A figura de D. Pedro I

E, para iniciar a série "Fundo do Baú - História", traremos um texto escrito em 1922, durante o Centenário da Independência do Brasil, de autoria do historiador Rocha Pombo. O texto foi publicado na revista "America Brasileira", que está disponível digitalmente no site da Biblioteca Brasiliana - USP.

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A figura de D. Pedro I

Não conheço em nossa historia nenhuma figura cujo perfil psicológico seja mais difícil de fixar que o do primeiro imperador. Não é possível julgá-lo sem risco de cometer injustiça, si quisermos apenas destacar-lhe da assombrosa versatilidade de sentimentos e impulsos qualquer traço isolado que o caracterize. Uma, ainda assim, vaga idéia do que ele foi só há de ressaltar talvez de uma síntese das contradições e desordens em que lhe fica a figura no meio dos acontecimentos em que teve o seu grande papel. Para isso não tenho mais do que recordar fatos da época que estamos neste momento mesmo comemorando.

Tinha-se feito a independência. Enquanto esta era a aspiração dominante na alma dos brasileiros, todas as classes e todas as facções andavam como fraternizadas em torno da grande causa.

No dia seguinte ao da aclamação do imperador, tudo começara a mudar. Os mesmos homens que tinham feito a declaração da independência estavam divididos, e reclamando cada grupo o direito de orientar e dirigir a organização do novo Estado.

No meio das facções vitoriosas, o agora em luta, viu-se D. Pedro, moço de 24 anos, com todos os vícios e virtudes de herói fora do seu tempo, e como a insuflar em vez de reprimir discórdias.

Por uma fatalidade de circunstâncias que pareciam conjuradas, assumira ele o primeiro posto em fase tão penosa, e sem ter as grandes qualidades que se requerem para função de tal magnitude.

E não tinha essas qualidades — cumpre dizê-lo — menos por míngua de natureza que por defeito de educação. Poder-se-ia mesmo dizer com toda justiça que para ser grande homem bastaria que lhe não tivessem negado tudo o que o seu espírito tinha o direito de esperar da sua alta condição social. Seria bastante que tivessem preparado o homem, já que não quiseram preparar ó rei.

Ainda assim, é preciso reconhecer, a sua vida tem lances que o põem muito acima das figuras comuns entre os que têm tido o papel de destaque no mundo.

Quando o comparamos ao pai é que sentimos bem como avulta a nossos olhos a personalidade profundamente delineada, forte e incisiva de Pedro I.

D. João VI caracterizava-se pelas duas grandes virtudes que lhe absorviam toda a existência moral, e que o fechavam para tudo mais: a resignação, levada a um quase renunciamento de si mesmo; e a bondade, mas bondade rude e inconsciente, que se diria antes desídia ou apatia de alma neutra, ou pelo menos desprovida de uns quantos instintos sem os quais o ofício de rei há de ser mesmo um indizível martírio.

E é por isso, talvez em grande parte, que D. João foi seguramente, não só o príncipe, mas o homem mais infeliz do seu tempo.

Andou sempre tão por longe do destino com que o surpreenderam, que mesmo quando se sentia sacudido de alguma emoção muito forte, o coitado se desafogava chorando... como si padecesse até das próprias alegrias...

E chorou tantas vezes na vida que bem se poderia dizer — sem nada sacrificar-lhe da figura histórica — que durante os seus trinta e três anos de reinado, o que mais conheceu foi a nevrose da dor, a sensibilidade doentia do devoto, a tristeza do penitente, e mesmo uma espécie de volúpia de lagrimas, ou de efusão perene de pranto,, com que se consolava de tanto ceder e abdicar.

Chorou quando lhe mostraram o Moniteur, e viu como Bonaparte lhe decretara a distribuição do reino. Chorou quando soube que Junot marchava sobre Lisboa. Em prantos saiu a barra do Tejo, e em prantos pôs pé vacilante em terra baiana.

E daí por diante, enquanto a história nos dá aqueles gestos heróicos de guerra ao arbítrio da Europa, e do novo império de onde alça a voz para o mundo — dali por diante, para todos os lances a que o levava, como si fora um precito, o exercício da majestade — viveu o misero guardando a sua reserva de lagrimas, que não se «abe como é que o lar lhe deixava...

É vê-lo, afinal, daqui sair soluçando como uma criança, e lá, na velha pátria querida, caindo, de coração transbordante, esmorecido de medo e alucinado de alegria, nos braços do seu povo.

D. Pedro era um contraste rude e esturdio com tudo isso. Nunca lhe viram úmidos sequer aqueles olhos, vivos e tráfegos, que ansiavam de ver.

Enquanto aquele outro andou sempre como lhe diziam que era preciso andar — este vem para concorrer com a fortuna. Devia temê-lo a velha deusa falaz, ou pelo menos, tratá-lo com muito jeito; pois que na vida não andaria ele só a espera da voz de comando.

Este há de, por si mesmo, bem ou mal, fazer o seu papel. Temperamento ardente, irrequieto, resoluto, quase impulsivo — não recuava nunca... salvo si percebesse que o capricho era do destino.

Ainda assim, pôde ser que o destino tenha rido alguma vez do rei: do homem — nunca.

Para julgar este homem, seria necessário, antes de tudo, conhecer a sociedade daquele tempo, a sociedade de transição daqueles dias; principalmente as opiniões dominantes, as idéias que se agitam, as aspirações que absorvem todas as forças no momento mesmo em que ele aparece no cenário político, cheio de entusiasmos pelo seu papel.

No período que se segue á chegada da corte, não haveria provavelmente um só brasileiro, do mais humilde ao mais eminente, em cuja consciência não estivesse já muito clara a diretriz que os negócios políticos iam tomar. P6de-se mesmo avançar que a fase joanina foi a fase de gestação do que se vai fazer em 1822. Andavam no ar as procelárias, e todos presentem que a tormenta não tarda.

Para compreender-se como tão rápido se renova aquela sociedade, e se distancia dos tempos coloniais, não é mais necessário do que ver: primeiro, aquelas vicissitudes que vinham abalando o trono e as instituições que ele representa; depois, o orgulho que sentiram os brasileiros ao tomar a proteção da realeza desventurada; e sobretudo a tendência americana, que v«via já no sentimento popular, e que a presença da corte não faz menos que fortalecer. Estas florestas, estas baías, estas montanhas, estes céus, falavam desde muito insidioamente à alma renovada da raça.

Em tal meio, o Príncipe, mesmo que fosse capaz de encarar discretamente a vida, tinha de ser liberal: esquecer-se um pouco de si mesmo era o processo mais expedito e seguro de se impor como necessário.

Está-se vendo, pois, como o liberalismo de D. Pedro é inconsciente. Provinha mais naquele instante, não certamente só de calculo, mas da leviandade do seu animo, aberto e receptivo, do que de razão e consciência.

Nele o velho instinto dos avós disfarçava-se apenas sob aquelas aparências de alma nova. Com todas aquelas expansões de amor de pátria, de paixão pela liberdade, de culto pela justiça, de submissão ás leis da historia — sabe ele muito bem que leva galhardamente o seu destino.

Passada, porém, aquela fase, no dia em que se sentiu desenganado de uns tantos sonhos — foram-se os lances augustos, as tiradas heróicas: e o antigo ser, que ia resonando no fundo daquela natureza excepcional, acordou e bramiu.

Há um processo muito simples de fazer a psicologia deste homem como político: é tirar das cartas que ele escreveu ao pai o que elas têm de substancial... nas entrelinhas...

Desde a primeira, começa ele a preparar o espírito do pobre velho, lá reduzido a toda a tristeza de um rei Lear, abandonado de todos, principalmente dos seus próprios; mais sombra de homem do que homem, dementado de uma vez pelo infortúnio.

O misero agora só era pai. Foi o único instinto que a desgraça lhe deixou: o do sangue. Do meio dos sustos em que vivia, aquele ser lancerado só tem o grito da angustia paterna, como ultimo sinal de grandeza que nele deixaram os tufões de escarmento.

Muito fácil foi, portanto, ao Príncipe amanhar o terreno para a obra planeada.

Desde meados de 1821 que, por ele chefiada, entra a conspiração na sua fase decisiva.

Não é de crer que o rei, lá na metrópole, soubesse ou entendesse direito quanto iam fazendo as Cortes. O mais que com certeza ele sabia é que tinha diante de si, como um espantalho, aquele poder novo - estanho que se levantara incontrastável à frente do trono.

Dizia-lho daqui o filho umas coisas desusadas, falando-lhe uma linguagem para ele desconhecida e incompreensível.

Primeiro. D. Pedro esta. com toda coragem, ao lado da majestade. .. porque bem sabe que daquela majestade não lhe vêm gestos esquerdos... Ao lado da majestade vai, muito fiel, com muita astúcia e tática segura, pondo em outro lugar o interesse supremo da própria monarquia...

Em seguida, pouco a pouco, vai associando, fazendo-a inseparável da sua. a autoridade que lá. na metrópole, já não estava integral nas mãos do Rei. E enquanto as Cortes decretam medidas tendentes a reprimir-lhe os Ímpetos e a humilhar os brasileiros cuida ele de fazer sentir ao pai que a assembléia desmandada vai tornando a monarquia incompatível com o Brasil, e que este, "por fidelidade", está deliberado a resistir e até a afrontar as Cortes, divorciadas da alma portuguesa, e principalmente da causa da dinastia.

Foi com este jeito e manha subtil que ele teve tempo de aparelhar- se de tudo para o rompimento formal. Nos princípios, muito respeito pelas soberanas Cortes; depois de pronto — protestos e detestações contra aduelas Cortes "pestíferas"...

É assim que tem de ser definitivamente julgado este homem. Para ele, o pensamento capital era vencer: tudo o mais era secundário.

Para que a sua voz fosse ouvida dos brasileiros, falava-lhes muito em "liberdade": aos portugueses falava sempre só em "justiça"- Mas essa justiça e essa liberdade deviam andar sempre cautelosas e muito dóceis ao talante do patrono.

E tanto é assim que no dia em que se julgou seguro, vanglorioso das suas vitórias, tudo foi esquecido: a sua vontade, os seus impulsos de império puseram-se em conflito com os princípios , as idéias que ele próprio com tanta ufania proclamara...

Eis aí D. Pedro como político.

E para completar, com a feição psicológica do homem, o perfil esboçado, bastaria acrescentar muito pouco.

Ele foi, como homem, o que ficou sendo como rei: um estouvado na vida; mas um estouvado forte, decidido,'que sabe quanto vale a esturdia bem calculada quando se tem sobre os ombros a indiscutível autoridade que se funda no prestigio da tradição e do grande papel que se tem no drama do mundo.

A familiaridade um tanto desbragada, que ele sabia pôr em equilíbrio com os ares augustos; a clemência bem medida, a coragem temerária, as leviandades que lhe encheram a vida e com que temperava os Ímpetos estultos e os bruscos assomos — tudo isso produzia, no animo dos que o cercavam, efeitos mágicos; pois todos bem sentiam como não há nada, neste mundo, tão cativante como um bom movimento ou um gesto de paz que vem da mesma altura de onde podem cair fulminações de morte.

Por isso mesmo é que D. Pedro, tendo sido afinal tão detestado entre os políticos, pode fazer alguns amigos que lhe foram fieis até o fim. Enquanto que o segundo imperador — espírito sereno e sábio: grande alma paternal desde os vinte anos; consciência indefectível de juiz até na desgraça; e que viveu, pode-se dizer, condescendendo e perdoando — não se sabe si teve amigos...a não ser o coração anônimo de todo mundo...

Si fosse preciso atenuar o rigor do juízo que a historia te de proferir, não há duvida que temos de lançar á conta das circunstâncias muita coisa do labelo contra D. Pedro formulado.

Antes de tudo, conquistara ele a "sua gloria" multo depressa. Na sua idade era muito difícil, a um espírito que nada tinha de excepcional para tarefa tão alta, conservar serenidade e não perder a tramontana.

Assim que se viu coroado imperador, desvaneceu-se da sua fortuna. Presumia-se único "autor de tudo que se tinha feito". Persuadido de que era um homem de gênio a dirigir os acontecimentos não teve o seu orgulho mais limites.

Os homens mais notáveis daquela época foram minguando diante dele.

Era ele só o legitimo criador deste povo.

Na historia da América, o seu lugar há de ser ao lado dos Bolívar e dos Washington...

Quem sabe mesmo si tudo isso seria pouco... Momentos houve, realmente em que parecia fazer de Bonaparte, domando por sua vez a América. Vejam-se as suas proclamações, o tom das suas falas ás tropas. Tinha feito as suas campanhas do largo do Rodo, e do Campo de Santana... — que mais lhe faltava?

Não há duvida que chegou a sonhar grandes coisas nos fastos do seu tempo. E muito seriamente depois que sentiu como estas democracias americanas não se acomodam á majestade das grandes figuras.

Estava D. Pedro tão convencido de que o Brasil todo lhe obedecia, e de que ao seu poder e ao seu prestigio se haviam confiado estes povos — que não viu mais empecilho no caminho aberto ás suas ambições. Senhor absoluto do país, começou logo a trata-lo como "coisa sua", e não teve mais linha, nem como rei, nem como homem. Quis até dar ao Rio uns ares de Versailles, com Trianons e tudo, e a que não faltou nem aquela Pompadour de fancaria.

O que ele queria era mostrar que tinha nas mãos este pedaço do mundo.

Agora o que se não deve calar ê que para tudo isso concorriam,; além do que já vimos, os próprios homens do tempo com as lisonjas e adulações que andavam todos disputando a honra de fazer-lhe.

Não era só a tropa que o acalmava como seu "adorado imperador" As próprias deputações da Constituinte, quando iam felicita-lo nos dias de gala, punham-lhe em relevo as "sublimes qualidades" e as "heróicas ações"; e diziam-lhe que ele vencia "mais com a gloria do seu nome" do que outros reis com as armas .

Da tribuna daquele mesmo congresso, onde se representava o que tinha de mais vigoroso aquela geração, havia quem bramasse comovido, e com a ênfase das grandes afirmações, que ele era... a delicia dos brasileiros... lamentando certamente que tivesse havido já um outro que o fosse do gênero humano...

Si o próprio Antônio Carlos dizia que entre ele (o monarca) e um pobre mortal (a Câmara é aqui o pobre mortal) nada pôde haver de comum... Que ele está "posto além da humanidade e quase endeusado... Que os ministros "são servos do imperador...

Quanto era ainda poderosa a influencia da superstição romana no espírito daqueles homens!

E como queriam então que D. Pedro não se perdesse?

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Fonte:
Rocha Pombo: Revista "America Brasileira", ano I, Números 9 a 12, Edição do Centenário, 1922, disponível digitalmente no site da biblioteca: Brasiliana - USP

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