A crítica realista-naturalista e Machado de Assis



“O marco inicial do Realismo literário no Brasil, conforme os historiadores, surge com a publicação, em 1881, do romance naturalista, assim classificado pelos críticos, O mulato, de Aluísio Azevedo, “cuja adoração foi facilitada pelas correntes doutrinárias que se vinham afirmando no Brasil ao longo dos anos 70.” (MERQUIOR, 1996, p.152). Ao seu lado, porém, na mesma data, surge um oponente: o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, fruto do trabalho de um escritor que assume o método de observação e análise não só do contexto histórico-social, mas também do cenário do que se entendia por realismo, confundido, muitas vezes, com o naturalismo literário.

Diversos estudos sobre Machado de Assis resumem-se na tentativa de explicar a causa de seus tormentos sociais a partir dos obstáculos sofridos pelo autor desde o seu nascimento até a doença nervosa que tanto o abalou. Entretanto, tais sofrimentos não correspondem exclusivamente à vida de Machado de Assis, mas sim a todos aqueles que sofriam preconceitos. Então, justificar a genialidade do autor apropriando-se do seu destino é o mesmo que reduzir sua capacidade intelectual a uma questão biográfica.

Dessa forma, “sua vida é sem relevo comparada à grandeza da obra, e que interessa pouco, enquanto esta interessa muito” (CÂNDIDO, 1995, p. 20), posto que, apesar de uma vida modesta, penosa, o menino, filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes, torna-se jornalista, poeta, dramaturgo, romancista e presidente da Academia Brasileira de Letras.

Exercendo cargo público a partir de 1874, Machado de Assis ingressa no Ministério da Agricultura, onde a partir dos trinta e cinco anos vai ser constantemente promovido. Lá, trabalha em uma seção em que era encarregado de assuntos sociais, como a escravidão. Ele foi incumbido de acompanhar a aplicação da lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre.

Esse contato vivo com a sociedade brasileira de seu tempo teve grande influência na forma como o autor a representou literariamente. Estes fatos contribuíram para que Machado se mantivesse sempre cético em relação ao progresso, pois sabia que, mesmo ocorrendo algumas modificações na sociedade, como a abolição da escravatura, por exemplo, sua estrutura básica permaneceria a mesma.

Como se vê, ao contrário do que dizem alguns críticos sobre o fato de Machado permanecer alheio aos aspectos sociais de seu tempo, temos em nossa literatura um observador agudo da realidade brasileira e da formação dessa sociedade. Ele soube representar artisticamente e por vários ângulos essa forma de sociedade que criava mecanismos para manter, ao longo do tempo, estratégias de exceções e privilégios.

Em sua primeira fase, a crítica afirma que Machado de Assis não se contrapunha nem ao estilo de vida da sociedade brasileira. Tal posição reverbera no tratamento que o narrador em terceira pessoa dá às suas personagens, resultando num pacto de bom senso que irá mostrar a maneira adequada de agir numa sociedade conformista, princípios, até então, respeitados pelo autor.

Por trás dessa visão edificante, de quem quer colaborar para elucidar a sociedade e torná-la mais civilizada, está, também, a busca de prestígio pessoal de Machado, aderindo à convencionalidade da vida, o que, segundo Cândido (1995) significava:

“um escritor poderoso e atormentado, que recobria os seus livros com a cutícula do respeito humano e das boas maneiras para poder, debaixo dela, desmascarar, investigar, experimentar, descobrir o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das componentes mais esquisitas da personalidade.”
(p. 21)

Essa posição torna-se evidente, para nós, em 1873, época em que o escritor faz uma avaliação da literatura brasileira com o texto crítico: Notícia da atual literatura brasileira Instinto de nacionalidade. Nesse ensaio, Machado questiona a noção de nacionalismo literário por se tratar de uma visão mimética, de cópia do exótico. É a essa lógica de pretensa reprodução fiel da realidade que Machado se opõe; sua busca consiste, pois, em expressar literariamente:

“um sentimento nacional profundo e íntimo. No que concerne ao romance, ele sugeria a necessidade de se procurar a análise de paixões e o contraste de caracteres [...] em detrimento da descrição da natureza e costumes do país, procedimento até então predominante no romance brasileiro.”
(GUIMARÃES, 2004, p. 117).

Dessa forma, temos, neste período, um Machado que é contrário à posição defendida pela crítica naturalista brasileira: a produção de uma literatura que deveria receber influência do meio, da raça e dos costumes da sociedade em voga, utilizando como critérios de identificação nacional o método documental, onde a reprodução e a descrição são empregadas em nome da ciência.

Para Machado, a idéia dos escritores de sua época, de uma literatura de fundação da nacionalidade literária no país, limitaria a literatura brasileira e a colocaria em uma camisa- de-força. É essa posição, de observador arguto da sociedade de seu tempo, que ele assumirá durante sua vida de literato.

Seu método de compor consiste em transformar a matéria-prima “proveniente de fontes as mais díspares – dos escritores lidos, do patrimônio comum, do acervo popular, dos tesouros de frases feitas, da sabedoria anônima, dos fatos da vida cotidiana” (COUTINHO, 1990, p. 48) - em temas e formas novas nacionais e universais à sua maneira e que, portanto, não fogem da sua realidade social.

Ao contrário dos naturalistas que vêem a obra como uma ideologia determinista,

“[...] sua obra reflete os problemas de seu povo, seus costumes, preocupações, ideais, dificuldades, tendo vivido dentro dele, recolhendo a sua experiência vital acumulando-a na alma. O nacional não se opõe ao universal e nele está implícito o popular.”
(COUTINHO, p. 49).

Talvez fosse por isso que o crítico literário Sílvio Romero o acusava de estar alheio ao contexto histórico-social do século XIX. Para ele, os seres representados literariamente pelo escritor mestiço não chegam “a ser verdadeiras figuras que se gravem na mente do público leitor.” (ROMERO, 1992, p. 308). Nem Machado almejava que elas se gravassem, já que essa postura era típica da corrente naturalista a que ele tanto se opunha: ver, gravar, reproduzir para se adquirir autenticidade a fim de que também o leitor tivesse convicção de que a obra era verdadeira.

Desse modo, Romero somente valoriza no estilo machadiano aquilo que, segundo sua perspectiva, responde ao método naturalista, presente em alguns excertos de Memórias Póstumas: “os melhores trechos de seus livros são aqueles em que revela as qualidades de observador de costumes e de psicologista, aqueles em que dá entrada a cenas de nosso viver pátrio, de nossos usos e sestros sociais.” (p. 308).

Todavia, essa reflexão romeriana logo se esvai, quando, em Instinto de Nacionalidade, Machado nos apresenta um modo de sentir “a alma brasileira” em vez de, simplesmente, observá-la: “Há um modo de ver e sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas” (ASSIS, 2004, p. 35); ou seja, o escritor propõe a representação da nacionalidade no estilo da obra, em sua constituição interna, sem se limitar a fatores extraliterários.

Romero, ainda, à luz do método naturalista de sua crítica, explica a composição literária de Machado como fruto de seu temperamento, o qual descontenta o crítico, justamente, pela falta da expressão pessoal: “Suas comédias são contos dialogados sem vida autônoma, sem as vantagens da novelística e com os defeitos que resultam de certa frieza própria de seu temperamento.” (p. 308).

Por outro lado, o que faz o crítico se sentir realizado é quando interpreta, tal qual Zola, que Machado se coloca por inteiro na obra: “Quando, pois, o escritor dá largas ao seu próprio temperamento produz as melhores e mais espontâneas páginas de seus livros.” (p. 320).

Do mesmo modo age Romero, quando crê que Machado reproduz, no capítulo X de Memórias Póstumas, “a cor local e veracidade de observação” (p. 309) e ainda, no XI, quando afirma que Machado retratou, sem cortes, os costumes da sociedade escravocrata de seu tempo. No entanto, sabemos que o estilo literário machadiano em nada corresponde ao modelo naturalista, uma vez que abomina o método documental como cerne de uma obra literária, como expôs, em 1878, no texto crítico O Primo Basílio, de Eça de Queirós, que veremos adiante.

O fato de Romero explicar o temperamento de Machado como fator determinante de sua composição literária - “A própria quietude de seu temperamento levou-o ao uso da introspecção, da meditação solitária e absorvente dos espetáculos do mundo subjetivo, que é sempre misterioso” (p. 319) - comprova a postura determinista do crítico ao enfatizar questões sociais, bem como as de raça e meio, como aspectos que recaem diretamente sobre a obra machadiana.

Há, portanto, dois elementos que correspondem à posição de Romero diante do estilo de compor machadiano. Por um lado, reconheceu a contribuição de Machado para a literatura nacional, mas, por outro, se contrapôs àqueles elementos dos quais Machado se apropria para compor seus romances como: a mania filosofária, o humor e o pessimismo. Julga tais fatores como extrínsecos ao caráter nacionalista de uma verdadeira literatura e, por isso, para ele, Machado “Não tem, por certo, tido influência quase nenhuma no espírito nacional [...] pela falta de calor, de comunicabilidade, de entusiasmo, de vida, essa centelha de proselitismo própria das almas combatentes.” (ROMERO, 1992, p. 316).

Em síntese, no ensaio Instinto de Nacionalidade, Machado afirma que, para ser um poeta nacional, não é preciso citar, em seus versos, nomes de aves ou flores nativas, o que, segundo ele, conferiria o caráter de nacional somente ao vocabulário. Cabe ao escritor, então, inscrever na obra a força imaginativa e ficcional, que resultará em uma linguagem literária autônoma, na qual o que menos importa é a reprodução de fatores externos a ela.

É à luz de seu próprio método realista de compor que Machado faz uma crítica severa ao romance O primo Basílio, de Eça de Queirós (1878), por apresentar uma forma de realismo exacerbado, ou de naturalismo, diríamos nós, pelas minuciosas e exatas descrições dos costumes sociais: “O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo discípulo do realismo.” (ASSIS, 2004, p. 903), além daquilo que julga ser imitação de Zola:

“O próprio O Crime do Padre Amaro é imitação de Zola, La Faute de l,Abbé Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferença do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa, e outras; enfim, o mesmo título.”
(ASSIS, 2004, p. 903-904)

É sabido que Machado não critica o talento de Eça, mas sim a doutrina, da qual ele se tornara adepto: “tratamos de repelir a doutrina, não o talento, e menos o homem - em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário.” (ASSIS, p. 904).

Outro ponto de questionamento no romance de Eça é, segundo Machado, a construção da personagem Luísa, vista como “um caráter negativo, e, no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral.” (ASSIS, p. 905). O fato de seu caráter repercutir de forma negativa no romance é porque falta a ela consciência da situação em que se encontra e, não fosse pela perícia de construção de outra personagem - Juliana, “o caráter mais completo e verdadeiro do livro” (ASSIS, p. 906), o romance não teria fôlego de seguir até o final.

Mas, apesar de o romance não ter seu gran finale súbito, devido às cartas, que o salva dessa catásfrofe, essa questão não o tornou mais interessante aos leitores finos, como por exemplo, o próprio Machado de Assis:

“Se escreveis uma hipótese dai-me a hipótese lógica, humana, verdadeira. Sabemos todos que é aflitivo o espetáculo de uma grande dor física; e, não obstante, é máxima corrente em arte, que semelhante espetáculo, no teatro não comove a ninguém; ali vale somente a dor moral. Ora bem; aplicai esta máxima ao vosso realismo, e, sobretudo proporcionai o efeito à causa, e não exijais a minha comoção a troco de um equívoco.”
(2004, p. 907)

A evidente luta entre criada e patroa, a morte da primeira e a doença da segunda, constituem cenas peculiares, excessivamente descritivas, “onde a pena do autor chega ao extremo de correr o reposteiro conjugal” (ASSIS, p. 907), e acabam ocultando, segundo o crítico, o ponto principal da trama.

Todavia, a postura crítica de Machado diante de O primo Basílio causou polêmica entre aqueles que defendiam a composição do romance queirosiano, tanto que foram publicados dois artigos em defesa da obra, aos quais Machado respondeu:

“Parece que a certas porções de leitores desagradou a severidade da crítica. Não admira; nem a severidade está muito nos hábitos da terra, nem a doutrina realista é tão nova que não conte já, entre nós, mais de um férvido religionário. Criticar o livro era muito; refutar a doutrina, era demais.”
(ASSIS, p. 909).

Ao dar essa resposta, Machado firmava sua oposição ao método realista-naturalista, posto que, para ele, não passava de um modismo literário. O crítico contesta, pois, o fato de Eça de Queirós resolver seguir fielmente essa “cartilha” o que o levou a cometer excessos em seu romance:

“tom carregado de tintas, que nos assusta e acrescenta [...] que se a doutrina do Sr. Eça de Queirós fosse verdadeira, ainda assim cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da escola, de quem li há pouco, e não sem pasmo, que o perigo do movimento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato.”
(ASSIS, p. 908).

Assim, norteando-nos pelas palavras de Machado de Assis, vemos que o romance de Eça de Queirós apresentava, em linhas gerais, um exagero de realismo que enveredou para o seu grau máximo: o naturalismo. Por isso, a preocupação de Machado consiste em destoar desse “messianismo literário que não tem a força da universalidade nem da vitalidade” e ue pode ser útil apenas “[...] para corrigir o excesso da sua aplicação.” (ASSIS, p. 913). A concepção machadiana de arte e de literatura leva em consideração o caráter imaginativo inscrito na obra, bem como as questões histórico-sociais de sua época. Todavia, deve-se evitar o excesso de elementos como a “descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras” (ASSIS, p. 913), como os encontrados em O Primo Basílio.

Memórias Póstumas de Brás Cubas
segue, portanto, na direção oposta ao que Machado considera os perigos do excesso realista do modelo de Zola: o “traço grosso” da técnica de inventário no afã da exatidão ao real representado. Prova disso é que o romance em questão não somente representa, literariamente, o homem de seu tempo, como também nele inscreve a cultura universal por meio da apropriação de clássicos contemporâneos seus, no âmbito da filosofia, da ciência, da história, da arte e da literatura"

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Fonte:
Rosemary Aparecida de Almeida Moraes: "A Paternidade Autoral em Memórias Póstumas de Brás Cubas no Contexto do Modelo Realista-Naturalista do Século XIX". (PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Rosa Duarte de Oliveira). São Paulo, 2008.

Nota
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