Biopolítica: Direito de vida e de morte



“Segundo Foucault (1997b), por muito tempo, uma das principais características do poder soberano teria sido o direito sobre a vida e morte de seus súditos, provavelmente derivado da patria potestas romana, em que o pai de família tinha o direito de retirar a vida de filhos e escravos caso lhe conviesse. No caso do soberano esse poder era admitido quando sua existência estava exposta, como ameaça de inimigos externos, e os súditos deveriam tomar parte na defesa do estado, exercendo assim o soberano sobre eles, ―um direito indireto de vida sem propor ―diretamente a sua morte, por m, o poder direto sobre a vida era permitido caso houvesse falta de cumprimento das leis. Nesse tipo histórico de sociedade, o poder se exercia principalmente através do confisco, sendo possível desde a apropriação de riquezas, extorsão de produtos, de bens, de serviços, de trabalho até a própria vida (Foucault, 1997b, p.128).

Entretanto, a partir da Época Clássica, ocorreram grandes transformações nos mecanismos de poder. O confisco deixou de ser a mais importante expressão de poder soberano para ser ―somente uma peça, entre outras com funções de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas e o direito sobre a morte se apoiou nas ―exigências de um poder que gere a vida (Foucault, 1997b, p.128). Para Focault este deslocamento fez com que guerras fossem travadas em nome da vida, uma vez que foram ―como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens (Foucault, 1997b, p.129). Nesse contexto, ―os que morrem no cadafalso, são cada vez mais raros, ao contrário dos que morrem na guerra, ou seja, a partir do momento em que o propósito do governo é gerir a vida, a pena de morte já não pode ser mantida como resposta a quem desafia o poder do soberano. Sua aplicação tornou-se cada vez mais difícil, justificando-se apenas executá-la junto ― àqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros, pois ―como um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar, multiplicar a vida e pô-la em ordem? (Foucault, 1997b, p.129-130)

Teria ocorrido uma desqualificação da morte, uma vez que o direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído pelo poder de causar a vida ou devolver à morte

Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação: a morte é o limite, o momento que lhe escapa: ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais privado‘. Não deve surpreender que o suicídio - outrora crime, pois era um modo de usurpar o direito de morte que somente os soberanos (...) tinham o direito de exercer – tenha se tornado, no decorrer do século XIX, uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica; ele fazia aparecer, nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida, o direito individual e privado de morrer.
(FOUCAULT, 1997b, p. 130).

Esse poder sobre a vida teria se desenvolvido a partir do século XVII, constituído por dois pólos ―interligados por todo um feixe intermediário de relações: o primeiro pólo centrou-se no corpo como máquina visando adestramento, ampliação de aptidões, extorsão de forças, crescimento de utilidade e docilidade, asseguradas por procedimentos da anátomo-política do corpo humano; o segundo pólo, formado em meados do século XVIII, centrou-se no corpo espécie, no corpo vivo como suporte de processos biológicos como nascimento, morte, saúde, longevidade, sendo todos esses processos assumidos mediante controles reguladores, ou seja, mediante uma biopolítica da população (Foucault, 1997b, p.131).

Desse modo, através da disciplinarização dos corpos e da regulação das populações desenvolveu-se a organização do poder sobre a vida, fazendo com que a morte, antes símbolo máximo do poder soberano, fosse ―recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida ocorrendo rapidamente o surgimento de numerosas e diversas técnicas para se obter a ―sujeição dos corpos e o controle das populações, surgindo assim, o biopoder, cuja articulação ocorreu ―na forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder no século 19: o dispositivo da sexualidade (Foucault, 1997b, p.131-132).

Esse biopoder foi elemento fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, que só obteve êxito pelo ajustamento dos fenômenos da população e do controle dos corpos no aparelho produtivo, sendo que ―o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento de grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos (Foucault, 1997b, p.133).

Para Foucault ―a entrada da vida na história foi o maior fenômeno ligado ao desenvolvimento do capitalismo. Entretanto, isso não quer dizer que um primeiro contato da vida com a história tenha se produzido neste momento, mas sim que o desenvolvimento econômico e o aumento da produtividade agrícola no século XVII, aliados ao desenvolvimento dos conhecimentos sobre a vida, de medidas que visavam à sobrevivência dos homens, permitiu um relativo domínio sobre a vida e conseqüentemente um afrouxamento das ameaças de morte, ou seja:

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete o político; o fato de viver não é mais este sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai em parte, no campo de controle do saber e de intervenção de poder. Este não estará mais somente às voltas com sujeitos de direito sobre os quais o último acesso é a morte, porém com seres vivos, e o império que poderá exercer sobre eles deverá situar-se no nível da própria vida; é o fato do poder encarregar-se da vida, mais do que ameaça de morte, que lhe dá acesso ao corpo.
(FOUCAULT, 1997b, p.134).

Desse modo, têm-se a ruptura produzida no discurso científico, uma vez que o homem ―em sua especificidade de ser vivo e em relação aos outros seres vivos necessitou buscar um ―novo modo de rela ão entre a história e vida (Foucault, 1997b, p.135), resultando em sociedades reguladoras e normalizadoras que buscam através de constituições e códigos, tornar aceitável um poder normalizador, efeito histórico de tecnologias de poder centradas na vida. Foucault nomeia de bio-história as pressões existentes quando os processos históricos e os movimentos da vida interferem entre si e chama de biopolítica os mecanismos que fazem com que a vida entre no domínio dos cálculos explícitos, fazendo do poder-saber um agente de transformação da vida humana."

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Fonte:
PAULO SERGIO RODRIGUES DE PAULA: “BAREBACKING SEX: DISCURSIVIDADES NA MÍDIA IMPRESSA BRASILEIRA E NA INTERNET”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Mestre em Psicologia, pela Universidade Federal de Santa Catarina. Área de concentração: Práticas Sociais e Constituição do Sujeito Linha de pesquisa: Gênero, gerações e diversidades Orientadora: Dra. Mara Coelho de Souza Lago). Florianópolis / SC, 2009.

Nota
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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