explicar as diferentes desigualdades, Anne Marie Wautier destaca na obra de Dubet (2003, p.17) as diferentes questões que ele norteia:

A centralidade do ator, seu sofrimento na tentativa de construir-se como sujeito; a tensão existente entre estruturas sociais e subjetividade, o sentimento decorrente de perda da auto-estima, de derrota, de exclusão, cuja responsabilidade muitas vezes é imputada ao próprio ator; a análise da exclusão como indicador de transformação social; a preocupação com a reivindicação de reconhecimento do ator e de participação democrática em todos os níveis das estruturas onde se movimenta.

Como conciliar a igualdade de todos e o mérito de cada um? Presenciamos o surgimento de movimentos sociais que reivindicam o reconhecimento dos indivíduos – independentemente do seu mérito – e uma igualdade de princípios que se converte facilmente em culpa, em desprezo e em violência. De fato, sem renunciar à busca da igualdade, a dupla natureza de nossas sociedades exige que constituamos uma política de reconhecimento do sujeito. Segundo Dubet4 (2003, p.51):

A contradição entre duas faces da igualdade (ou das desigualdades) nunca foi tão aguda.O encontro entre a afirmação da igualdade dos indivíduos com as múltiplas desigualdades que fracionam as situações e as relações sociais nunca foi tão violenta e tão ameaçadora para o sujeito. O pensamento liberal conservador denuncia muitas vezes esta paixão pela igualdade realçando o tema da frustração relativa: a inveja impõe-se como sentimento social elementar quando a menor desigualdade é insuportável, quando cada um quer afirmar-se como igual ou “mais igual”, negando assim todas as diferenças naturais ou sociais, ameaçando a liberdade e gerandouma considerável ineficácia econômica.

É sabido que a escola, hoje, está passando por uma crise relacionada à socialização e ela tem enfrentado dificuldades na construção das normas e dos valores gerais da sociedade. Além disso, a escola regida pelo modelo tradicional, com o manejo de classe nas mãos exclusivamente do professor e os alunos em posição de obediência e subalternidade, perdeu-se no tempo. A sala de aula onde vigoram novos modelos de relações entre professores e alunos, onde tudo pode ser passível de discussão, onde a hierarquia fica menos visível, onde os alunos têm o direito de opinar, é uma nova realidade. Esses novos modelos, com capacidade de maior elasticidade de tolerância, implicam novas definições de disciplina. Sobre o assunto escola, Dubet (2003, p.55) comenta:

Tudo muda na escola democrática de massa que tenta realizar, e não somente do ponto de vista “formal”, as condições da igualdade de oportunidades numa competição aberta a todos. Os alunos não são mais selecionados na entrada e a montante no sistema, mas ao longo de seus estudos unicamente em função de seu desempenho. É claro, os sociólogos não ignoram que esta competição é socialmente determinada pelas desigualdades sociais, mas não impede que, do ponto de vista dos indivíduos, seus fracassos, dependem essencialmente de seu desempenho e de suas qualidades.

Na história da escola, sempre se observou a presença das relações de dominação e subordinação. Houve, entretanto, uma mudança na correlação entre as partes. Os alunos adquiriram maior espaço de atuação e de decisão, mais autonomia e se fortaleceram. Na mesma proporção em que há mais igualdade, as situações de tensão se evidenciam, já que os alunos têm possibilidades de se exprimir. As tensões podem ser geradas nas relações de obediência às regras impostas ou no confronto com as diferenças culturais, sociais, econômicas e/ou geracionais. Nesse contexto Dubet (2003, p.60) nos diz:

Os alunos invalidam o jogo escolar agredindo os professores. Não somente a violência permite salvar sua dignidade, mas ela engrandece seu autor aos olhos de seu grupo de iguais. Podemos perguntar-nos, no entanto, porque esta violência não se transforma em conflito, porque ela não questiona os mecanismos estruturais das desigualdades escolares. Justamente, o recurso à violência explica-se por esta impossibilidade e pelo fato de que as adversidades da igualdade não passam de provações individuais numa sociedade ao mesmo tempo democrática e competitiva. No fundo, os alunos violentos saem deste jogo porque eles acreditam nele tanto quanto os outros, senão mais. Na violência, eles viram o jogo que os destrói, mas eles não propõem nenhum outro jogo, como o mostra a cultura da provocação que organiza sua vida e seu modo de consumo.

Em contrapartida, se nos ativermos apenas ao olhar do aluno, isso pode significar a isenção da responsabilidade de seus atos, já que não agem intencionalmente contra o outro, mas apenas buscam a emoção, o divertimento, as sensações diferentes ou o desvelamento de um jogo implícito.

A elasticidade da permissividade no tempo e no espaço torna as fronteiras da indisciplina maleáveis, frágeis e difíceis de serem definidas. É por isso que muitas vezes ela se confunde com a violência ou com a agressão.

A mesma variabilidade de concepções encontrada para indisciplina também é verificada para se conceituar o fenômeno da violência. Tal diversidade se justifica por dois motivos: primeiro porque o seu entendimento não é o mesmo nos diferentes períodos da humanidade e, segundo, porque cada pessoa interessada no tema pode se permitir compreendê-la conforme os seus valores e a sua ética. Dubet (2003, p. 60) contribui enfatizando que:

Mesmo se este raciocínio não explica todas as violências e em toda parte, ele evidencia uma de suas dimensões, a do desejo de reconhecimento. Mas enquanto, na maioria dos casos, o reconhecimento se estriba no princípio da justiça e na afirmação de uma identidade social, este tipo de violência é a expressão de uma clara reivindicação de ser sujeito.

Etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa todo ato de força contra a natureza de algum ser; de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém; de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade; de transgressão contra aquelas leis e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. Dubet (2003, p.65) afirma:

O tema do respeito introduz uma mudança fundamental na natureza dos princípios de justiça. A igualdade de todos é uma norma universal, uma ficção, um postulado que não precisa ser fundamentado empiricamente: as raças, os sexos iguais, os seres humanos são iguais por princípio; a razão, após a alma cristã, é a coisa mais repartida do mundo. [...] Enquanto que os princípios da igualdade e do mérito implicam um crescimento da argumentação baseada na generalidade, o princípio do reconhecimento implica uma “descida” para a especificidade, para as condições particulares de uma ação e de um projeto. Ele solicita a passagem de uma moral objetiva para uma moral da intenção sem que ele possa evidentemente reduzir-se a isto, já que os outros princípios não podem desaparecer.

A violência, na sua forma explícita de manifestação nas escolas, é combatida, criticada e controlada com punições. Entretanto, a violência mascarada passa impune, ou porque não é percebida como tal e é confundida com a indisciplina, ou porque é considerada pouco grave, isenta de conseqüências relevantes, ou, finalmente, porque não é vista.

A banalização da violência provoca a insensibilidade ao sofrimento, o desrespeito e a invasão do campo do outro. A ideologia dos tempos contemporâneos, que prega o individualismo exacerbado, que nega e até combate as iniciativas coletivas, faz com que o sujeito não enxergue o outro. O outro é o diferente, é o estranho, é o nada. O que tem valor é o "eu" e aqueles com os quais o "eu" se identifica. O outro não desperta a solidariedade, o respeito, o bem-querer, e pode, por qualquer motivo banal, ser destruído, eliminado, segregado e excluído. Segundo Wautier (2003, p.175):

Resumindo, a sociedade no mundo inteiro, parece ter perdido a bússola e as instituições tradicionais parecem não ser mais capazes de enquadrar novas demandas que traduzem uma ânsia de reconhecimento e de respeito de sua especificidade, seja na Igreja, na família, na escola, nos partidos políticos, nas organizações de produção.

Se o que se deseja é uma política de educação com mais democracia, então é preciso repensar a escola, analisar o seu currículo e redirecionar as suas ações para que seja superada essa crise da socialização. O primeiro passo em direção a uma mudança de conduta no cotidiano é a conscientização e a compreensão dessas dificuldades da vida coletiva. Nesse sentido, seria importante estender a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos até os (pré)conceitos que fomentam as práticas do cotidiano. Essa maior abrangência significa o transporte da vida do mundo relacional até o mundo pedagógico, ou seja, a inclusão, no currículo, da reflexão, da discussão e do entendimento de conceitos como identidade (cultural e social), alteridade, diferença, multiculturalismo, gênero, etnia, sexualidade, intolerância, preconceito, discriminação, violência, dentre tantos outros. Sobre isso, Dubet (2003, p.66) enfatiza:

Fundamentalmente, o tema do reconhecimento das identidades surge necessariamente como o único modo de “síntese” e de conciliação possível das duas faces da igualdade ou da igualdade dos indivíduos e das desigualdades coletivas. Mas enquanto a igualdade e o mérito constituem princípios de justiça objetivos porque a intencionalidade dos atores está ausente, o reconhecimento supõe construir a justiça a partir dos sentimentos de justiça e das possibilidades de realização de si mesmo. O reconhecimento é bom quando aumenta a autonomia e as capacidades de ação do indivíduo, ele é ruim quando se opõe à igualdade de todos e à eqüidade das competições. Neste sentido, a universalidade das normas de justiça domina o desejo de reconhecimento que se esforça por tornar compatível ou suportável o que não o é no plano dos princípios objetivos."
---
Fonte:
RONALISA TORMAN: "EXCLUSÃO E FORMAÇÃO NA INSTITUIÇÃO ESCOLAR PÚBLICA". (Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, na linha de pesquisa Atores sociais, políticas públicas e cidadania. Orientador: Prof. Dr. José Rogério Lopes). São Leopoldo, 2006.

Nota
:
A imagem inserida (fonte imprecisa) no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!