A crise da casa de Othman


"Podemos traçar um paralelo entre este padrão de transformação na esfera produtiva e seus reflexos sobre a composição populacional européia e a situação vivenciada, guardadas as especificidades culturais, sociais e a estrutura econômica local, também no Oriente Médio do século XIX e primeira metade do século XX, período em que os territórios sob domínio turco entraram, lentamente, na esfera de influência das potências capitalistas avançadas da Europa, como França e Inglaterra. Neste período, as populações árabes viram-se enredadas em dois fenômenos importantes: a aceleração da crise do Império Otomano, que dominava uma ampla área do Norte da África e do Levante, atuando como metrópole administrativa de amplos contingentes árabes; e a modernização, ainda que mais lenta que na Europa, da estrutura produtiva, especialmente nas escassas áreas rurais em que se podia praticar a agricultura e onde a mecanização vai ocorrer num crescendo, o que levará à expulsão de um contingente cada vez maior de pessoas e ao inchaço das cidades. A expansão econômica destes 150 anos vai favorecer o nascimento de uma classe média em grandes centros do Oriente Médio e Norte da África, como Cairo, Beirute e Damasco, além de, contraditoriamente, contingentes consideráveis de pessoas que não enxergavam perspectivas satisfatórias de trabalho, especialmente no campo e nos grandes centros urbanos. A combinação destes fatores vai favorecer um padrão de deslocamento populacional semelhante ao verificado na Inglaterra vitoriana. A mecanização da agricultura provocou um êxodo cada vez mais acentuado do meio rural para as cidades, onde a concentração de uma massa de trabalhadores pressionava os salários para baixo, ao mesmo tempo em que aumentava o descompasso entre a demanda por serviços essenciais básicos e o seu atendimento.

A crise interna do Império Otomano, que vai emitir os seus primeiros sinais já a partir do século XVII, não era apenas econômica, mas também política. Marcada pelo lento enfraquecimento da autoridade do sultão e pela incapacidade da administração central de conter os movimentos políticos autônomos que assomavam num território extenso e multi-étnico, que se estendia do Norte da África ao Golfo Arábico, abarcando toda a Palestina, o Líbano e a Síria, esta crise aumentou de dimensão nos séculos XVIII e XIX. Foi neste período de duzentos anos que teve início a paulatina e crescente influência européia sobre os territórios otomanos do Norte da África e do Levante. A crise atingiu o ápice com o fim da Primeira Guerra Mundial, momento em que Istambul, derrotada no conflito juntamente com Alemanha e Império Austro-Húngaro, abre mão dos territórios árabes que tinha sob o seu domínio e os entrega à administração das potências vencedoras do conflito, mantendo-se o Império Otomano restrito à Anatólia e a uma pequena porção de terra nos Balcãs. França e Inglaterra vão administrar estes territórios por meio do mandato que lhes foi conferido pela Liga das Nações, precursora da Organização das Nações Unidas.

Antes mesmo de encerrado o conflito mundial, a autoridade imperial, enfraquecida pelo crescente colapso econômico e político, não teve forças para impedir o acirramento das tensões políticas intra-muros. As potências européias, que a partir de fins do século XVII colhiam as vantagens proporcionadas pelo rápido e amplo desenvolvimento da economia industrial e da tecnologia, especialmente militar, colocavam-se cada vez mais na dianteira das demais nações. Ávidas por mercados consumidores para seus bens industriais e fontes de matérias-primas, passaram a lentamente insinuar-se nos territórios otomanos, valendo-se, em grande medida, das diferenças religiosas entre muçulmanos, drusos, cristãos maronitas, melquitas e ortodoxos, as quais fomentavam, tomando partido deste ou daquele grupo, explorando suas dissensões com o objetivo último de solapar o poder do sultão. Sobre a exploração que as potências européias fizeram das idiossincrasias entre estes grupos confessionais, relata NUNES que

Na Síria, os franceses apoiavam os maronitas e os melquitas, os russos apoiavam os ortodoxos orientais e a Inglaterra vacilava entre os cristãos e os drusos semi-islâmicos, conforme seu interesse ditava. A França encorajava o sonho maronita do domínio político no Líbano e hostilizava os muçulmanos, os drusos e os cristãos ortodoxos, os quais tendiam a apoiar os muçulmanos na política. No Egito, o apoio inglês aos coptas antagonizava a maioria muçulmana. A interferência européia gerou hostilidade entre muçulmanos e cristãos e exacerbou o sectarismo entre os grupos cristãos rivais.

Estes acirramentos internos, insuflados pelas potências européias, que olhavam com avidez e cobiça os territórios otomanos, foram empregados como um poderoso instrumento de dominação política. Eles geraram um clima de confronto entre os diversos grupos constitutivos da sociedade otomana, contribuindo para expulsar do Oriente Médio, já a partir do último quartel do século XIX e antes mesmo do desmembramento político do Império, parcelas dos contingentes religiosamente minoritários, especialmente cristãos. À conjuntura política somava-se a insatisfação pela condição de vida encontrada nos grandes centros, pressionados pela acelerada urbanização, o que também atuou como estímulo à busca da imigração como válvula de escape para as populações árabes dominadas pelos turcos otomanos.

De acordo com a historiografia pertinente a maior parcela dos contingentes árabes que chegaram ao Novo Mundo entre o final do século XIX e as primeiras duas décadas do século XX não era constituída por muçulmanos. Estima-se que em torno de 95% dos sírios e libaneses que entraram no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial eram cristãos. Uma das causas que teriam favorecido a antecipação da emigração cristã seria a sua condição minoritária dentro do Império Otomano. A religião islâmica era a religião oficial do Estado Otomano, administrado por uma elite turca muçulmana de orientação sunita, o que conferia aos seguidores do Islã uma condição privilegiada do ponto de vista político e econômico. Na tentativa de preservar a tradição islâmica de manter as instituições religiosas dos povos que viviam sob sua administração, o Império resguardava às minorias a garantia de viverem de acordo com suas próprias leis, em comunidades mais ou menos autônomas denominadas millets. Contudo, na condição de dhimmis, ou seja, “protegidos”, o governo lhes impunha limitações, como a restrição à posse de armas. Em caso de conflito, o estado muçulmano se obrigaria, legalmente, a defendê-los. Estas, entre outras proibições, além da desvantagem de viver em minoria num Império multi-étnico e multi-racial em que as diferenças religiosas eram exploradas não só pelo governo de Istambul, então capital, mas pelas potências européias, com o objetivo de obter dividendos políticos, eram encaradas pelos membros das minorias como argumentos suficientes para justificar a emigração."

---
Fonte:
OMAR NASSER FILHO: "O CRESCENTE E A ESTRELA NA TERRA DOS PINHEIRAIS OS ÁRABES MUÇULMANOS EM CURITIBA - 1945/1984”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História, no Programa de Pós-Graduação em História, Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª Drª Maria Luiza Andreazza). Curitiba, 2006

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!