A crônica machadiana como participante do processo histórico



“Se até este momento se procurou ler a crônica de Machado de Assis de modo sincrônico, relacionando-a com outras opiniões, contemporâneas, a respeito da questão da substituição de mão-de-obra, a partir deste ponto tentarei mostrar que havia nessas obras uma preocupação diacrônica, ou seja, o Machado cronista tinha consciência de sua participação no processo histórico, do lugar de suas obras como parte da "fisionomia de um tempo" e imaginava a possibilidade de ser lido décadas depois, por alguém que desejasse compreender melhor a época em que ele produzia seus escritos para os jornais.

Tenho a impressão de que todo autor tem alguma preocupação a respeito de como aquilo que ele escreve "sobreviverá ao tempo" e como será lido, tempos depois, pelas gerações futuras. Com Machado de Assis não parece ter ocorrido de forma diferente. No que se refere à crônica, no entanto, as características atribuídas a esse gênero deixariam pouco espaço para tal preocupação. Por tratar, em geral, de coisas mais "leves", de acontecimentos de repercussão mais local e "imediata", poder-se-ia supor que um cronista teria pouca ou nenhuma preocupação com a possibilidade de ser e de como seria lido no futuro. Nas crônicas de Machado, embora não como regra geral, aparece de quando em quando aquilo que o autor chama "sentimento da posteridade". É evidente que essa visão "prospectiva" se configura em mais uma estratégia, entre muitas, para dar à crônica um ar mais leve, criativo e variado; mas parece haver uma preocupação real por trás deste "artifício".

Na crônica de Machado, pôde-se perceber que a preocupação – talvez disfarçada de mera curiosidade – com o futuro era tão recorrente quanto o tratamento dado ao passado. Da mesma forma, nota-se nas crônicas de Machado uma perspectiva da longa e média duração, ou seja, um ponto de vista de quem observa os séculos "de cima", perceptível em usos como "o século XVIII, data de tantas liberdades" (crônica de 25 de abril de 1865) e "o século [XIX] é prático, esperto e censurável" (15 de janeiro de 1877). Esse tipo de visão parece não combinar com o gênero, mas como aparece em meio a outras tantas perspectivas, acaba por ser um reflexo da liberdade autorizada (e até cobrada) pela crônica. Entretanto, no desenvolvimento da crônica machadiana, esse ponto de vista vai se mostrando aparentado com a idéia do
Eclesiastes, muitas vezes citada, de que "nada há de novo debaixo do sol", o que justifica o trânsito fácil entre o passado, o presente e o futuro.

Entre as primeiras crônicas de Machado, a de 25 de novembro de 1861 (
Diário do Rio de Janeiro), bastante interessante, serve como primeiro exemplo, ainda que discreto, de uma visão prospectiva no autor/cronista. Contra o senador José Martins da Cruz Jobim (1802-1878), médico, fundador da Sociedade Imperial de Medicina, mais tarde chamada Academia Nacional de Medicina, da qual foi diretor, o cronista lança duros ataques: "[...] pudesse eu opor à negação da ciência em favor do empirismo, que no meio de uma corporação fez o diretor da academia de medicina. Ouvi bem, ó vindouros, o diretor de uma academia de medicina!". Pode parecer estranha essa espécie de defesa da ciência por Machado de Assis, mas duas coisas têm de ser colocadas em questão. Em primeiro lugar, a crítica machadiana às "feições" que a ciência toma em sua época – principalmente certa "mania" de ciência e progresso – se torna presente em especial a partir da segunda metade da década de 1870; outro ponto que deve ser colocado é que a crítica feita ao senador Jobim é antes política que "científica", já que a posição liberal de Machado de Assis (bem marcada nessa época) o leva a criticar propostas do político conservador. De qualquer forma, o pequeno fragmento no qual o cronista chama a atenção dos possíveis leitores futuros mostra uma preocupação com as impressões que as gerações posteriores terão da política (e dos indivíduos) de sua época; é como se ele dissesse "não se esqueçam disso" na hora de fazer um julgamento histórico, e o fato de um médico ter colocado o empirismo à frente da ciência é apenas um agravante: "Negar a ciência é negar a esposa [...]. Mas negar a publicidade, negar a discussão [...] equivale a negar a liberdade, a negar a própria mãe".

Vê-se que a preocupação com o futuro, presente na crônica machadiana, está intimamente ligada com uma preocupação histórica. em Machado, desde muito cedo, a consciência de que as palavras e ações do presente serão história no futuro, algo que se liga a uma espécie de medo de que as coisas sejam distorcidas, de que o traidor seja visto como herói e vice-versa.

Na crônica, sobre a inauguração da estátua eqüestre de D. Pedro I, na praça onde Tiradentes fora enforcado (1º de abril de 1862), o autor se referia ao "historiador futuro" que quisesse analisar a criação aquele monumento a partir dos debates da imprensa. Veria que a construção não foi fruto de um consenso, o que revelaria algo sobre a política e a sociedade brasileira naquela época. Talvez a crônica de 25 de abril de 1865, também do
Diário do Rio de Janeiro, em que Tiradentes é defendido como herói, sirva para explicar o porquê de o cronista ter, três anos antes, se preocupado em mostrar que a estátua do filho da rainha que mandara executar o alferes não havia sido fruto de um consenso. Possivelmente, Machado só não foi mais claro porque, como lembra Lúcia Granja:

[...] a crônica se inseria em uma rede de relações que teciam o comprometimento. Dentro de um periódico específico, não deveria destoar de suas opiniões. Como reflexo da opinião pública, que ali se queria reconhecer, dela também não deveria destoar. Dessa forma, talvez os comportamentos ardilosos do narrador tivessem a função de justificar a possibilidade de contrariar essas relações.

Assim, deixar o julgamento para aqueles que viessem depois, apenas com a demonstração de que havia desacordos com relação a temas cujo produto final poderia levar a crer que tudo transcorreu sem a mínima desavença era, ao mesmo tempo, uma estratégia para os contemporâneos que fossem capazes de entender soubessem do que ele tratava. Se ninguém entendesse, o fato não escaparia ao julgamento das gerações futuras.

A crônica de 15 de julho de 1876 ("História de quinze dias" da
Ilustração Brasileira) apresenta uma crítica ao uso, típico, para o cronista, da língua portuguesa e principalmente do Brasil dos nomes longos (formados por vários nomes e sobrenomes). O cronista conclui com uma dica para um possível leitor futuro: "No futuro, se alguém ler as linhas que aí deixo e tiver força por emendar o uso, emende-o, certo que não exijo monumento por isso". Esse tipo de postura do cronista não deixa de ser curiosa, que a crônica dificilmente seria lida tempos depois (seu objetivo não era "permanecer"). Daí pode-se inferir que utilizava essa visão prospectiva como recurso para mostrar que o problema abordado era impossível de ser resolvido àquela época, cabendo apenas depositar as esperanças nas próximas gerações.

A mesma crônica de 1876 apresenta uma especulação interessante acerca da comemoração do centenário da independência brasileira, em 1922. Partindo de um evento, o banquete com que, no Brasil, os estadunidenses aqui residentes festejaram os cem anos da independência dos Estados Unidos, o cronista confessa: "tive inveja aos brasileiros que em 1922 devem fazer igual festa em Nova York ou Washington. Se pudesse assistir a ela!". Ao ler esse trecho da crônica me perguntei por que o cronista não simplificou as coisas, escrevendo que tinha inveja aos que pudessem comemorar o centenário da independência brasileira. Então lembrei que, apesar de a longevidade média no Brasil não ser tão alta, alguém viver 83 anos
idade que Machado de Assis teria em 1922 – não era algo impossível. Talvez daí aquela inveja específica, dos brasileiros que pudessem, em 1922, fazer as comemorações nos Estados Unidos. Mas não pude deixar de lado a idéia de que não era exatamente a comemoração que causava o sentimento de inveja, mas o privilégio, sem dúvida para poucos, da extraterritorialidade. Um brasileiro que estivesse nos Estados Unidos, dali a quase cinqüenta anos, para lá comemorar tal evento (o centenário da independência do Brasil), sem dúvida seria um brasileiro privilegiado (como eram os americanos que viviam na corte em 1876), não simplesmente por comemorar a efeméride, mas por ser de uma classe extremamente privilegiada. Assim, pode ser que o trecho esconda uma ponta de ironia. Qualquer evento seria bom de comemorar, para os que têm o que comemorar. Mas isso também pode ser mera especulação.

Outro ponto interessante da mesma parte da crônica acima, desta vez bastante evidente para que seja apenas especulação, é a crítica à escravidão e uma (outra) referência à história escrita. O cronista coloca como "o maior dos milagres" dos Estados Unidos o fato ter sufocado a guerra civil e "com ela extirpado uma detestável instituição social". A posição antiescravista é evidente, mais ainda quando a idéia é completada com a seguinte interrogação: "Que há em Tito Lívio maior do que isso?". Com a pergunta retórica fica claro o quanto o fim do regime escravista significava para o cronista. Esse fato deveria ser considerado maior que qualquer façanha do Império Romano.

Um uso divertido das prospecções pelo narrador machadiano ocorre na crônica de 15 de fevereiro de 1877. Nela, o cronista especula como os lingüistas brasileiros do futuro iriam analisar e buscar a origem da palavra
bisnaga ou, mais que a origem da palavra, a origem do uso que se fazia daquele termo "tubo delgado com que se lançava água-de-cheiro sobre os foliões, nas festas de carnaval", conforme o Dicionário Houaiss. Mesmo com todas as discussões, cientificamente balizadas, ninguém chegaria ao fato de que fora um tal Gomes de Freitas, que aconselhava o uso da planta de mesmo nome como medicinal, o autor involuntário do sentido, pela coincidência de que fizera a recomendação à mesma época em que esguicho apareceu. O cronista conclui: "Teve a bisnaga uma origem alegre, medicinal e filosófica. Isto é o que não hão de saber nem dizer os grandes sábios do futuro. Salvo, se certo número da Ilustração chegar até eles, em cujo caso lhes peço o favor de me mandarem à preta dos pastéis". De novo o cronista alude a uma possível leitura póstera, que serviria para esclarecer algo, no caso conhecer melhor um significado, fruto de um contexto espaço-temporal restrito. A frase final, no entanto, serve para desautorizar o argumento construído pelo próprio cronista, nem tanto porque seja baseado em dados falsos, mas pelo fato de que é uma informação absolutamente irrelevante. É interessante como o narrador faz uso de uma visão abrangente para abordar um tema absolutamente restrito no tempo, no caso, o carnaval daquele ano.

Um procedimento semelhante ocorre na crônica de 1º de abril do mesmo ano, quando o cronista afirma: "Um dos problemas que o futuro de estudar é esta persistência de glosa no último quartel do século". Uma questão absolutamente restrita, local é o que desperta a especulação do narrador nada mais que a publicação de motes e glosas em jornal nos últimos quinze dias. Há a invenção de uma importância para o fato, que seria digno de estudo no futuro, evidente ironia referente à irrelevância e "vulgaridade" do tema, que serve também como uma pequena crítica ao fato.

Na mesma crônica, o narrador brinca com o fato de haver duas Câmaras municipais em Santos, sugerindo, evidentemente de forma irônica, que o mesmo sistema seja aplicado no país. A conclusão é prospectiva: "Idéia para os Benjamins Constants do outro século". Dessa forma, a ironia serve também para mostrar que pouco ou nada muda na política, sendo que cada século tem suas figuras "equivalentes", seus "Benjamins Constants", por exemplo.

Não obstante o freqüente uso irônico da visão prospectiva do cronista machadiano, não são raros os momentos em que esse ponto de vista acompanha um comentário ligado à história e decorre dele. A idéia de história presente nas crônicas de Machado de Assis, vem muitas vezes acompanhada de uma "teoria do futuro", se assim podemos chamar. Junto com a especulação sobre a produção de um determinado conhecimento histórico, vem outra, conseqüência da primeira, que trata da sobrevivência ou da substituição desse conhecimento pela ação e pela reflexão das gerações futuras. Se a história não é definitiva, se "emendam-se as futuras edições" dos livros de história, então também se pode especular a respeito do futuro de uma determinada visão ou conceito histórico.

É o que se observa na crônica d'
O Cruzeiro de 16 de junho de 1878, recolhida no corpus para a análise do problema da crise da mão-de-obra e discussões sobre imigração na crônica machadiana. Logo no início da crônica, uma referência ao início das "festas juninas", as (até hoje) "explosivas" e persistentes comemorações em homenagem a Santo Antônio, São João e São Pedro.

Indague quem quiser o
motivo histórico deste foguetear os três santos, uso que herdamos dos nossos maiores; a realidade é que, não obstante o ceticismo do tempo, muita e muita dezena de anos de correr, primeiro que o povo perca os seus antigos amores.

A opinião do cronista é a de que, indiferente às motivações históricas e talvez justamente por essa indiferença –, os costumes populares permanecerão ainda por "muita dezena de anos", mesmo com o ceticismo que se alastrava, especialmente entre as classes cultas. Essa idéia de que a "ciência" teria pouca ou nenhuma influência sobre os costumes populares, que permaneceriam, a despeito da história, a qual teria que sempre revisar suas versões, reflete um pouco das dúvidas do narrador a respeito da "novidade" científica, ou daquele "bando de idéias novas" ao qual Sílvio Romero se referira. A idéia provavelmente era mais atingir as pretensões científicas que propriamente fazer uma defesa da cultura popular.

A crônica das "Balas de estalo" que tratava das
Leis e Resoluções da Província da Bahia votadas no ano de 1885, também apresenta uma curiosa relação passado-futuro. O cronista imagina, com evidente ironia, um leitor que, quase cem anos depois, elaboraria uma análise para aquele tempo: "O investigador sagaz de 1980 achará que por este nosso tempo se operou uma grande fusão religiosa, que fizemos do paganismo e do cristianismo um só credo, convertendo a Fortuna antiga no Providência moderna [...], teste David cum Sibylla...". A estratégia consiste em jogar para uma análise "inocente" do investigador do futuro os fatos evidentes do tempo em que o cronista escreve; tal estratégia tem pelo menos dois efeitos: primeiro, que a ciência, mesmo com o seu desenvolvimento aos píncaros em fins do século XX, poderia ser "enganada" por interpretações erradas; segundo, que a visão prospectiva do narrador tem a intenção de mostrar também aos seus contemporâneos que as 911 loterias aprovadas pela Assembléia provincial da Bahia poderiam ter lá suas justificativas, crer nelas é que seria uma questão de boa informação e de consciência, mais que de ciência.

A idéia de que se deve desconfiar de dados, estatísticas e informações, jogada para o futuro ao invés de se referir a fatos passados – talvez por estes serem mais difíceis de se apreender, pois não sendo acontecimentos contemporâneos ao cronista, este não teria acesso às mesmas informações "privilegiadas" –, volta a aparecer em crônica de "Bons dias!". Em 26 de agosto de 1888, o narrador reflete sobre os números absurdos utilizados pelos astrônomos, fazendo em seguida uma ligação com a política:

Nem por isso os nossos políticos escreverão suas memórias, como desejara o Sr. Senador Belisário. muitas causas para isso. Uma delas é justamente a
falta do sentimento da posteridade. Ninguém trabalha, em tais casos, para efeitos póstumos. Polêmica, vá; folhetos para distribuir, citar, criticar, é mais comum. Memórias pessoais para um futuro remoto, é muito comprido. E quais sinceras? quais completas? quais trariam os retratos dos homens, as conversações, os acordos, as opiniões, os costumes íntimos, e o resto? Que era bom, era; mas, isto acaba antes de um milhão de séculos?

O trecho parece traçar um perfil genérico do político brasileiro da época. O imediatismo e a despreocupação com as gerações futuras são colocados como características comuns entre os representantes eleitos pelo povo (ou por uma parcela dele) e talvez não exclusiva deles. E mesmo que os políticos quisessem escrever suas memórias, estas seriam tão parciais e tendenciosas que de pouco ou nada serviriam para que alguém no futuro pudesse entender melhor aquela época. O narrador apresenta que poderia, de fato, ser bom que cada político escrevesse suas memórias, desde que fossem sinceras e retratassem com o mínimo de fidelidade a política da época em que viveu, algo, no entanto, impossível. Desta forma, memórias pessoais, na maior parte dos casos, não poderiam servir de "documento" (ao menos no caso brasileiro), pois não trariam a "sinceridade" que alguns debates e leis poderiam deixar transparecer.

Ao mesmo tempo em que o cronista se refere a essa falta de sentimento de posteridade, que funciona como espécie de quadro descritivo da política brasileira de sua época, ele alerta aos possíveis leitores futuros desse tipo de memória, ou mesmo de obras históricas, que estas poderiam não ser sinceras e não retratar satisfatoriamente a época que pretendem elucidar. Assim como o político, o pretenso historiador poderia ter suas posições políticas (ou mesmo religiosas e científicas) arraigadas de modo que essas posições poderiam afetar aquilo que se escreve. Tudo é escrito por homens, e o que os homens escrevem, via de regra, não é isento de manipulação.

Um dos textos mais "patrióticos" de Machado de Assis, crônica de 20 de agosto de 1893 ("A semana", da
Gazeta de Notícias), apresenta, no final, alguma esperança de melhoria do povo brasileiro.

Há aqui obras de outra casta, seja de arte, seja de política, seja de ciência, obras que podem recomendar-nos, embora não espantem a estranhos. [...] Contestou-se que a poesia nacional estivesse no caboclo [...].
O caboclo e o capoeira podem fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosos.

Depois de mostrar que temos, sim, obras humanas de valor, e que vários modismos da época (como o espiritismo e a pelota basca) eram na verdade de origem estrangeira, o narrador chega à conclusão, citando Basílio da Gama, de que o arco e flecha seria um esporte bem brasileiro. Por trás dessa "brincadeira", a crônica é encerrada com uma frase que parece expressar a expectativa de que figuras populares tão criticadas, inclusive pelos homens de ciência que atribuíam à raça ou à mistura de raças a vadiagem e a periculosidade de parte da população pobre brasileira, algum dia pudessem "fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosas". Colocando o problema nesses termos, percebe-se que o cronista despreza o "racialismo" da época e toma uma posição humanista. Se o caboclo e o capoeira são "inúteis e perigosos" é porque a preocupação com o homem é negligenciada. O ponto de vista estrangeiro, de que "a natureza anula o homem", é prontamente adotado por muitas pessoas de alguma cultura no Brasil, as quais se esquecem de que é o homem que se faz – daí o caboclo e o capoeira poderem
fazer-se úteis.

Mais um exemplo de especulação a respeito da possibilidade de ser lido por leitores pósteros está na crônica de 19 de agosto de 1894:

Compilador do século XX, quando folheares a coleção da
Gazeta de Notícias, do ano da graça de 1894, e deres com estas linhas, não vás adiante sem saber qual foi a minha observação. Não é que lhe atribua nenhuma mina de ouro, nem grande mérito; mas de ser agradável aos meus manes saber que um homem de 1944 alguma atenção a uma velha crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em algum livro ou revista: "Um escritor do século XIX achou um caso de cor local que não nos parece destituído de interesse..."

O "caso de cor local" a que o cronista se refere vem de uma notícia da época, de que na Espanha vários fidalgos que estavam em uma casa de jogo ilegal reagiram a tiros contra a intervenção da polícia. Mas a percepção dessa "cor local" espanhola, que serve como referência irônica ao "meio" da teoria taineana, dá ensejo a um "recado" para um possível leitor futuro, que dali a cinqüenta anos poderia notar a astúcia do narrador. O recado para o "compilador do século XX" tem o objetivo principal de ressaltar o caso e, principalmente, a observação do cronista, que de tão perspicaz mereceria atenção até mesmo várias décadas depois. Assim, nota-se uma estratégia narrativa da prospecção, usada para ressaltar o fato e, ao mesmo tempo, ironizar o seu caráter efêmero. Uma notícia tão inútil em termos históricos permitiria uma análise da sociedade brasileira em oposição à espanhola, pois se nesta os fidalgos infringem e enfrentam a lei, por aqui a postura dos jogadores seria outra: "Ao primeiro apito, pernas. Ao primeiro vulto, muros". Assim, imaginar um leitor futuro, neste caso, seria um artifício a serviço do humor presente na crônica.

Antes disso, num fragmento da crônica de 25 de setembro de 1892, sob a perspectiva da imigração chinesa, o narrador havia colocado o problema da "falta do sentimento da posteridade":

Quando vierem as maldições ou as bênçãos, cerca de 1914 os que estivermos enterrados, não nos importaremos com elas. [...] Também não se nos dará de agitações sociais ou outros desconsolos; menos ainda se o Império do Meio fizer de nossa terra uma República do Meio. Teremos vivido.

Tratando da controvertida questão da imigração chinesa, o cronista se finge de despreocupado com o que vai acontecer no futuro. Se o Brasil será uma segunda China por volta de 1914 – pouco mais de duas décadas da época em que ele escreve – pouco ou nada interessaria para a geração de seu tempo. Essa máscara abstencionista joga com a perspectiva do futuro, mas de tal modo que a crítica fica mais evidenciada do que se fosse direta. É como se o cronista perguntasse: "de que importa o que será do Brasil em vinte e poucos anos, se eu não estarei vivo?". Essa parecia ser a perspectiva de muitos políticos brasileiros, ironizada pela crônica. Era a mesma "falta do sentimento da posteridade" à qual o cronista de "Bons dias!" já havia se referido em 1888.

fortes indícios de que a questão da imigração aparece na crônica de Machado de Assis não apenas como reflexo do que se discutia na sociedade brasileira, mas como uma forma de expressão das opiniões do escritor. A preocupação com a assimilabilidade dos imigrantes, o desejo de que estrangeiros de várias procedências se "intercalassem" aos brasileiros de modo a se evitar o isolamento e a impermeabilidade cultural daqueles, a defesa do ensino da língua portuguesa aos (possíveis) novos cidadãos brasileiros, a crítica à naturalização compulsória proposta por Taunay, todas essas posições são exemplos de uma preocupação com a formação de uma nova sociedade brasileira. O que o Brasil seria no século seguinte dependia, e muito, das políticas imigrantistas adotadas na época que Machado escreve suas crônicas. Quando aborda a questão da imigração, a crônica machadiana deixa entrever o "nativismo" e o "sentimento de posteridade" do escritor.

A idéia de história que se revela na crônica machadiana se aproxima da crítica da ciência que se encontra por toda a obra de Machado de Assis. Na medida em que a história vai deixando para trás seus traços literários e ganhando
status de ciência, o que se dá principalmente a partir da segunda metade do século XIX, suas pretensões de objetividade, além da crescente influência do positivismo e do evolucionismo, se tornam "suspeitas" para o escritor, o qual percebe que essa objetividade não é possível em termos absolutos. Daí as idéias de que a lenda é melhor que a história, de que as palavras são o que há de mais interessante na história, de que documentos "heterodoxos" (como as leis que instituíam loterias) poderiam ser usados para se entender melhor uma época, de que "migalhas da história" também deveriam ser recolhidas, de que pouco ou nada valem as datas, de que a história talvez seja cíclica – ao invés de linear ou "evolutiva" –, entre outras encontradas nas crônicas de Machado de Assis. Todas essas questões são colocadas para pôr em dúvida um modelo, servem para colocar ao leitor – se este fosse capaz de entender – que as coisas não são diretas e objetivas como a ciência queria, mas que tudo o que se referia ao ser humano só poderia ser contingente, como ele.

Tudo leva a crer que, ao abordar a questão da imigração, Machado tinha consciência do caráter decisivo, "histórico", daquelas discussões. Sua crônica também era escrita como algo que poderia ser lido como documento pelos "vindouros" que quisessem entender melhor aquelas polêmicas. Fugir dos determinismos raciais que freqüentemente balizavam as opiniões a respeito de quais imigrantes os Brasil devia receber – era uma maneira de mostrar que, naquela época, nem todos compartilhavam das mesmas opiniões, que havia quem desacreditasse daquelas teorias que atribuíam à raça esse ou aquele temperamento ou índole de um povo ou indivíduo."

---
Fonte:
Rodrigo Donizete Pereira : “Controvérsia sem tédio: as polêmicas em torno da imigração na crônica de Machado de Assis”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Hélio de Seixas Guimarães). São Paulo, 2009.

Nota
:
A imagem (Augusto Malta: Machado de Assis aos 67 anos, 1906: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!