A institucionalização da Ciência no Brasil




Museu Nacional

“Os estudos de história da ciência costumam apresentar a institucionalização da ciência como um processo múltiplo, o qual ocorreria por diferentes vias. Assim, a ciência se implanta, se desenvolve e se consolida, não apenas com a fundação dos institutos de pesquisa, mas também com a criação de escolas profissionais, faculdades, universidades, associações, sociedades científicas e a elaboração de periódicos. Em outras palavras, a institucionalização englobaria a formação dos profissionais, os locais de produção e pesquisa científica (laboratórios e institutos), os meios de divulgação desse conhecimento (publicações) e os espaços associativos, os quais reuniriam os profissionais, conferindo-lhes identidade e reconhecimento.

Em seus estudos, Merton examina a interação entre ciência e cultura, e avalia a interdependência entre ciência e outras atividades sociais. Para ele, essa interdependência entre ciência e atividades sociais seria mais forte nos momentos iniciais de institucionalização da ciência; o grau de autonomia aumentaria à medida que um campo de conhecimento avançasse e se caracterizasse como um fim em si mesmo (Merton, 1970).

A divulgação científica seria uma das atividades que atenderia a demandas sociais, ocupando um lugar muito importante na relação entre ciência e outras atividades sociais. Em meu estudo, essa interdependência se apresenta na atividade de divulgação exercida pelos cientistas em um periódico agrícola, pois, ao publicar em tal veículo, os cientistas tinham a possibilidade de comunicar-se com um público mais amplo, potencial usuário dos conhecimentos por eles produzidos, legitimando, dessa forma, seu trabalho e a própria ciência.

No que se refere à história da institucionalização da ciência no Brasil, tem ocorrido, desde a década de 1980, o surgimento de novas tendências historiográficas, as quais vêm revendo uma série de conhecimentos sobre a atividade científica, identificando a ocorrência dessas atividades desde o período colonial.

Há um relativo consenso de que a transferência da corte portuguesa é um marco para a história da ciência no Brasil, haja vista muitas instituições científicas e culturais terem sido criadas nesse período. D. João fundou a Imprensa Régia e a Biblioteca Real, primeira biblioteca pública do País, depois batizada como Bibliotheca Nacional. Foram criadas, em 1810, as Escolas Médico-Cirúrgicas no Rio de Janeiro e em Salvador (as primeiras escolas médicas no Brasil); e, em 1808, o Real Horto (que viria a ser, posteriormente, o Real Jardim Botânico), a Academia da Marinha e a Academia Real Militar. Foram ainda fundados o Museu Real, mais tarde denominado Museu Nacional (1818), o Observatório Imperial (1827), a Escola de Direito de Olinda (1827), a Escola de Direito de São Paulo (1827) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838). Em 1829, foi fundada a Sociedade de Medicina, organizada nos moldes da Academia Francesa (Schwartzman, 2001).

Têm-se intensificado também os estudos sobre a ciência e a divulgação científica no Império, que acompanharam o processo de constituição do Estado nacional. Além da criação de instituições, o incremento da publicação de periódicos e o estabelecimento de comissões científicas têm merecido a atenção de historiadores (Dantes, 2001; Domingues, 2001). Para os propósitos deste trabalho, entretanto, vou me ater a considerações sobre o período republicano.

O período republicano foi marcado pela criação de várias instituições de pesquisa em saúde e também de outras voltadas ao setor da agricultura. Entre elas: o Instituto Agronômico de Campinas (1887); o Instituto Vacinogênico de São Paulo (1892); o Laboratório Bacteriológico (São Paulo, 1892), que, em 1893, transformou-se em Instituto Bacteriológico; o Instituto Butantan (1901), o Instituto Soroterápico Municipal (1899), que seria mais tarde o Instituto Oswaldo Cruz, o Instituto Biológico de Defesa Agrícola do Rio de Janeiro (1920); e o Instituto Biológico de São Paulo (1927).

A criação dos primeiros institutos procurou responder a demandas urgentes e específicas, tanto na área de saúde pública, produzindo soros e vacinas e combatendo doenças epidêmicas nas principais cidades da região Sudeste, como no setor de agricultura, beneficiando a expansão desta, rumo ao mercado exportador; corroborando a formulação de que, a institucionalização da ciência no Brasil esteve atrelada às questões de utilidade do conhecimento produzido (Sá, 2006).

Os primeiros anos da República foram marcados por crises, especulação e pelo sentimento de desilusão por grande parte da intelectualidade brasileira, intelectualidade essa que percebia que aquela não era a República com que havia sonhado (Lima, 1999; Vergara, 2003). Muitos dos que se engajaram no movimento republicano acusavam o novo regime de corrupto e de ser mais despótico que governo monárquico, fato que levou os intelectuais a procurar atuar em outras instâncias (Vergara, 2003). Ocorreu, então, uma modificação na forma de esses atores se inserirem na vida intelectual e política brasileira, que, por conseguinte, passam a atuar como profissionais e intelectuais preocupados em elaborar teorias sobre o País (Lima, 1999). Essa intelectualidade atribuía um sentido de missão à sua atividade, a qual seria ao mesmo tempo literária, científica e política (Sevcenko, 1989, Corrêa, 1982). A atuação desses intelectuais não pode ser pensada apenas por eles pertencerem às camadas dominantes da sociedade brasileira, sua inserção é antes de cunho profissional, o que confere novo aspecto à dominação tradicional da elite agrária daquele período (Corrêa, 1982). A maioria desses intelectuais provinha de famílias de grandes proprietários, mas atuava nos centros urbanos, nos ambientes institucionais e letrados – o que os distinguia do grupo a que pertenciam originalmente (ibidem). Esses mesmos intelectuais se interessavam por diferentes áreas e tornaram-se especialistas em vários campos de conhecimento (ibidem).

Nos últimos anos do século XIX, as idéias cientificistas passaram a ser difundidas no Brasil, entre elas, o positivismo de Auguste Comte e as várias teorias evolucionistas. Os cientificistas brasileiros valorizavam as ciências experimentais ou positivas, acreditando que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o auxílio da ciência (Vergara, 2003). As idéias positivistas tiveram grande influência na intelectualidade brasileira e repercutiram muito nas escolas superiores (Vergara, 2003). As teorias evolucionistas, como o darwinismo social e o evolucionismo spenceriano, também foram bem recebidas pela intelectualidade do País, que via em tais concepções a possibilidade de aprimorar seu povo e de transformar o Brasil em uma nação moderna (Vergara, 2003).

A intelectualidade dos primeiros anos da República se caracterizava por ter sua origem social nas camadas dominantes e médias, e, ainda, por sua formação nas escolas de direito, medicina, engenharia e nas academias militares (Lima, 1999). Essas instituições contribuíram para a formação de novas identidades profissionais, entre elas, as dos sanitaristas e educadores, que se afirmaram na década de 1920 (ibidem).

O processo de formação da elite intelectual brasileira, a partir da segunda metade do século XIX, caracterizou-se por uma diferenciação regional e por um relativo aumento das possibilidades da formação acadêmica, que resultaria da progressiva criação de instituições de ensino superior no País (ibidem).

Nos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, surgiram no País novas escolas de nível superior: a Escola Politécnica de São Paulo (1893); a Escola de Engenharia Mackenzie, em São Paulo (1896); a Escola de Engenharia de Porto Alegre (1896); a Escola Agrícola de Piracicaba (1901), depois denominada ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz); a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária (ESAMV), criada em 1910; entre outras (Schwartzman, 2001). Nesse período, aumentou o número de tipografias, bibliotecas e livrarias, e, ao mesmo tempo, cresceu o interesse na leitura de livros e periódicos científicos (Vergara, 2003).

No fim do século XIX, começaram a aparecer, principalmente nas escolas de medicina e de engenharia, críticas à “cultura livresca”, apontada como prejudicial ao ensino de cunho mais prático (Sá, 2006). Em 1890, a Escola Politécnica do Rio de Janeiro passou por uma reforma, na qual foram abolidos os cursos de ciências naturais, matemática e física, instituindo-se a formação de engenheiros (ibidem). A partir de 1880, nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, os médicos começam a aderir aos ensinamentos de Pasteur no campo da microbiologia (Sá, 2006). Iniciou-se assim, entre os cientistas brasileiros, um processo de adoção do paradigma da bacteriologia e de abandono do paradigma climático-telúrico (ibidem). Os cientistas que se dedicaram à medicina pastoriana realizavam pesquisas voltadas ao estudo dos microorganismos causadores de doenças humanas e animais. Essa mudança na pesquisa médica levou à construção de laboratórios nas faculdades e a um deslocamento da prática médica, do leito dos hospitais para os laboratórios (Sá, 2006). O novo viés da medicina exigia dos cientistas uma nova gama de conhecimentos e aptidões, uma vez que tornava necessário o manuseio de novo ferramental no desenvolvimento das atividades experimentais (ibidem).

Entre as instituições públicas na área da saúde criadas no período, destaca-se o Instituto Soroterápico Municipal (1899), mais tarde Instituto Oswaldo Cruz e atualmente Fundação Oswaldo Cruz. Considerada até hoje uma das mais importantes instituições científicas brasileiras, suas atividades abrangiam, desde sua criação, a pesquisa científica, a formação de pesquisadores e a produção de vacinas e medicamentos.

Outra importante instituição pública de pesquisa fundada anos mais tarde foi o Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal, depois Instituto Biológico de São Paulo. Criado em 1927, em decorrência de comissão instituída pelo governo do Estado de São Paulo para combater a broca do café (praga essa que destruía os cafezais paulistas e ameaçava esta produção), o novo instituto passaria a coordenar um programa permanente de defesa sanitária da lavoura e da pecuária paulistas (Dantes, 1980).

A continuação do processo de institucionalização da ciência nacional – que no período republicano adquire novas feições, com a profissionalização e especialização dos intelectuais tem como marco importante a fundação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1949, entidade criada sob a égide da afirmação da ciência e do papel dos cientistas no país."

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Fonte:
WANDA LATMANN WELTMAN: "A EDUCAÇÃO DO JECA: CIÊNCIA, DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E AGROPECUÁRIA NA REVISTA CHÁCARAS E QUINTAIS - 1909-1948". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História das Ciências Orientadora: Profa.Dra. Nísia Trindade Lima). Rio de Janeiro, 2008.

Nota
:
A imagem (fonte: Museu Nacional) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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