Benjamin Franklin: "Da Riqueza da Nação à Riqueza do Cidadão"




Da Riqueza da Nação à Riqueza do Cidadão

“Neste ponto Franklin, o político, é confrontado com Franklin, o moralista. Mas como um não pode ser dissociado do outro, como se fossem duas personalidades distintas, ele terá de conciliar o problema da riqueza com o da virtude. De antemão, ele sabia que assim como a pobreza é uma situação de aviltamento da dignidade humana e submete o homem às “tentações peculiares,” também a riqueza é para a maioria dos homens um obstáculo poderoso para a prática das virtudes morais. No nível da política esse desvio se chama corrupção.

Isto requer, de antemão, distinguir entre a riqueza dos cidadãos e a riqueza da Nação. Quanto aos bens adquiridos ou patrimoniais dos cidadãos, a riqueza é entendida como opulência, “termo que exprime não o gozo, mas a posse de uma infinidade de coisas supérfluas, contra um pequeno número de coisas necessárias.”121. Por outro lado, a riqueza de uma nação ou república é nada mais nada menos do que o produto da indústria e do comércio. Mas a base de toda produção industrial e do que vende o comércio é a matéria prima, isto é, o bem que se extrai do meio natural; a terra e o mar. E isso é obtido pelo trabalho humano. Por essa via o pensamento de Franklin vai corroborar as idéias dos economistas políticos do seu tempo, notadamente Adam Smith. A fonte da riqueza não era o “ouro escondido” sob a terra, atrás do qual muitos corriam. Essa riqueza era a própria terra e os primeiros elementos dela eram obtidos pelo trabalho humano, tanto na terra, como no mar. Daí afirmar que “a riqueza de uma nação” não estava no ouro ou na prata, mas no “trabalho, indústria e frugalidade” de seu povo. O problema com que ele se depara aí é que se o trabalho gera riqueza e produz a independência econômica do homem, por seu turno a riqueza quase sempre corrompe os costumes.

Precisamos partir desse ponto para entender como Franklin desenvolve suas idéias como estadista e homem público, preocupado, também, com o desenvolvimento econômico de seu país, sem perder de vista a necessidade de conciliar riqueza e virtude. E ele começa examinando as fontes de “riqueza nacional.”

Segundo ele, “parece haver apenas três modos para uma Nação adquirir riqueza. O primeiro é pela guerra, como os romanos faziam, pilhando seus vizinhos conquistados. Isso é roubo. O segundo é pelo comércio, o qual é geralmente baseado na trapaça. O terceiro é pela agricultura, o único modo honesto, no qual o homem recebe o produto real da semente lançada ao solo em uma espécie de contínuo milagre, forjado pelas mãos de Deus em seu favor, como recompensa por sua vida inocente e virtuosa indústria.”

Franklin identificava a agricultura como atividade mais virtuosa e embora fosse um defensor do livre comércio, admitia que as relações eram baseadas em negociatas e “trapaças”. Sua posição favorável à atividade agrícola era, em parte, uma influência recebida do contato que manteve com os fisiocratas, por ocasião de uma viagem que fez à França, por volta de julho de 1768. A doutrina dos fisiocratas, enfatizando a importância da agricultura, ajudou Franklin também a entender a fraqueza do sistema manufatureiro e comercial da Inglaterra num momento em que ele tinha fortes razões políticas para se ressentir disto. Mas sua preocupação de fundo era outra.

Suas considerações partiam das mesmas premissas dos fisiocratas. “Todos os alimentos e bens de subsistência da humanidade vêm da terra. As outras necessidades da vida têm seu valor estimado pela proporção de alimento que é consumido para sua produção. Um pequeno povo com um grande território pode subsistir com os bens da natureza sem nenhum outro trabalho senão a extração e a caça. Um grande povo em um pequeno território, ao contrário, tem que trabalhar a terra para aumentar sua [produtividade] e assim, poder suprir os homens com os alimentos e animais que querem consumir. Desse trabalho, resulta o aumento da quantidade de alimentos vegetais e animais e de material para roupas, como, peles, e linho. O supérfluo dessa produção é riqueza.”

A idéia de supérfluo retoma aqui a conotação do que excede nossa capacidade de uso. “Com esse [excedente] pagamos pelo trabalho empregado na construção de nossas casas, cidades, etc, as quais são apenas formas transformadas de subsistência. A manufatura é, portanto, apenas outra forma de subsistência transformada. Isto revela que o manufatureiro de fato não obtém do seu empregador, pelo seu trabalho, mais do que uma mera subsistência, que inclui roupa, abrigo e combustível.”

Franklin explicava aí a composição do custo da manufatura, tentando mostrar que esse custo não é tão significativo quanto querem fazer parecer os comerciantes. Tudo aí deriva seu valor das provisões consumidas em procurar a matéria prima. É claro que nessa composição entram os custos com transporte. Nesse ponto, os comerciantes também levam certa vantagem com o produto manufaturado porque este pode ser mais facilmente transportado e comercializado em mercados distantes. Note-se que, ao explicar essa composição dos custos da manufatura, Franklin tangencia a questão da exploração do trabalho humano pela indústria manufatureira. Não por acaso, quando fala do trabalho como meio de obter riqueza, ele emprega uma conotação de empreendedorismo. Isto é, do trabalhador como empreendedor, dono do seu próprio negócio. O hábito de economizar levaria o trabalhador a obter o capital suficiente para “começar na vida.” A conquista dessa independência é vista por Franklin como a expressão máxima da soberania do indivíduo. Contudo, no ponto que estamos examinando, ele encaminha seu raciocínio para outro fim.

“O comércio justo”, dizia ele em outro artigo, “é onde valores iguais são trocados por iguais, incluindo o custo de transporte.” Assim o custo de produção de “um saco de trigo na Inglaterra corresponde ao mesmo que é gasto para produzir quatro galões de vinho na França.” A vantagem desse “justo comércio é que ambas as partes sabem exatamente o que cada um gastou para produzir e para ambas as partes as barganhas serão justas e iguais.” Mas onde os gastos não são conhecidos a barganha será “injusta e desigual; o conhecimento tirando vantagem da ignorância.”

Franklin confrontava aí as virtudes morais do indivíduo com as virtudes do comércio. Que a indústria e o comércio traziam riquezas tanto privada como pública ele não ignorava. Mas os participantes envolvidos nessa troca, tomados de ambição pela riqueza e, considerando o efeito de uma infinidade de circunstâncias do próprio processo, dificilmente não decairiam de suas virtudes morais. Daí considerar a atividade da agricultura a mais virtuosa, porque no comércio dos seus produtos a “barganha” é “justa e igual.” Ele no modelo de sociedade agrária a solução para manter uma república ao mesmo tempo próspera e virtuosa, sem que pela riqueza e opulência sejam corrompidos seus costumes. Os exemplos de ascensão e queda das antigas repúblicas, fornecidos pela história, revelavam que foi quando elas alcançaram seu mais alto grau de desenvolvimento e riqueza que suas virtudes decaíram.

Pocock, em sua obra The Machiavelian Moment, observa que foi especialmente no período das disputas entre os partidos Republicano e Federalista que a confrontação da virtude com a corrupção se instalou na política americana. As virtudes morais e cívicas, que os americanos tanto valorizaram e proclamaram-se detentores, em oposição à corrupção no centro do império britânico, foram aí confrontadas. Esse confronto materializava-se na defesa de Thomas Jefferson de uma sociedade eminentemente agrária contra a preferência de Alexander Hamilton pelos interesses urbanos, favorecendo mercadores e investidores em detrimento dos proprietários agrícolas. Aquele via a América como uma república agrária e este, como um império comercial. Esse momento de confrontação na política americana é que Pocock chama o “Machiavellian moment.”

É verdade que a disputa entre esses dois partidos se dá pouco tempo depois da morte de Franklin e, portanto, ele não toma parte ativa nessas discussões. Mas sem dúvida nosso autor teve também que enfrentar o seu momento maquiaveliano. Esse momento se deu quando os Estados Independentes da América precisaram “assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada.” Isto é, quando eles precisaram estabelecer seus acordos comerciais com outros países e aí, Franklin jogou um papel importante, com suas idéias sobre o livre comércio.

No embate entre Jefferson e Hamilton, pode-se argumentar que ambos estavam defendendo interesses puramente particulares. Jefferson era o herdeiro de uma rica família de fazendeiros da Virginia, enquanto Hamilton representava a emergente classe industrial burguesa e os ricos comerciantes. Mas Franklin nem era um rico fazendeiro, nem tampouco industrial, embora tivesse amigos em ambos os lados e fosse um homem de negócios. Contudo, não devemos esquecer que quando ele entra para a política já havia se aposentado dos negócios privados. Daí até a sua morte, em abril de 1790, dedicou-se à política e vivia dos rendimentos da fortuna que acumulou durante a juventude. Era na verdade, um homem do povo, e como um seu legítimo representante tinha em mente o bem comum. E esse bem comum é possível apenas pela força que sustenta o povo: sua virtude.

Em 1783, portanto, após a revolução, Franklin precisava estabelecer acordos para reanimar o comércio americano, que se baseava principalmente em matérias-primas. Essa característica essencialmente agrícola das colônias recém independentes fortalecia a imagem dos americanos como um povo virtuoso, cuja principal atividade era a comercialização de produtos agrícolas e, por isso mesmo, era um justo comércio. Sob essa crença, Franklin escreve a alguns estadistas do outro lado do Atlântico, sobre as vantagens do livre comércio:

“Observo que o comércio, consistindo na troca de necessidades e conveniências da vida, quanto mais livre e irrestrito mais floresce e mais felizes são todas as nações envolvidas. Muitas das restrições que se faz a isto em diferentes países parecem ter sido projeto de particulares em favor dos seus interesses privados, sob o pretenso argumento de ser para o bem público. Tenho visto muitas barreiras e tão poucas vantagens nisso, que me sinto inclinado a acreditar que o Estado que deixa aberto seu porto a todo o mundo, em termos iguais, por este modo terá commodities mais barato, venderá seus próprios produtos mais caros e assim será mais próspero. Pois se os estrangeiros chegam ao seu porto eles logo querem se desfazer de suas mercadorias e da mesma forma querem comprar outras e logo partir. Temos a vantagem da sua demanda (você deseja vender?) e da sua oferta (você deseja comprar?). Além disso, ocorrendo demanda e oferta concorrente em nossos portos isto contribui para vendermos nossos produtos mais caros e comprar outros mais baratos.”

Franklin discorre aqui sobre a regra da oferta e procura de mercadorias, que rege o mercado. Sua idéia de livre comércio encerra um mecanismo de livre concorrência com o objetivo de promover a prática de preços mais justos, ou o equilíbrio de preços. A livre concorrência se opõe aqui a prática de medidas restritivas, impostas pela política comercial de algumas nações, que Franklin considerava uma intervenção voltada para beneficiar interesses de particulares, e não do todo. É claro que essa observação era uma crítica sutil à política comercial inglesa da época e nesse ponto Franklin escancarava duas grandes fraquezas dessa política. A primeira está presente nessa sua defesa do livre comércio. Se a restrições comerciais visavam atender interesses de particulares e não beneficiar ao todo da República, isso reafirmava o que todos já sabiam. O governo britânico havia se corrompido e cedido às pressões de particulares em troca de algum retorno. Pois quando o interesse de particulares está acima do bem da sociedade como um todo já não se pode dizer que esse é um governo virtuoso; seu principal objetivo foi desvirtuado. E quando um governo se corrompe, já não é um bom exemplo para nenhuma sociedade.

A segundo fraqueza desse tipo de política restritiva é que ela enseja a retaliação por parte das outras nações que se sentem prejudicadas e com isto ambos os lados são prejudicados. Especificamente no caso das colônias americanas, no período que antecedeu a guerra, Franklin já havia ido mais longe com suas observações sobre a “tolice” das restrições comerciais britânicas aos negócios das colônias. Em uma carta que ele escreve em 1764, a Peter Collinson, um comerciante e cientista inglês, afirmava que as restrições comerciais impostas às colônias pela Coroa “prejudicavam a ela própria.” Porque “sua manufatura,” que o povo das colônias consumia, “se originava da matéria prima fornecida pelas próprias colônias e o pagamento dos pesados impostos, com que a Coroa as sobrecarregava, era possível apenas pela prosperidade dos negócios dos colonos.” Se as restrições fossem mantidas, “eles não teriam como pagar seus impostos, mas poderiam viver por si mesmos, pela abundância dos bens da terra e manufaturando eles próprios seus bens de primeira necessidade.” Franklin já acenava com a possibilidade de retaliação por parte dos colonos.

Contudo o que é importante notar é que ele não concebia a total ausência de intervenção do governo nos negócios privados. Ao contrário, se era para “encorajar as virtudes da vida” que o governo e as instituições sociais existiam, seu papel seria o de cuidar do bem público; disto fazem parte medidas de equilíbrio nas relações comerciais ou outras que envolvessem interesses públicos ou o bem estar da comunidade. A forma como o governo poderia “encorajar as virtudes” aí era através do livre comércio ou livre concorrência. Enfim, tratava-se de promover o bem geral e isto implica também justiça social. Aparentemente esse mecanismo pode ser útil para promover oportunidades iguais para todos dentro de uma mesma comunidade. Mas, como um humanista e partidário de um modelo de sociedade aberta, o critério era para Franklin igualmente válido nas relações internacionais. É claro que diante de uma política restritiva de um determinado país o outro poderá reagir com retaliações e aí prevalece o critério da guerra justa, ou seja, a guerra defensiva dos interesses nacionais. Mas como Franklin pensa em termos de uma comunidade universal, não via razão para essas restrições ao livre comércio, a não ser pelos “interesses egoístas” de alguns em detrimento do bem comum da grande sociedade humana.

Na outra ponta, isto é, da perspectiva do consumo interno, Franklin alertava o povo contra os riscos de uma sociedade de consumo. Isto é aquela submetida aos valores do mercado, que derivam de um crescente desenvolvimento da indústria e do comércio, baseado exclusivamente no que eles querem produzir e vender para aumentar o ganho. Nesse sentido, ele condenava o consumismo e o luxo, afirmando que “as necessidades inventadas pelos homens acabaram por tornarem-se mais numerosas do que as que são imprescindíveis. De cem pessoas pobres, apenas uma é verdadeiramente indigente.”

A verdade explícita aqui é de que numa sociedade de consumo, não mais os homens ditam suas necessidades, e sim os mercados, e por trás deles a indústria e o comércio. O mercado então “inventa” necessidades para o homem, obriga-o ao consumo delas, emprega-o na produção dessas superfluidades e, como se tudo isso não bastasse, transforma sua força de trabalho, que é sua energia vital, em mercadoria e assim o torna um ser alienado do mundo da vida.

Todos esses elementos que Marx, um século depois, iria explorar no Capital, já estavam presentes no pensamento social e político de Franklin quando discorre sobre o trabalho, o consumo, o comércio, a riqueza. É claro que para resolver os problemas da sociedade capitalista nem Marx, nem Franklin pensava na intervenção forte de um Estado totalitário. Ao contrário, Marx pensava mesmo em abolir o Estado e Franklin pensava numa intervenção que “encorajasse as virtudes da vida”. Marx queria a sociedade do proletariado. Franklin queria a sociedade de homens iguais, livres, governados pela razão e por suas próprias leis, imparciais e justas. Não pensava em abolir as classes e nivelar todos na condição de proletários. Aliás, esse termo nem mesmo era conhecido dele e dos outros pais fundadores. O que ele desejava era uma sociedade laboriosa e próspera, formada por uma classe rica e uma ampla classe média, ambas marcadas por um estilo de vida frugal. Não era uma isonomia da penúria ou miséria, mas da prosperidade e das oportunidades.

Franklin se indagava se haveria um “remédio para o luxo”. Considerando o luxo como “todo gasto desnecessário,” perguntava “se era possível executar uma lei que o restringisse e se com isso o povo seria mais feliz e mais rico”. Analisando melhor os exemplos na vida real, concluía que um “shiling” gasto “inutilmente por uma pessoa tola,” pode ser ganho “por uma pessoa mais sábia, que sabe melhor o que fazer com isto.”

Nesse sentido o comércio era um bom negócio, se a tolice de alguns redundava em riqueza para outros. O Governo não poderia nesse caso impor uma lei proibitiva sem incorrer numa arbitrariedade. Mas é claro que poderia lançar mão de dispositivos de regulação mais ou menos restritivos.

Refutando o argumento defendido por alguns de que esse tipo de produção gerava trabalho para todos, Franklin corroborava a opinião dos economistas políticos: “se todo homem ou mulher trabalhasse quatro horas por dia em alguma coisa útil, esse trabalho produziria o suficiente para atender todas as necessidades e confortos da vida; escassez e miséria seriam banidas do mundo e o resto das 24 horas poderiam ser empregados em lazer e prazer.”

A vastidão de terra ainda por cultivar na América, na Ásia e na própria Europa, bem assim, o crescimento da população no mundo, dava a Franklin a certeza de que não faltaria trabalho para muitos, por muito tempo. Particularmente na América do Norte, isto “manteria o corpo de toda a Nação laborioso e frugal.”

O pensamento de Franklin aponta para uma solução identificada com o ideal do cavalheiro rural, dentro de uma sociedade essencialmente agrícola, cujo modelo talvez tenha sido melhor sintetizado por Hector St. John de Crévecoeur. Escrevendo em 1782, seis anos depois da Declaração da Independência, Crèévecoeur definiu quem era o americano:

“Ele (um inglês ilustrado) chegou a um novo continente; uma nova sociedade se oferece à sua contemplação, diferente daquela que ele viu até agora. Não está constituída, como na Europa, de grandes senhores que possuem tudo e de uma horda de homens que não possuem nada. Aqui não existem famílias aristocráticas, cortes, reis, bispos, autoridade eclesiástica, poder invisível que dê para uns poucos um poder bem visível, grandes manufaturas que empreguem milhares de pessoas e nem grandes refinamentos. O rico e o pobre não estão tão distantes um do outro como na Europa. Com exceção de umas poucas cidades, todos nós cultivamos a terra, da Nova Escócia até a Flórida ocidental. Somos um povo de cultivadores espalhados por um imenso território, comunicando-nos entre nós por meio de boas estradas e rios navegáveis, unidos pelos laços suaves de um governo benigno, todos respeitando as leis sem temer seu poder, pois elas são imparciais. Anima-nos a todos nós uma atividade produtiva sem peias e restrições, pois cada um trabalha para si mesmo. Se ele (trata-se ainda do inglês ilustrado) viaja pelos nossos distritos rurais, não o castelo hostil e a arrogante mansão, que contrastam com a cabana de barro e a miserável choça, onde o gado e os homens ajudam-se mutuamente, na fumaça e na indigência. (...) Demora algum tempo para que ele se reconcilie com o nosso dicionário, que é pouco em palavras como dignidade e honra. (...) Não temos príncipes para os quais nos esfalfemos, morramos de fome ou nos tornemos exangues; somos a mais perfeita sociedade atualmente existente no mundo
.”

Sem dúvida o estilo de vida frugal era mais favorecido pela vida do campo, isto é, pela atividade agrícola. Mas a posse de terra gera o desejo por mais terra, pois, quanto maior a quantidade de terras cultiváveis, maior o lucro. A questão da cobiça não era nova e Franklin poderia descrevê-la com palavras de Sêneca:

“Na idade do ouro os homens eram ainda felizes e inocentes; amavam a vida simples, despida de supérfluo e do luxo da civilização. Não eram realmente, sábios ou moralmente perfeitos, pois a virtude resultava antes do desconhecimento do mal do que da prática da virtude. (..) E assim viveram até o dia em que, aquele grande instrumento da concupiscência lhes despertou a cobiça, a saber: a instituição da propriedade privada; de fato foi o aparecimento da avareza que destruiu a antiga ingenuidade.”

Vimos, contudo, que Franklin resolve esse problema da propriedade pela tributação e por medidas de desestímulo ao uso de grandes propriedades. Dessa forma haveria terra para todos. Pelos seus cálculos, “com 100 acres de terra o homem poderia se tornar um grande fazendeiro e cem mil homens empregados em limpar seus [respectivos] 100 acres dificilmente dariam para ocupar um ponto grande o suficiente para ser visível da lua.” Mas tal nação seria, no mínimo, uma nação de proprietários. Então isso expõe uma contradição no pensamento de Franklin? De modo algum. Se para ele a propriedade “supérflua” é objeto de convenção entre os homens, essa convenção deve se basear em medidas justas. E se há terras em quantidade e qualidade suficiente para todos, elas podem ser distribuídas em proporções iguais para todos. Mais é interessante notar que essa distribuição de terra de forma eqüitativa transforma os trabalhadores em donos do seu próprio negócio, isto é, o negócio agrícola. O que se teria seria uma nação de famílias de trabalhadores proprietários. Isso corrobora a imagem do trabalhador empreendedor no ensaio de Franklin d’O Caminho para a Riqueza. Em todo o caso, o objetivo final a alcançar aí é outro. Na sociedade essencialmente agrícola, os hábitos são mais simples e, por suas virtudes, o povo não tem necessidade de nada além dos bens realmente úteis e necessários à vida. Mesmo o comércio decorrente dessa atividade seria baseado em barganhas justas, porque o custo de produção aí é conhecido de todos. A conseqüência ou o efeito desejado desse estilo de vida frugal é que ele ajudaria os homens a se manterem virtuosos, vivendo sem ostentação. Para viver sem ostentação é preciso ser pobre ou, viver como os pobres. Se a pobreza é aviltante da condição humana, busquemos a riqueza, mas vivamos como pobres. Não significa “fingir” ser o que não é. Pai Abraão não concordaria com esse “disfarce:”

“Quer numa situação pública ou privada, você escolha agir como um homem de sinceridade, integridade e virtude, há necessidade de você se tornar realmente bom se você faz o bem. Pois o fino disfarce dos pretendentes a virtude pessoal e ao espírito público são facilmente detectados e expostos no hipócrita. Por essa razão, (..), bem como por muitas outras, seja sincero, cândido, honesto, bem intencionado e correto em tudo o que você diz e faz; seja realmente bom, se você parece ser assim: sua vida dará força aos seus conselhos.”

A vida sem ostentação tem a finalidade de fortalecer as virtudes morais. O propósito aí é não despertar a cobiça que leva a ambição e conseqüente privação dos outros. Esse é o estilo de vida dos cidadãos sábios e virtuosos, que para Franklin constituíam o fundamento da sociedade digna de preservação. A atividade produtiva que mais se presta a conservação dessa virtude é a atividade agrícola. Desse modo, Franklin pensava poder conciliar as virtudes morais dos indivíduos e as virtudes do comércio, impedindo que a riqueza daí advinda gerasse a corrupção dos costumes.

Nesse sentido, podemos dizer que sua posição com relação à riqueza é muito similar àquela descrita por Sêneca:

“O sábio não ama as riquezas com paixão, mas prefere tê-las a não tê-las; não as recebe em sua alma, mas em sua casa; numa palavra, não se desfaz delas, mas ao contrário as conserva e se serve delas para abrir um caminho mais vasto para sua virtude e mostrá-la em toda a sua força. Com efeito, pode-se duvidar que um homem sábio tenha mais ocasiões e meios de fazer conhecida a elevação e a grandeza de sua coragem com as riquezas do que com a pobreza? Neste último estado, só se pode ser virtuoso de uma única maneira, quero dizer, não se deixando abater e absorver pela indigência, ao passo que as riquezas são um campo vasto e extenso onde se pode, por assim dizer, espalhar todas as virtudes, e mostrar em todo o seu brilho a temperança, a liberalidade, o espírito de ordem e economia, e se se quiser a magnificência. Cessa, pois de querer proibir aos filósofos o uso das riquezas; ninguém nunca condenou o sábio a uma eterna pobreza. O filósofo pode ter grandes riquezas, desde que não as tenha tirado à força de quem quer que seja, e que elas não sejam sujas e tingidas com o sangue de ninguém; desde que não a tenha adquirido com o prejuízo de ninguém, que não as tenha ganhado num comércio desonesto e ilegítimo; numa palavra, desde que o uso que delas faz seja tão puro quanto a fonte de onde as tirou, e que somente o invejoso possa chorar ao vê-lo possuí-las. (..) Digamos pois que do mesmo modo que o sábio não deixará entrar em sua casa nem um centavo que não tenha legitimamente ganhado, ele também não recusará as grandes riquezas que são benefícios da fortuna e os frutos da virtude; ele pode ser rico, ele desejará sê-lo, e terá riquezas, mas considerá-las-á como bens cuja posse é incerta, e do qual poderá ver-se privado de um instante a outro; não suportará que elas sejam pesadas para si mesmo nem para outros; dá-las-á aos bons, ou àqueles que puder tornar tais, fará delas uma justa repartição, tendo sempre o cuidado de distribuí-las a quem for digno, e lembrando-se de que se deve prestar contas de tanto dos bens recebidos do céu quanto do emprego que dele se faz.”

É notável a semelhança dos princípios contidos nos ensinamentos do ensaio de Franklin com os presentes nessa apologia da riqueza feita por Sêneca. É claro que esses princípios também reaparecem na doutrina calvinista que dá origem ao puritanismo, sobretudo na questão do uso que se faz da riqueza. Mas é verdade também que, como leitor de Sêneca e de outros autores antigos, Franklin não desconhecia as idéias deles. E não é por acaso que, sobre as “máximas do bom senso” ensinadas no seu Caminho para a Riqueza, ele afirma que estas “vêm de tempos imemoriais e pertencem a todos os povos.”

Da mesma forma sua idéia de um governo que, na qualidade de um governo livre, sábio e virtuoso, deve “encorajar as virtudes da vida,” está muito distante daquela que prega a total falta de intervenção dele na vida dos particulares. Ao contrário, para cumprir o seu papel de preservar e garantir o bem comum, o governo deve servir como mediador entre os interesses públicos e os particulares. Significa dizer que ele pode e deve intervir em favor de uma melhor distribuição da riqueza e promoção de justiça social, como vimos no caso da propriedade privada.

Essa idéia de Franklin contém um aspecto que é central na teoria do Estado livre. A suposição de que a liberdade individual é uma questão de não interferência é precisamente o que essa teoria põe em dúvida. Porque não basta que o Estado respeite e preserve as liberdades dos cidadãos individuais. Será sempre necessário que o Estado assegure, ao mesmo tempo, que seus cidadãos não caiam numa condição de dependência evitável da boa vontade de outros. Como lembra Skinner, “o Estado tem o dever não só de liberar seus cidadãos dessa exploração e dependência pessoais, como de impedir que seus próprios agentes, investidos de uma pequena e breve autoridade, ajam arbitrariamente no decorrer da imposição das regras que governam nossa vida comum.”llll, não era exatamente isto o que Franklin pretendia dizer quando afirmava que a finalidade do governo e das instituições sociais, era “encorajar as virtudes da vida”?

A condição básica para isso é a afirmação dos princípios de igualdade e liberdade. E não por acaso, Franklin, na pele do Poor Richard, exortava seus compatriotas: “defendam sua liberdade e mantenham sua independência. Sejam trabalhadores e econômicos se quiserem ser livres.”

O caminho para a riqueza passa necessariamente pela liberdade. Mas uma liberdade baseada na igualdade de oportunidades e prosperidade para todos, que devem ser asseguradas por um governo sábio e virtuoso. Na medida em que o trabalho é aí entendido como a energia própria do homem, propriedade realmente sua, intrínseca à sua natureza, em princípio todos estão aptos a conquistar a emancipação econômica, combinando o emprego dessa energia em coisas úteis e, ao mesmo tempo, cultivando hábitos de vida frugal.

A condição de liberdade aí, por todas as razões expostas, é antes um interesse dos governados que dos governantes. Por isso mesmo, em todo o governo livre ela deve ser objeto de constante vigilância dos seus constituintes."

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Fonte
Ana Maria Brito Sanches: "VIRTUDE, TRABALHO E RIQUEZA. A CONCEPÇÃO DE SOCIEDADE CIVIL EM BENJAMIN FRANKLIN". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Pós–Graduação em Filosofia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Orientador: Prof. Dr. Rolf Kuntz). São Paulo, 2006.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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