“O objeto deste trabalho não são os estudos filosóficos e históricos de Foucault, por isso não entraremos a fundo em suas análises. No entanto, mostra-se necessária uma abordagem de como se processou seu desenvolvimento epistemológico, até se chegar ao ponto de interesse para esta pesquisa: a teoria em torno do poder.
Os estudos de Foucault são divididos em duas fases: a arqueologia e a genealogia, ou seja, a arqueologia do saber e a genealogia do poder.
Segundo suas próprias palavras, ele entende por “‘arqueologia do saber’ (...) o balizamento e a descrição dos tipos de discurso” ([1973], 2006, p. 49), isto é, o “termo ‘arqueologia’ remete, então, ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo” ([1978], 2006, p. 257). A arqueologia será responsável pela detecção dos discursos e de sua formação histórica em um determinado campo de saber: como, em um determinado campo, dado discurso se formou; como surgiu e se configurou um discurso legitimado sobre determinado assunto. O discurso, dentro da arqueologia, possui uma ordem, uma normatividade – a ordem do discurso –, que ultrapassa as categorias linguísticas e normativas da língua. Essa ordem ou norma tem inserção histórica ou social. E é assim que o autor, analisando os discursos sobre a loucura, a sexualidade, a medicina, por exemplo, vai mostrar como foi sua formação histórica, como eles se modificaram, em quê, em qual momento. A partir desse estabelecimento de suas trajetórias, será possível, assim, detectar seu aparecimento em determinado momento histórico e suas influências no campo social. Pois, para Foucault, o que interessa,
no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim, trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições ([1978], 2006, p. 255-256).
Podemos estabelecer aqui um liame com o capítulo anterior. Se o que interessa no “problema do discurso é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento”, pode-se remeter tal assertiva à configuração do que, na AD pêcheuxiana, é chamado de posição-sujeito.
A posição-sujeito não remete a um lugar subjetivo, individual, mas à posição que o indivíduo ocupa para dizer o que diz. Insere-o, assim, em um contexto social que determina o que pode e deve ser dito, de que forma, em que momento, por quem. Isso quer dizer que essa posição-sujeito sofre assujeitamento, pois está ligada à forma-sujeito histórica, isto é, em um dado momento histórico, é a partir da forma-sujeito histórica que as posições-sujeito surgem e se apresentam. Segundo Orlandi (2005, p. 50): “A forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual representa bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas: pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la.” Nesse sentido, a forma-sujeito histórica submete os indivíduos, em suas posições-sujeito, ao discurso, que, por sua vez, ganha maior ou menor legitimidade dependendo do lugar e da posição social que o produtor do discurso ocupar – isto é, da posição-sujeito. E é esse grau de legitimação que vai fazer com que determinado discurso, produzido em determinada época e por determinada pessoa ou grupo de pessoas, remetidas a uma dada inserção social, ganhe legitimação tal que seja tomado como regime de verdade. É esse estabelecimento de determinados regimes de verdade (o discurso sobre a loucura, a sexualidade, a prisão) que é o objeto de estudos da arqueologia foucaultiana.
Novamente aqui podemos remeter ao capítulo anterior. Como foi dito no item 1.3 desse capítulo, não existe um “regime de verdade discursivo”. A verdade é produzida pelo e no discurso, e o que Foucault procura mostrar é que essas “verdades” podem se modificar a partir do momento em que as regras de formação dos discursos que “portam” essas supostas verdades são modificadas. Falaremos sobre a “verdade discursiva” mais adiante neste capítulo.
E se o discurso produz “efeitos de verdade”, está, por sua vez, permeado pelos efeitos de poder que percorrem todo e qualquer discurso. E aqui anunciamos a nova fase dos estudos de Foucault. Depois da arqueologia do saber, a genealogia do poder. Contudo, estas não são estudos estanques, mas instâncias que se entremeiam, imbricam, resultando na expressão foucaultiana que resume suas pesquisas: o poder-saber.
A noção de poder para Foucault difere do que entendemos correntemente por poder. Não se trata de algo simplesmente repressivo; ele está pulverizado no tecido social, em todas as instâncias, bem como nas produções discursivas. Segundo suas próprias palavras: “O poder não opera em um único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira como se tratam os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as mulheres...” ([1973], 2006, p. 262). Nesse sentido, o poder é produtor: de individualidade, de mais poder, de segregação mas também de junção. Ele não vem de cima, mas se espraia, configurando-se em um micropoder, que é mais eficaz que o poder reconhecido como autoritário – mais eficaz porque não é localizável.
Foucault parte das instâncias discursivas tratadas em sua arqueologia para descobrir nelas esse agenciamento de poder insidioso e permanente. Um poder que coage os saberes, mantendo-os em uma teia discursiva que “seleciona”, por assim dizer, quais saberes devem ou não ganhar legitimidade. Segundo ele, quando se elege um saber, ou um discurso – o científico, por exemplo –, como o saber legítimo, desqualifica-se, em contrapartida, um outro que não pode ganhar esse estatuto. Nesse sentido, a produção de saberes está sempre em uma relação dialética com a desqualificação também de saberes. De acordo com o autor: “Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade” (1979, p. 172).
Portanto, o que Foucault pretende com sua genealogia é trazer à tona esses saberes não legitimados e desqualificados pelo poder. É descobrir, perceber os efeitos de poder que são expressos nesses discursos, que fazem com que a trama discursiva seja permeada pelo binômio poder-saber. Ainda em suas palavras:
A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico (1979, p. 172).
Pode-se observar, então, que para Foucault saber e poder são inseparáveis. E se o poder muitas vezes se expressa através do saber, como no caso dos discursos científicos, o saber, por sua vez, tem sua expressão maior no discurso, e daí este se torna a unidade de análise da qual Foucault parte na consideração dos seus objetos de estudos:
Eu parto do discurso tal qual ele é! Em uma descrição fenomenológica, se busca deduzir do discurso alguma coisa que concerne ao sujeito falante; tenta-se encontrar, a partir do discurso, quais são as intencionalidades do sujeito falante – um pensamento em via de se fazer. O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder ([1978], 2006, p. 253 – grifos nossos).
Assim, se o poder faz parte da trama discursiva, se ele a perpassa sem ser sua origem, o que há na relação discurso-poder-saber é, pode-se supor, um mecanismo de retroalimentação, em que as três instâncias engendram umas às outras, autorregulando-se, autoproduzindo-se e produzindo, por sua vez, efeitos na trama social. Um saber que é expresso em um discurso legitimado por um determinado poder. E é exatamente disso que trataremos no tópico seguinte: o saber expresso pelo discurso do tradutor legitimado pela posição que ele ocupa nesse campo de saber. Ou seja, de que forma o poder-saber perpassa o discurso do tradutor, objeto desta dissertação?"
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Fonte:
DÉBORA DE CASTRO BARROS: "AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LUGAR DISCURSIVO: UMA ANÁLISE DAS NOTAS DE DUAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE O PAI GORIOT". (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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Arqueologia e Genealogia: as duas fases dos estudos de Foucault
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Texto muito elucidativo. Recomendo a leitura e o aprofundamento no tema, de extrema importância para qualquer um que pretenda manter posicionamento crítico diante da realidade, tão apinhada de "verdades" questionáveis, incansavelmente repetidas e que são aceitas - inconsciente e involuntariamente, por vezes - pela grande massa. Parabéns.
ResponderExcluirGostei muito do texto. lançou luz sobre a diferença entre arqueologia e genealogia. Bem esclarecedor!
ResponderExcluirMuito obg por me ajudar a entender a diferença entre genealogia e arqueologia.
ResponderExcluirTexto perfeito!!!
ResponderExcluirbom texto e aparece no topo da pesquisa pelo site de busca Google
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