
“Se até este momento se procurou ler a crônica de Machado de Assis de modo  sincrônico,  relacionando-a  com  outras  opiniões,  contemporâneas,  a  respeito  da questão  da  substituição  de  mão-de-obra,  a  partir  deste  ponto  tentarei  mostrar  que havia nessas obras uma preocupação diacrônica, ou seja, o Machado cronista tinha consciência de sua participação no processo histórico, do lugar de suas obras como parte da "fisionomia de um tempo" e imaginava a possibilidade de ser lido décadas depois,  por  alguém  que  desejasse  compreender  melhor  a  época  em  que  ele produzia seus escritos para os jornais.
Tenho a impressão de que todo autor tem alguma preocupação a respeito de como  aquilo  que  ele  escreve  "sobreviverá  ao  tempo"  e  como  será  lido,  tempos depois, pelas gerações futuras. Com Machado de Assis não parece ter ocorrido de forma diferente. No que se refere à crônica, no entanto, as características atribuídas a  esse  gênero  deixariam  pouco  espaço  para  tal  preocupação.  Por  tratar,  em  geral, de  coisas  mais  "leves",  de  acontecimentos  de  repercussão  mais  local  e  "imediata", poder-se-ia  supor  que  um  cronista  teria  pouca  ou  nenhuma  preocupação  com  a possibilidade  de  ser  –  e  de  como  seria  –  lido  no  futuro.  Nas  crônicas  de  Machado, embora  não  como  regra  geral,  aparece  de  quando  em  quando  aquilo  que  o  autor chama  "sentimento  da  posteridade".  É  evidente  que  essa  visão  "prospectiva"  se configura em mais uma estratégia, entre muitas, para dar à crônica um ar mais leve, criativo e variado; mas parece haver uma preocupação real por trás deste "artifício".
Na  crônica  de  Machado,  pôde-se  perceber  que  a  preocupação  –  talvez disfarçada  de  mera  curiosidade  –  com  o  futuro  era  tão  recorrente  quanto  o tratamento  dado  ao  passado.  Da  mesma  forma,  nota-se  nas  crônicas  de  Machado uma  perspectiva  da  longa  e  média  duração,  ou  seja,  um  ponto  de  vista  de  quem observa  os  séculos  "de  cima",  perceptível  em  usos  como  "o  século  XVIII,  data  de tantas  liberdades"  (crônica  de  25  de  abril  de  1865)  e  "o  século  [XIX]  é  prático, esperto  e  censurável"  (15  de  janeiro  de  1877).  Esse  tipo  de  visão  parece  não combinar com o gênero, mas como aparece em meio a outras tantas perspectivas, acaba  por  ser  um  reflexo  da  liberdade  autorizada  (e  até  cobrada)  pela  crônica. Entretanto,  no  desenvolvimento  da  crônica  machadiana,  esse  ponto  de  vista  vai  se mostrando  aparentado  com  a  idéia  do  Eclesiastes,  muitas  vezes  citada,  de  que "nada há de novo debaixo do sol", o que justifica o trânsito fácil entre o passado, o presente e o futuro.
Entre  as  primeiras  crônicas  de  Machado,  a  de  25  de  novembro  de  1861 (Diário  do  Rio  de  Janeiro),  bastante  interessante,  serve  como  primeiro  exemplo, ainda  que  discreto,  de  uma  visão  prospectiva  no  autor/cronista.  Contra  o  senador José  Martins  da  Cruz  Jobim  (1802-1878),  médico,  fundador  da  Sociedade  Imperial de  Medicina,  mais  tarde  chamada  Academia  Nacional  de  Medicina,  da  qual  foi diretor, o cronista lança duros ataques: "[...] pudesse eu opor à negação da ciência em favor do empirismo, que no meio de uma corporação fez o diretor da academia de  medicina.  Ouvi  bem,  ó  vindouros,  o  diretor  de  uma  academia  de  medicina!". Pode  parecer  estranha  essa  espécie  de  defesa  da  ciência  por  Machado  de  Assis, mas  duas  coisas  têm  de  ser  colocadas  
Vê-se que a preocupação com o futuro, presente na crônica machadiana, está intimamente  ligada  com  uma  preocupação  histórica.  Há  em  Machado,  desde  muito cedo, a consciência de que as palavras e ações do presente serão história no futuro, algo que se liga a uma espécie de medo de que as coisas sejam distorcidas, de que  o traidor seja visto como herói e vice-versa.
Na crônica, sobre a inauguração da estátua eqüestre de D. Pedro I, na praça onde  Tiradentes  fora  enforcado  (1º  de  abril  de  1862),  o  autor  se  referia  ao "historiador  futuro"  que  quisesse  analisar  a  criação  aquele  monumento  a  partir  dos debates  da  imprensa.  Veria  que  a  construção  não  foi  fruto  de  um  consenso,  o  que revelaria  algo  sobre  a  política  e  a  sociedade  brasileira  naquela  época.  Talvez  a crônica  de  25  de  abril  de  1865,  também  do  Diário  do  Rio  de  Janeiro,  
[...]  a  crônica  se  inseria  em  uma  rede  de  relações  que  teciam  o  comprometimento.  Dentro  de  um  periódico  específico,  não  deveria  destoar de  suas  opiniões.  Como  reflexo  da  opinião  pública,  que  ali  se  queria  reconhecer,  dela  também  não  deveria  destoar.  Dessa  forma,  talvez  os comportamentos  ardilosos  do  narrador  tivessem  a  função  de  justificar  a possibilidade de contrariar essas relações.
Assim, deixar o julgamento para aqueles que viessem depois, apenas com a demonstração  de  que  havia  desacordos  com  relação  a  temas  cujo  produto  final poderia levar a crer que tudo transcorreu sem a mínima desavença era, ao mesmo tempo,  uma  estratégia  para  os  contemporâneos  que  fossem  capazes  de  entender soubessem  do  que  ele  tratava.  Se  ninguém  entendesse,  o  fato  não  escaparia  ao julgamento das gerações futuras.
A  crônica  de  15  de  julho  de  1876  ("História  de  quinze  dias"  da  Ilustração Brasileira) apresenta uma crítica ao uso, típico, para o cronista, da língua portuguesa e  principalmente  do  Brasil  dos  nomes  longos  (formados  por  vários  nomes  e sobrenomes).  O  cronista  conclui  com  uma  dica  para  um  possível  leitor  futuro:  "No futuro, se alguém ler as linhas que aí deixo e tiver força por emendar o uso, emende-o, certo que não exijo monumento por isso". Esse tipo de postura do cronista não deixa  de  ser  curiosa,  já  que  a  crônica  dificilmente  seria  lida  tempos  depois  (seu objetivo  não  era  "permanecer").  Daí  pode-se  inferir  que  utilizava  essa  visão prospectiva como recurso para mostrar que o problema abordado era impossível de ser resolvido àquela época, cabendo apenas depositar as esperanças nas próximas  gerações.
A  mesma  crônica  de  1876  apresenta  uma  especulação  interessante  acerca da  comemoração  do  centenário  da  independência  brasileira,  em  1922.  Partindo  de um  evento,  o  banquete  com  que,  no  Brasil,  os  estadunidenses  aqui  residentes festejaram os cem anos da independência dos Estados Unidos,  o cronista confessa: "tive  inveja  aos  brasileiros  que  em  1922  devem  fazer  igual  festa  
Outro  ponto  interessante  da  mesma  parte  da  crônica  acima,  desta  vez  bastante evidente para que seja apenas especulação, é a crítica à escravidão e uma  (outra)  referência  à  história  escrita.  O  cronista  coloca  como  "o  maior  dos  milagres"  dos  Estados  Unidos  o  fato  ter  sufocado  a  guerra  civil  e  "com  ela  extirpado  uma  detestável instituição social". A posição antiescravista é evidente, mais ainda quando  a idéia  é completada  com a seguinte interrogação: "Que há 
Um  uso  divertido  das  prospecções  pelo  narrador  machadiano  ocorre  na  crônica  de  15  de  fevereiro  de  1877.  Nela,  o  cronista  especula  como  os  lingüistas  brasileiros  do  futuro  iriam  analisar  e  buscar  a  origem  da  palavra  bisnaga  ou,  mais  que  a  origem  da  palavra,  a  origem  do  uso  que  se  fazia  daquele  termo  –  "tubo  delgado  com  que  se  lançava  água-de-cheiro  sobre  os  foliões,  nas  festas  de  carnaval",  conforme  o           Dicionário  Houaiss.  Mesmo  com  todas  as  discussões,  cientificamente  balizadas,  ninguém  chegaria  ao  fato  de  que  fora  um  tal  Gomes  de  Freitas, que aconselhava o uso da planta de mesmo nome como medicinal, o autor  involuntário  do  sentido,  pela  coincidência  de  que  fizera  a  recomendação  à  mesma  época em que esguicho apareceu. O cronista conclui: "Teve a bisnaga uma origem  alegre,  medicinal  e  filosófica.  Isto  é  o  que  não  hão  de  saber  nem  dizer  os  grandes  sábios do futuro. Salvo, se certo número da Ilustração chegar até eles, em cujo caso  lhes peço o favor de me mandarem à preta dos pastéis". De novo o cronista alude  a uma possível leitura póstera, que serviria para esclarecer algo, no caso conhecer  melhor  um  significado,  fruto  de  um  contexto  espaço-temporal  restrito.  A  frase  final,  no  entanto,  serve  para  desautorizar  o  argumento  construído  pelo  próprio  cronista,  nem  tanto  porque  seja  baseado  em  dados  falsos,  mas  pelo  fato  de  que  é  uma  informação  absolutamente  irrelevante.  É  interessante  como  o  narrador  faz  uso  de  uma  visão  abrangente  para  abordar  um  tema  absolutamente  restrito  no  tempo,  no  caso, o carnaval daquele ano.
Um procedimento semelhante ocorre na crônica de 1º de abril do mesmo ano,  quando  o  cronista  afirma:  "Um  dos  problemas  que  o  futuro  há  de  estudar  é  esta  persistência  de  glosa  no  último  quartel  do  século".  Uma  questão  absolutamente  restrita,  local  é  o  que  desperta  a  especulação  do  narrador  nada  mais  que  a  publicação de motes e glosas em jornal nos últimos quinze dias. Há a invenção de  uma  importância  para  o  fato,  que  seria  digno  de  estudo  no  futuro,  evidente  ironia  referente  à  irrelevância  e  "vulgaridade"  do  tema,  que  serve  também  como  uma  pequena crítica ao fato.
Na  mesma  crônica,  o  narrador  brinca  com  o  fato  de  haver  duas  Câmaras  municipais  em  Santos,  sugerindo,  evidentemente  de  forma  irônica,  que  o  mesmo  sistema seja aplicado no país. A conclusão é prospectiva: "Idéia para os Benjamins  Constants  do  outro  século".  Dessa  forma,  a  ironia  serve  também  para  mostrar  que  pouco  ou  nada  muda  na  política,  sendo  que  cada  século  tem  suas  figuras  "equivalentes", seus "Benjamins Constants", por exemplo.
Não  obstante  o  freqüente  uso  irônico  da  visão  prospectiva  do  cronista  machadiano,  não  são  raros  os  momentos  em  que  esse  ponto  de  vista  acompanha  um  comentário  ligado  à  história  e  decorre  dele.  A  idéia  de  história  presente  nas  crônicas de Machado de Assis, vem muitas vezes acompanhada de uma "teoria do  futuro", se assim podemos chamar. Junto com a especulação sobre a produção de  um determinado conhecimento histórico, vem outra, conseqüência da primeira, que  trata  da  sobrevivência  ou  da  substituição  desse  conhecimento  pela  ação  e  pela  reflexão  das  gerações  futuras.  Se  a  história  não  é  definitiva,  se  "emendam-se  as  futuras  edições"  dos  livros  de  história,  então  também  se  pode  especular  a  respeito  do futuro de uma determinada visão ou conceito histórico.
É  o  que  se  observa  na  crônica  d'  O  Cruzeiro  de  16  de  junho  de  1878,  recolhida  no   corpus  para  a  análise  do  problema  da  crise  da  mão-de-obra  e  discussões  sobre  imigração  na  crônica  machadiana.  Logo  no  início  da  crônica,  há  uma  referência  ao  início  das  "festas  juninas",  as  (até  hoje)  "explosivas"  e  persistentes  comemorações  em  homenagem  a  Santo  Antônio,  São  João  e  São  Pedro.
Indague quem quiser o motivo histórico deste foguetear os três santos, uso  que  herdamos  dos  nossos  maiores;  a  realidade  é  que,  não  obstante  o  ceticismo  do  tempo, muita  e  muita  dezena  de  anos  há  de  correr,  primeiro  que o povo perca os seus antigos amores.
A  opinião  do  cronista  é  a  de  que,  indiferente  às  motivações  históricas  –  e  talvez  justamente  por  essa  indiferença  –,  os  costumes  populares  permanecerão  ainda  por  "muita  dezena  de  anos",  mesmo  com  o  ceticismo  que  se  alastrava,  especialmente entre as classes cultas. Essa idéia de que a "ciência" teria pouca ou  nenhuma  influência  sobre  os  costumes  populares,  que  permaneceriam,  a  despeito  da  história,  a  qual  teria  que  sempre  revisar  suas  versões,  reflete  um  pouco  das  dúvidas do narrador a respeito da "novidade" científica, ou daquele "bando de idéias novas" ao qual Sílvio Romero se referira. A idéia provavelmente era mais atingir as  pretensões científicas que propriamente fazer uma defesa da cultura popular.
A  crônica  das  "Balas  de  estalo"  que  tratava  das  Leis  e  Resoluções  da  Província da Bahia votadas no ano de 1885, também apresenta uma curiosa relação  passado-futuro.  O  cronista  imagina,  com  evidente  ironia,  um  leitor  que,  quase  cem  anos  depois,  elaboraria  uma  análise  para  aquele  tempo:  "O  investigador  sagaz  de  1980 achará que por este nosso tempo se operou uma grande fusão religiosa, que  fizemos do paganismo e do cristianismo um só credo, convertendo a Fortuna antiga  no Providência moderna [...], teste David cum Sibylla...". A estratégia consiste em  jogar  para  uma  análise  "inocente"  do  investigador  do  futuro  os  fatos  evidentes  do  tempo  em  que  o  cronista  escreve;  tal  estratégia  tem  pelo  menos  dois  efeitos:  primeiro, que a ciência, mesmo com o seu desenvolvimento aos píncaros em fins do  século XX, poderia ser "enganada" por interpretações erradas; segundo, que a visão  prospectiva  do  narrador  tem  a  intenção  de  mostrar  também  aos  seus  contemporâneos que as 911 loterias aprovadas pela Assembléia provincial da Bahia  poderiam  ter  lá  suas  justificativas,  crer  nelas  é  que  seria  uma  questão  de  boa  informação e de consciência, mais que de ciência.
A  idéia  de  que  se  deve  desconfiar  de  dados,  estatísticas  e  informações,  jogada para o futuro ao invés de se referir a fatos passados – talvez por estes serem  mais  difíceis  de  se  apreender,  pois  não  sendo  acontecimentos  contemporâneos  ao  cronista,  este  não  teria  acesso  às  mesmas  informações  "privilegiadas"  –,  volta  a  aparecer  em  crônica  de  "Bons  dias!".  Em  26  de  agosto  de  1888,  o  narrador  reflete  sobre  os  números  absurdos  utilizados  pelos  astrônomos,  fazendo  em  seguida  uma  ligação com a política:
Nem por isso os nossos políticos escreverão suas memórias, como desejara  o  Sr.  Senador  Belisário.  Há  muitas  causas  para  isso.  Uma  delas  é  justamente a falta do sentimento da posteridade. Ninguém trabalha, em tais  casos,  para  efeitos  póstumos.  Polêmica,  vá;  folhetos  para  distribuir,  citar,  criticar, é mais comum. Memórias pessoais para um futuro remoto, é muito  comprido. E quais sinceras? quais completas? quais trariam os retratos dos  homens, as conversações, os acordos, as opiniões, os costumes íntimos, e  o  resto?  Que  era  bom,  era;  mas,  isto  acaba  antes  de  um  milhão  de  séculos?
O  trecho  parece  traçar  um  perfil  genérico  do  político  brasileiro  da  época.  O  imediatismo  e  a  despreocupação  com  as  gerações  futuras  são  colocados  como  características  comuns  entre  os  representantes  eleitos  pelo  povo  (ou  por  uma  parcela  dele)  e  talvez  não  exclusiva  deles.  E  mesmo  que  os  políticos  quisessem  escrever suas memórias, estas seriam tão parciais e tendenciosas que de pouco ou  nada  serviriam  para  que  alguém  no  futuro pudesse  entender  melhor  aquela  época.  O  narrador  apresenta  que  poderia,  de  fato,  ser  bom  que  cada  político  escrevesse  suas  memórias,  desde  que  fossem  sinceras  e  retratassem  com  o  mínimo  de  fidelidade  a  política  da  época  em  que  viveu,  algo,  no  entanto,  impossível.  Desta  forma,  memórias  pessoais,  na  maior  parte  dos  casos,  não  poderiam  servir  de  "documento"  (ao  menos  no  caso  brasileiro),  pois  não  trariam  a  "sinceridade"  que  alguns debates e leis poderiam deixar transparecer.
Ao mesmo tempo em que o cronista se refere a essa falta de sentimento de  posteridade,  que  funciona  como  espécie  de  quadro  descritivo  da  política  brasileira  de  sua  época,  ele  alerta  aos  possíveis  leitores  futuros  desse  tipo  de  memória,  ou  mesmo  de  obras  históricas,  que  estas  poderiam  não  ser  sinceras  e  não  retratar  satisfatoriamente a época que pretendem elucidar. Assim como o político, o pretenso  historiador  poderia  ter  suas  posições  políticas  (ou  mesmo  religiosas  e  científicas)  arraigadas  de  modo  que  essas  posições  poderiam  afetar  aquilo  que  se  escreve.  Tudo é escrito por homens, e o que os homens escrevem, via de regra, não é isento  de manipulação.
Um  dos  textos  mais  "patrióticos"  de  Machado  de  Assis,  crônica  de  20  de  agosto  de  1893  ("A  semana",  da  Gazeta  de  Notícias),  apresenta,  no  final,  alguma  esperança de melhoria do povo brasileiro.
Há aqui obras de outra casta, seja de arte, seja de política, seja de ciência,  obras que podem recomendar-nos, embora não espantem a estranhos.  [...]  Contestou-se que a poesia nacional estivesse no caboclo [...]. O caboclo e o  capoeira podem fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosos.
Depois  de  mostrar  que  temos,  sim,  obras  humanas  de  valor,  e  que  vários  modismos  da  época  (como  o  espiritismo  e  a  pelota  basca)  eram  na  verdade  de  origem estrangeira, o narrador chega à conclusão, citando Basílio da Gama, de que  o  arco  e  flecha  seria  um  esporte  bem  brasileiro.  Por  trás  dessa  "brincadeira",  a  crônica  é  encerrada  com  uma  frase  que  parece  expressar  a  expectativa  de  que  figuras  populares  tão  criticadas,  inclusive  pelos  homens  de  ciência  que  atribuíam  à  raça  ou  à  mistura  de  raças  a  vadiagem  e  a  periculosidade  de  parte  da  população  pobre brasileira, algum dia pudessem "fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosas".  Colocando  o  problema  nesses  termos,  percebe-se  que  o  cronista  despreza  o  "racialismo" da época e toma uma posição humanista. Se o caboclo e o capoeira são  "inúteis  e  perigosos"  é  porque  a  preocupação  com  o  homem  é  negligenciada.  O  ponto  de  vista  estrangeiro,  de  que  "a  natureza  anula  o  homem",  é  prontamente  adotado por muitas pessoas de alguma cultura no Brasil, as quais se esquecem de  que é o homem que se faz – daí o caboclo e o capoeira poderem fazer-se úteis.
Mais um exemplo de especulação a respeito da possibilidade de ser lido por  leitores pósteros está na crônica de 19 de agosto de 1894:
Compilador  do  século  XX,  quando  folheares  a  coleção  da  Gazeta  de  Notícias,  do  ano  da  graça  de  1894,  e  deres  com  estas  linhas,  não  vás  adiante  sem  saber  qual  foi  a  minha  observação.  Não  é  que  lhe  atribua  nenhuma  mina  de  ouro,  nem  grande  mérito;  mas  há  de  ser  agradável  aos  meus  manes  saber  que  um  homem  de  1944  dá  alguma  atenção  a  uma  velha crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever  em algum livro ou revista: "Um escritor do século XIX achou um caso de cor  local que não nos parece destituído de interesse..."
O "caso de cor local" a que o cronista se refere vem de uma notícia da época,  de  que  na  Espanha  vários  fidalgos  que  estavam  em  uma  casa  de  jogo  ilegal  reagiram a tiros contra a intervenção da polícia. Mas a percepção dessa "cor local"  espanhola,  que  serve  como  referência  irônica  ao  "meio"  da  teoria  taineana,  dá  ensejo  a  um  "recado"  para  um  possível  leitor  futuro,  que  dali  a  cinqüenta  anos  poderia notar a astúcia do narrador. O recado para o "compilador do século XX" tem  o objetivo principal de ressaltar o caso e, principalmente, a observação do cronista,  que de tão perspicaz mereceria atenção até mesmo várias décadas depois. Assim,  nota-se  uma  estratégia  narrativa  da  prospecção,  usada  para  ressaltar  o  fato  e,  ao  mesmo  tempo,  ironizar  o  seu  caráter  efêmero.  Uma  notícia  tão  inútil  em  termos  históricos  permitiria  uma  análise  da  sociedade  brasileira  em  oposição  à  espanhola,  pois  se  nesta  os  fidalgos  infringem  e  enfrentam  a  lei,  por  aqui  a  postura  dos  jogadores seria outra: "Ao primeiro apito, pernas. Ao  primeiro vulto, muros". Assim,  imaginar um leitor futuro, neste caso, seria um artifício a serviço do humor presente  na crônica.
Antes  disso,  num  fragmento  da  crônica  de  25  de  setembro  de  1892,  sob  a  perspectiva da imigração chinesa, o narrador havia colocado o problema da "falta do  sentimento da posteridade":
Quando  vierem  as  maldições  ou  as  bênçãos,  –  cerca  de  1914  –  os  que  estivermos  enterrados,  não  nos  importaremos  com  elas.  [...]  Também  não  se nos dará de agitações sociais ou outros desconsolos; menos ainda se o  Império  do  Meio  fizer  de  nossa  terra  uma  República  do  Meio.  Teremos  vivido.
Tratando  da  controvertida  questão  da  imigração  chinesa,  o  cronista  se  finge  de despreocupado com o que vai acontecer no futuro. Se o Brasil será uma segunda  China  por  volta  de  1914  –  pouco  mais  de  duas  décadas  da  época  em  que  ele  escreve – pouco ou nada interessaria para a geração de seu tempo. Essa máscara  abstencionista joga com a perspectiva do futuro, mas de tal modo que a crítica fica  mais evidenciada do que se fosse direta. É como se o cronista perguntasse: "de que  importa o que será do Brasil em vinte e poucos anos, se eu não estarei vivo?". Essa  parecia ser a perspectiva de muitos políticos brasileiros, ironizada pela crônica. Era a  mesma  "falta  do  sentimento  da  posteridade"  à  qual  o  cronista  de  "Bons  dias!"  já  havia se referido em 1888.
Há  fortes  indícios  de  que  a  questão  da  imigração  aparece  na  crônica  de  Machado  de  Assis  não  apenas  como  reflexo  do  que  se  discutia  na  sociedade  brasileira,  mas  como  uma  forma  de  expressão  das  opiniões  do  escritor.  A  preocupação com a assimilabilidade dos imigrantes, o desejo de que estrangeiros de  várias  procedências  se  "intercalassem"  aos  brasileiros  de  modo  a  se  evitar  o  isolamento  e  a  impermeabilidade  cultural  daqueles,  a  defesa  do  ensino  da  língua  portuguesa  aos  (possíveis)  novos  cidadãos  brasileiros,  a  crítica  à  naturalização  compulsória  proposta  por  Taunay,  todas  essas  posições  são  exemplos  de  uma  preocupação com a formação de uma nova sociedade brasileira. O que o Brasil seria  no século seguinte dependia, e muito, das políticas imigrantistas adotadas na época  que  Machado  escreve  suas  crônicas.  Quando  aborda  a  questão  da  imigração,  a  crônica machadiana deixa entrever o "nativismo" e o "sentimento de posteridade" do  escritor.
A  idéia  de  história  que  se  revela  na  crônica  machadiana  se  aproxima  da  crítica da ciência que se encontra por toda a obra de Machado de Assis. Na medida  em que a história vai deixando para trás seus traços literários e ganhando status de  ciência, o que se dá principalmente a partir da segunda metade do século XIX, suas  pretensões  de  objetividade,  além  da  crescente  influência  do  positivismo  e  do  evolucionismo,  se  tornam  "suspeitas"  para  o  escritor,  o  qual  percebe  que  essa  objetividade  não  é  possível  em  termos  absolutos.  Daí  as  idéias  de  que  a  lenda  é  melhor  que  a  história,  de  que  as  palavras  são  o  que  há  de  mais  interessante  na  história,  de  que  documentos  "heterodoxos"  (como  as  leis  que  instituíam  loterias)  poderiam  ser  usados  para  se  entender  melhor  uma  época,  de  que  "migalhas  da  história" também deveriam ser recolhidas, de que pouco ou nada valem as datas, de  que  a  história  talvez  seja  cíclica  –  ao  invés  de  linear  ou  "evolutiva"  –,  entre  outras  encontradas  nas  crônicas  de  Machado  de  Assis.  Todas  essas  questões  são  colocadas  para  pôr  em  dúvida  um  modelo,  servem  para  colocar  ao  leitor  –  se  este  fosse capaz de entender – que as coisas não são diretas e objetivas como a ciência  queria,  mas  que  tudo  o  que  se  referia  ao  ser  humano  só  poderia  ser  contingente,  como ele.
Tudo  leva  a  crer  que,  ao  abordar  a  questão  da  imigração,  Machado  tinha  consciência  do  caráter  decisivo,  "histórico",  daquelas  discussões.  Sua  crônica   também  era  escrita  como  algo  que  poderia  ser  lido  como  documento  pelos "vindouros"  que  quisessem  entender  melhor  aquelas  polêmicas.  Fugir  dos  determinismos  raciais  –  que  freqüentemente  balizavam  as  opiniões  a  respeito   de  quais imigrantes os Brasil devia receber – era uma maneira de mostrar que, naquela  época,  nem  todos  compartilhavam  das  mesmas  opiniões,  que  havia  quem  desacreditasse daquelas teorias que atribuíam à raça esse ou aquele temperamento  ou índole de um povo ou indivíduo."
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Fonte:
Rodrigo Donizete Pereira : “Controvérsia sem tédio: as polêmicas em torno da imigração na  crônica de Machado de Assis”. (Dissertação apresentada ao Programa de  Pós-Graduação 
Nota:
A imagem (Augusto Malta: Machado de Assis aos 67 anos, 1906: Biblioteca Nacional Digital do Brasil) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público 
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