Cinema de Ficção Científica: métodos de abordagem e definição


"Costumo pensar que há duas maneiras de se considerar o gênero da ficção científica no cinema, aplicável também a outras artes: uma ampla, abrangente (lato sensu) e outra estrita, restritiva e especializada (stricto sensu). Em sentido amplo, o cinema de ficção científica abrange uma extensa e até mesmo insuspeitada lista de filmes.

Todo filme que encerre um discurso científico e/ou a descrição de um artefato e/ou processo tecnológico relevante para a narrativa pode ser considerado um filme de ficção científica. Isto é, sempre que um discurso científico e/ou um procedimento e/ou um artefato tecnológico forem elementos centrais da narrativa, bem como influentes no desenvolvimento da estória, nas motivações e nos conflitos entre os personagens, teremos um filme de ficção científica. Pois esses filmes cumpririam, em tese, as duas propostas encerradas nos termos definidores do gênero, o substantivo “ficção” e o adjetivo “científica”. Um exemplo típico, dentre muitos outros, seria O Óleo de Lorenzo (Lorenzo’s Oil, 1992), de George Miller – a despeito de se tratar de um filme baseado em história real.

Esticando-se ao extremo essa concepção, teríamos um número enorme de filmes de ficção científica. De saída, qualquer filme rodado numa cidade já teria por esse motivo uma grande afinidade com a ficção científica, uma vez que é praticamente impossível dissociarmos cidade de ciência e tecnologia. Filmes de ficção com pano de fundo histórico, como os que representassem o naufrágio do Titanic, ou ainda a tragédia de Hiroshima, como Chuva Negra (Kuroei Ame, 1989), de Shohei Imamura, poderiam também ser arrastados para a órbita da ficção científica, em maior ou menor grau. O enfoque lato do cinema de ficção científica amplia as fronteiras do gênero para muito além do que se pode imaginar num primeiro momento. Mas esse método de abordagem corresponde a uma hipertrofia, um exagero e até mesmo uma caricatura do gênero, sendo de pouca utilidade para uma pesquisa criteriosa. Além disso, contraria imediatamente o alerta de L. David Allen, segundo o qual a ciência presente na ficção científica é sobretudo “ciência imaginária”, ou ao menos “ciência extrapolada”, aplicada à uma situação extrapolada, e não “ciência corrente”, em situação corrente.

O outro modo de consideração do cinema de ficção científica, o modo estrito, é bem mais específico; procura erguer paredes em torno de uma matéria que, por natureza, é fluida. Nele também vale o paradigma de um cinema no qual o discurso científico e a descrição de procedimentos e/ou artefatos tecnológicos ocupam posição central ou fundamental na narrativa. No entanto, outros elementos entram em cena para melhor delinear o território, melhor destacar o gênero da ficção científica de outros gêneros cinematográficos bem conhecidos. Essa tarefa não é nada fácil. Arrisco dizer que ela seja impossível, e também que a perfeição de uma definição de ficção científica talvez nem seja um objetivo máximo, louvável ou meritório. O gênero da ficção científica, em todas as artes, sobrevive em constante mutação. E cada crítico ou estudioso tem sua visão particular do universo da ficção científica, ainda que, entre si, essas visões variem do muito ao ligeiramente diferentes. Diversos estudiosos não a dissociam do fantástico, ou pelo menos preferem examiná-la sempre em paralelo ao fantástico. Roberto de Sousa Causo, autor de Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875 a 1950 (2003), considera a ficção científica um subgênero que, ao lado da fantasia e do horror, compõem um grande campo literário: a ficção especulativa. Causo é bastante meticuloso na análise de cada um desses três subgêneros, respeitando suas especificidades; porém, é a ficção especulativa como um todo o seu principal interesse. Outros autores procedem a aproximações mais específicas. Neste trabalho, optarei por uma abordagem específica da ficção científica, restritiva em certos aspectos, mas também abrangente em outros. Pretendo dissociar, na medida do possível, o fantástico da ficção científica, não esquecendo, porém, das inegáveis relações de parentesco entre os dois gêneros, bem como da força do componente fantástico presente em toda e qualquer boa ficção científica.

Nesta abordagem estrita, logo de saída são descartados filmes como Titanic e Chuva Negra, por se tratarem de obras que, a despeito da relevância do viés científico e tecnológico, ficcionalizam fatos históricos e, portanto, prescindem da dimensão especulativa inerente à ficção científica genuína.

O método de abordagem da ficção científica no cinema brasileiro aqui privilegiado é essencialmente aquele proposto por Darko Suvin, baseado na noção de novum (ver Anexos). Assim, a ficção científica no cinema brasileiro manifestar-se-á sempre que a narrativa cinematográfica apresentar um novum validado cognitivamente. Não obstante, o uso dessa metodologia é aqui mais tolerante e flexível, com o objetivo de ampliar o corpus de análise, trazendo para a discussão filmes que portem apenas um elemento de ficção científica."
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Fonte:
Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia: "LIMITE DE ALERTA! FICÇÃO CIENTÍFICA EM ATMOSFERA RAREFEITA: UMA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA FC NO CINEMA BRASILEIRO E EM ALGUMAS CINEMATOGRAFIAS OFF-HOLLYWOOD". (Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Doutor em Multimeios Orientador: Prof. Dr. José Mário Ortiz Ramos). Campinas, 2007.

Nota
:
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O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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