A morte como espetáculo



"Como vimos desde o início de nossa trajetória, a morte como espetáculo já rondava os filmes documentários desde o final do século XIX. Pensar em sua representação nos remete ao trabalho de Ariès, citado por Vivian Sobchack (2005, p. 128), quando o mesmo assinala as mudanças radicais por que passou a significação social da morte e do morrer ao longo dos séculos, transformando-se de um evento social e público em uma experiência privada e anti-social. Para ele a morte, separada da vida social cotidiana, perde o seu aspecto natural e, ligada ao irracional, o convulsivo, o erótico, o sexual e o privado, deriva em um fascínio mórbido, sendo associada ao erótico e ao exótico (SOBCHACK, 2005, p. 129). De acordo com Áries, a partir do século XVIII, o homem ocidental passa a dar à morte um novo sentido. Ao mesmo tempo que a exalta, dramatiza, e deseja de forma impressionante arrebatadora, se ocupa menos da própria morte, direcionando-se para a morte do Outro (ARIÉS, 2003, p. 64). Ele observa também que desde finais do século XV os temas da morte carregam-se de um sentido erótico. Segundo o autor:

Do século XVI ao XVIII, cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na literatura, associam a morte ao amor, Tanatos e Eros – temas erótico-macabros ou temas simplesmente mórbidos, que testemunham uma extrema complacência para com os espetáculos da morte, do sofrimento e dos suplícios. Carrascos atléticos e nus arrancam a pele de São Bartolomeu. Quando Bernini representa a união mística de Santa Teresa e Deus, inconscientemente aproxima as imagens da agonia e do transe amoroso
(ARIÈS, 2003, p. 65).

Ele sugere que como o ato sexual, a morte passa a ser cada vez mais considerada uma transgressão que arrebata o homem de sua vida cotidiana, de sua sociedade racional, de seu trabalho monótono, para submetê-lo a um paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional, violento e cruel (ARIÈS, 2003, p. 65). Tornada interdita e segregada, ganha um novo espaço nas mentalidades de então. Interdição cuja significação pode ser resumida, como nota Bataille (2004, p. 64) a um simples elemento: a violência – relacionada de modo notável à sexualidade e à morte. Segundo ele:

a violência e a morte que ela significa possuem um duplo sentido: por um lado o horror não afastado, ligado ao apelo que a vida inspira; por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo aterrador, fascina-nos e provoca, uma perturbação soberana. (...) A interdição, no caso do cadáver, nem sempre parece inteligível. Em Totem e Tabu, Freud, em razão de seu conhecimento superficial dos dados – aliás, hoje menos imprecisos – da etnografia, admitia que, geralmente, a interdição (o tabu) se opunha ao desejo de tocar. Antigamente o desejo de tocar os mortos não era sem dúvida maior do que é hoje. A interdição não previne necessariamente contra o desejo: na presença do cadáver, o horror é imediato e certo, e é, por assim dizer, irresistível
(BATAILLE, 2004, p. 74).

Essa abordagem pode ser muito bem representada pelas exibições de cadáveres que atraíam enormes multidões ao necrotério de Paris no final do século XIX. O caráter espetacular desses eventos pode ser exemplificado nas palavras de Schwartz (2001, p.413):

(...) o necrotério atraía tanto visitantes regulares quanto grandes multidões de até 40 mil pessoas em seus dias mais movimentados, quando a história de um crime circulava na imprensa popular e os visitantes faziam fila na calçada à espera de andar em fila pela
salle d’exposition para ver a vítima. (...)No fim do século XIX, o necrotério (morgue) apresentava uma salle d’exposition, onde duas filas de cadáveres, cada uma em sua laje de mármore, eram exibidas atrás de uma grade janela de vidro com cortinas verdes de cada lado. (...) Das três grandes portas frontais, a do meio permanecia fechada, e os visitantes faziam fila, entrando pela esquerda e saindo pela direita(...).

A autora enfatiza, nesse ponto, o caso do cadáver de uma menina de
quatro anos encontrada em julho de 1886 em um vão de escada na capital parisiense – a Enfant de la rue Vert-Bois. O corpo, transferido para o necrotério, não mostrava sinais aparentes de ferimentos, além de discreta escoriação na mão direita. De acordo com os jornais da época, a exibição do cadáver da menina – trajando um vestido e colocado na salle d’exposition, “em uma cadeira coberta por um pano vermelho que salientava ainda mais a palidez da pequena morta” – atraiu uma “multidão considerável”, sendo estimada em aproximadamente 50 mil em 3 de agosto daquele ano e chegando – segundo o Le Matin – a 150 mil o número de pessoas que fizeram fila para ver o corpo. Este era preservado em uma caixa refrigerada, onde era depositado a cada noite, sendo devidamente autopsiado somente quando o estado de decomposição o exigiu. Ou seja, o espetáculo teve primazia às necessidades legais, sendo que no dia da autópsia, em que foi revelada uma morte natural (a criança, que não chegou a ser identificada, sufocara ao engasgar-se com uma minhoca), foram registrados na imprensa os sentimentos da multidão que se amontoou naquele dia, somente para “ter a decepção de não ver a criança exibida em sua cadeirinha” (SCHWARTZ, 2001, pp. 416, 417).

Essas espetacularização também pode se relacionar ao que Sobchack enfatiza, ainda se referindo a Ariès, de que:

(...) ao remover o evento da morte natural do olhar cotidiano para preservar seu exotismo e estranheza, e ao diminuir, tornando-os indecorosos, os excessivos deslocamentos da morte encontrados nas representações sociais do século XIX, para finalmente rejeitá-los, a cultura ocidental do século XX efetivamente fez da morte natural um tema “tabu” para o discurso público e limitou drasticamente as condições para a sua representação. Ao se remover a morte natural do espaço e do discurso públicos, só o que fica nas conversas e lugares públicos é amorte violenta (SOBCHAK, 2005, p.131)."

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Fonte:
LÚCIO DE FRANCISCIS DOS REIS PIEDADE: "É tudo verdade? A exploração no documentário e o documentário de exploração". (Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Multimeios sob a orientação do Prof. Dr. Marcius César Soares Freire). Campinas 2007.

Nota
:
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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