Conceitualização da Loucura na Tradição Cultural do Ocidente



[...] nossa cultura havia perdido seu berço trágico desde o dia em que expulsou para fora de si a grande loucura solar do mundo, os dilaceramentos em que se realiza incessantemente a “vida e morte de Satã, o Fogo”. [...] a experiência da loucura quese estende do século XVI até hoje deve sua figura particular, e a origem de seu sentido, a essa ausência, a essa noite e a tudo que a ocupa. A bela retidão que conduz o pensamento racional à análise da loucura como doença mental deve ser reinterpretada numa dimensão vertical; e neste caso verifica-se que sob cada uma de suas formas ela oculta de uma maneira mais completa e também mais perigosa essa experiência trágica que tal retidão não conseguiu reduzir (FOUCAULT, 1999, p. 29).

Loucura
é uma palavra que remete a muitos sentidos e usos no cotidiano: 1) distúrbio, alteração mental caracterizada pelo afastamento mais ou menos prolongado do indivíduo de seus métodos habituais de pensar, sentir e agir; 2) sentimento ou sensação que foge ao controle da razão; 3) paixão, gosto desmedido por alguém ou por algo; 4) ato ou fala extravagante, que parece desarrazoado; 5) atitude, comportamento que denota falta de senso, de juízo, de discernimento; 6) atitude imprudente, insensata; 7) caráter de tudo que ultrapassa o convencional, de quanto foge às regras sociais; 8) alegria extravagante, insana; 9) desatino, desvario; 10) caráter do que é extraordinário, excepcional, maravilhoso; 11) quantia exorbitante (LOUCURA, 2009).

Os conceitos de loucura são diversos dependendo do contexto de sua formulação: se no campo da ciência; se no das idéias morais ou religiosas; se no âmbito da poesia (PESSOTTI, 1995). Neste último âmbito e nas artes em geral encontramos, desde longas datas até o presente, obras que anunciam possibilidades reveladoras e libertadoras na loucura – o “Elogio da Loucura”, ensaio escrito por Erasmo de Roterdã em 1509 e publicado em 1511, é uma dessa obras, inclusive considerada como um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos desencadeadores da Reforma Protestante. As proposições científicas como as neurociências e os clínicos de saúde mental a definem como doença. Ao lado da concepção de doença, vemos a loucura colocada próxima da genialidade por essas mesmas proposições: “são famosos os níveis altos de criatividade e realização artística encontrados entre as pessoas com transtorno bipolar; menos conhecido é que as famílias das pessoas com esquizofrenia também contêm pessoas com realizações consideráveis” (PLISZKA, 2004, p. 178, grifo nosso). Os usos populares do termo exprimem o imaginário social fruto do intercâmbio entre várias áreas em que são exercitados os saberes e as reflexões humanas. Embora sejam raras as palavras que não remetem ao fenômeno da polissemia, no que diz respeito à loucura um fato é inegável: podemos vislumbrar nela uma das experiências humanas mais emblemáticas e sobre a qual o homem desde sempre se debruçou.

Pessotti (1995; 1996; 1999) desenvolve uma trilogia a respeito da trajetória histórica do conceito de loucura desde a antiguidade até o século XIX. Ele investiga textos expressivos de obras que se ocuparam em caracterizar a loucura “entendida [...] apenas como um estado individual de perda da razão ou do controle emocional” (1995, p. 7) – independentemente dos significados sociais ou políticos a que esse estado possa estar ligado. Para tanto, seleciona e compara trechos que “encerram alguma concepção teórica da loucura”, ou seja, “os que propõem alguma definição da loucura, ou alienação, apontam suas causas ou origens e caracterizam as diversas formas ou tipos que ela pode apresentar” (p. 7, grifo do autor). No percurso assim tecido, propõe ser discutível a afirmação de que o conceito atual de loucura é diverso do que foi designado pelo mesmo termo na Idade Média ou na Antiguidade Clássica. Contemporaneamente (como já indicado) não há um conceito de loucura, bem como não há um conceito medieval ou um antigo.

Nas definições existentes podemos distinguir conteúdos e pressupostos epistemológicos ou metodológicos que balizam cada uma delas. Mas um conceito contemporâneo pode apresentar parentescos claros com aspectos das definições antigas, quando comparado a estas quanto à etiologia (origens ou causas), por exemplo, mesmo não evidenciando qualquer parentesco com essas mesmas proposições quanto às formas ou tipos de loucura. Ou, ainda, encontramos classificações do século XIX com tendência marcadamente organicista, que explicam a loucura ora apegando-se aos dados da anatomia patológica, ora postulando processos orgânicos tão metafísicos como a crise humoral hipocrática proposta na Antiguidade (PESSOTTI, 1995; 1999).

De acordo com os achados desse autor, o quadro conceitual da loucura está caracterizado: (1) por uma diversidade de conceitos em função do contexto de sua formulação; (2) pela presença de conteúdos relativamente permanentes ao longo das épocas; e (3) por conotações típicas de um determinado período, autor ou “escola” de pensamento ou de pesquisa. Os critérios de inclusão, de distinção e de ênfase, empregados nesse quadro conceitual, variam de acordo com exigências epistemológicas e diferentes possibilidades de conceituação, em uma mesma época ou em épocas diversas. Por essa razão, “apenas por facilidade de comunicação, é possível falar numa concepção trágica, num conceito médico (atual ou não) ou numa concepção demonista medieval da loucura” (PESSOTTI, 1995, p. 9, grifo do autor).

Ele assinala, no entanto, que é relativamente recente, na história do conhecimento, uma concepção da loucura como um estado ou processo unitário, mais ou menos duradouro ou complexo, envolvendo disfunções orgânicas e afetivas. Em correspondência, uma “teoria” unificada da loucura não se encontra nas obras da antiguidade clássica, nem da Idade Média, porexemplo, a não ser no âmbito estrito de um organicismo intransigente (PESSOTTI, 1995, p. 9).

Considerando textos de autores da antiguidade clássica (principalmente Homero, Ésquilo, Eurípides, Hipócrates e Galeno), Pessotti (1995, p. 78) assinala três perspectivas na visão da loucura: (1) “como obra da intervenção dos deuses” – de Homero até a tragédia grega, predomina um enfoque mitológico religioso da loucura; (2) “como um produto dos conflitos passionais do homem, mesmo que permitidos ou impostos pelos deuses” – entre os trágicos, principalmente Eurípides, instala-se “uma concepção passional, psicológica, dos desvarios”; e (3) “como efeito de disfunções somáticas, causadas eventualmente, e sempre de forma mediata, por eventos afetivos” – “de Hipócrates a Galeno, consolida-se uma doutrina rigidamente organicista da insensatez ou da des-razão”.

Essas três perspectivas parecem constituir modos de pensamento permanentes na história do conceito de loucura:

A loucura é, na verdade, a perda do caráter distintivo do humano. E, diante desse fato, a constatação da precariedade da “essência” do homem se impõe de modo irrecusável. A autonomia pessoal cede lugar à entidade mitológica, à prepotência da natureza (animal) espelhada na força do instinto ou, ainda, às inevitáveis imposições das contingências corporais da vida humana
(PESSOTTI, 1995, p. 78, grifo nosso).

No interior dessas concepções, são apresentadas duas formas de loucura: agitada ou furiosa, podendo levar ao homicídio; e triste e medrosa. O autor chama a atenção para o fato de que nos textos do século V a.C. essas duas formas já recebem os nomes de mania e melancolia – termos utilizados no vocabulário psiquiátrico de hoje – e que o termo mania “é muito mais antigo, com o sentido genérico do delírio” (PESSOTTI, 1995, p. 78, grifo nosso).

Na sequência de seu trabalho, as obras que investiga são dos séculos XV e XVI e marcam a concepção medieval da psicopatologia, na qual a loucura é identificada ou associada à possessão diabólica – uma forma de pensar que, segundo o autor, tem raízes remotas na formação doutrinária do cristianismo. É interessante observar que, mesmo entre os médicos, podemos encontrar essa concepção. A esse respeito, Pessotti (1995, p. 90) menciona “um médico de Imola, Giovanni Battista Codronchi (1547-1628), cuja obra De morbis veneficis enumera os sintomas que indicam possessão diabólica”.

No século XVII, a intervenção médica no espaço hospitalar, antes eventual e paroxística, começa a ser regular e constante, permitindo “ao médico agrupar as doenças e, assim, observá-las de uma forma diferente, no dia a dia, em seu curso e evolução. Desta forma, produziu-se um saber sobre as doenças que, informado pelo modelo epistemológico das ciências naturais, ainda não havia sido possível” (AMARANTE, 2007, p. 25). Principalmente depois do século XVII o número de classificações da loucura em espécies e subespécies vai variar muito de um período a outro (PESSOTTI, 1999). No século XVIII consolida-se o domínio hegemônico da loucura pela medicina, através do enfoque da “alienação mental” e do “tratamento moral” proposto por Pinel (voltaremos a este tema posteriormente).

De acordo com Amarante (2007, p. 30),

[...] Pinel não elege o termo doença mental, mas alienação mental. Em discussões com Bichat, um dos pais da anatomia patológica, chegava a questionar se seria uma doença ou um processo de natureza distinta, pois considerava um erro procurar a sede da loucura, na medida em que nada era “mais obscuro e impenetrável”.

Pessotti (1999) informa que as categorias básicas herdadas do século V a.C, mania e melancolia, vão dar lugar a uma proliferação de gêneros e espécies que integrarão as classificações para uso clínico. Pinel, ao introduzir “o chamado ‘método clínico’, que implicava na observação prolongada, rigorosa e sistemática dos pacientes” (FERREIRA, 2007, p. 297-8), abre caminho para o desenvolvimento da nosografia: a descrição e classificação da loucura de acordo com os padrões clínicos (os critérios nosológicos), “isto é, segundo suas causas clinicamente acertadas (etiologia), segundo seus efeitos típicos sobre as funções orgânicas e o comportamento do paciente (sintomas) e segundo sua evolução clínica típica (marcha)” (PESSOTTI, 1999, p. 8).

Segundo Pessotti (1999), os critérios de classificação identificados até este período são: o filosófico (um critério milenar) – numa alusão às faculdades da alma, como formuladas nas obras de Platão e Aristóteles; o sintomatológico (também muito antigo) – referente aos sintomas e, quando as manifestações discriminantes são alterações emocionais ou comportamentais, esse critério pode ser considerado psicológico; o etiológico (também milenar) – referente às causas; e o nosológico – o enfoque médico-clínico.

No século XVIII, “a idéia de que a essência da loucura é algum tipo de desarranjo de funções psíquicas ou mentais, mesmo eventualmente causado por fatores orgânicos, começa a tornar-se um princípio explicativo [...]. E só se apresenta como teoria médica na obra de Pinel” (PESSOTTI, 1996, p. 67). No século XIX vão dominar e alternar-se duas tendências opostas na classificação das formas de loucura: uma linha de pensamento mentalista, que atribui a loucura a processos mentais, com ou sem manifestações orgânicas resultantes; e uma organicista, que a explica segundo processos orgânicos e a relaciona aos dados da anatomia patológica. Do século XIX em diante buscar-se-á, incessantemente, a par de outros rumos, explicar e tratar a doença da loucura através da incorporação dos avanços teóricos e técnicos propiciados pela ciência ocidental. Mas, antes de adentrar essa etapa, vamos tecer novas considerações e ainda retomar antigas épocas, em busca das “estruturas do imaginário social” (FOUCAULT, 1999) e da “sensibilidade ocidental” (ELIAS, 2006) que impulsionaram a compreensão da loucura nessa direção. O pressuposto para efetuarmos esse caminho é a precisão em considerar que a dimensão biológica só é significada e expressada como tal em um processo indissociado da dimensão social."

---
Fonte:
Ermelinda do Nascimento Salem José: “Encontro com o povo Sateré-Mawé para um diálogo intercultural sobre a loucura”. (Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Doutor em Ciências, Área: Psicologia. Universidade de São Paulo FFCLRP - Departamento de Psicologia e Educação Programa de Pós-Graduação em Psicologia). Ribeirão Preto – SP, 2010.

Nota
:
A imagem (fonte: http://www.philip-photos.com) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!