Foucault e o estruturalismo: encontros e desencontros



O estruturalismo foi um movimento intelectual que teve muito sucesso na segunda metade do século XX e visava, como campo inicial, o estudo da língua como um conjunto de relações que se chamava de estrutura. Desde o Curso de Lingüística Geral, de Saussure, o estruturalismo se ramificou em várias abordagens, passando a ser utilizado por vários pensadores em outros campos como a antropologia, a psicologia, as ciências sociais e matemáticas, história e a própria filosofia. Nesses saberes, o pensamento francês fez largo uso da teoria estrutural e revelou-se como uma alternativa em relação ao marxismo, a fenomenologia e o existencialismo, então dominantes.

Foucault, como tantos outros da sua geração, não deixou de mergulhar nesse caldeirão
do pensamento europeu. No entanto, a sua relação com o estruturalismo é complexa. Em um primeiro momento, no auge do movimento estruturalista (1966), Foucault torna-se conhecido e festejado mundialmente com o lançamento do livro As Palavras e as Coisas. Esse livro caracterizou-o como um pensador estruturalista, pois suas pesquisas procuravam evidenciar o “sub-solo de nossa consciência moderna”, “o sistema” que perdurou na cultura ocidental do século XVI ao século XIX. Ele estava, como muitos nos anos 60, altamente influenciado pelas idéias que embalavam o pensamento francês: as estruturas de parentesco propostas por Lévi-Strauss, a “afirmação” do inconsciente lacaniano e o materialismo estrutural desenvolvido por Louis Althusser. Em um segundo momento, no espaço que separa esse livro do próximo (A Arqueologia do Saber, em 1969), Foucault tentará, a todo custo, redirecionar sua postura filosófica, recusando toda e qualquer relação com o estruturalismo. Vejamos mais de perto esses encontros e desencontros.

Algumas entrevistas da obra Dits et Écrits nos oferecem a oportunidade de cartografar os momentos mais e menos estruturalistas de Foucault. Quando perguntado, em uma dessas entrevistas, se era o “sacerdote” do estruturalismo assim como o público francês o considerava, ele respondeu: “Eu sou, no máximo, o coroinha do estruturalismo. Digamos que sacudi a sineta, os fiéis se ajoelharam, os incrédulos gritaram. Mas a missa já tinha começado há muito tempo. O verdadeiro mistério não fui eu que o realizei”
. Essa “sacudida de sineta” foi o livro As Palavras e as Coisas. Neste, Foucault fará uso de um conceito que perpassa toda a obra e que, devido aos mal-entendidos, o aproximará do estruturalismo: a idéia de episteme. No prefácio desta obra encontramos a sua definição, ao falar da experiência da ordem que rege uma determinada cultura. Diz ele, em um longo parágrafo:

No presente estudo, é essa experiência que se pretende analisar. Trata-se de mostrar
o que ela veio a se tornar, desde o século XVI, no meio de uma cultura como a nossa: de que maneira, refazendo, como que contra a corrente, o percurso da linguagem tal como foi falada, dos seres naturais, tais como foram percebidos e reunidos, das trocas, tais como foram praticadas, nossa cultura manifestou que havia ordem e que às modalidades dessa ordem deviam as permutas suas leis, os seres vivos sua regularidade, as palavras seu encadeamento e seu valor representativo; que modalidades de ordem foram reconhecidas, colocadas, vinculadas ao espaço e ao tempo, para formar o suporte positivo de conhecimentos tais que vão dar na gramática geral e na filologia, na história natural e na biologia, no estudo das riquezas e na economia política. Tal análise, como se vê, não compete à história das idéias ou das ciências: é antes um estudo que se esforça por encontrar a partir de que foram possíveis conhecimentos e teorias; segundo qual espaço de ordem se constituiu o saber; na base de qual a priori histórico e no elemento de qual positividade puderam aparecer idéias, constituir-se ciências, refletir-se experiências em filosofia, formar-se racionalidades, para talvez se desarticularem e logo desvanecerem. (...); o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a episteme onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o que se deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico.

“Espaço de ordem”, “a priori histórico”, “campo epistemológico”. Analisando a
episteme clássica, que em sua positividade trouxe os saberes referentes a análise das riquezas, a gramática geral e a história natural, e a episteme moderna, com a economia política, filologia e biologia, Foucault tenta evidenciar as “condições de possibilidade” dos discursos desses saberes. A interpretação dos críticos não poderia deixar de fazer-lhe filiação com o estruturalismo em pleno auge nessa época. A episteme é como se fosse um quadro geral determinando todas as formas culturais dos homens e da sociedade.

Uma entrevista em 1965, com Alain Badiou, que teve difusão radio-televisiva, parece
marcar essa idéia de estrutura geral dominante. Fazendo a distinção entre uma hermenêutica absoluta e uma geral, Foucault afirma acreditar na existência de um quadro estrutural que ligue os indivíduos:

(...) eu acredito, todavia, que estruturas generalizadas mais ou menos grandes e
que, por exemplo, pode haver, em muitos indivíduos, um certo número de procedimentos que são idênticos, que se podem encontrar da mesma forma em uns e em outros, e que não há razão para que as estruturas que se descobriram para um não valham para outro.

Parece que são essas “estruturas generalizadas” que Foucault buscou trazer à tona ao
descrever as epistemes clássica e moderna e que, de alguma forma, gerou todo um entendimento por parte da inteligência francesa de um partido com o estruturalismo. No entanto, mais tarde, em outras colocações, o próprio Foucault tentará recolocar o conceito de episteme que alimentou As Palavras e as Coisas. Explicando em que sentido se deu o seu trabalho de individualização dos discursos e colocando-se pluralista, ele fará uso dos “critérios de correlação” para afastar a chamada “história totalizante” e substituí-la pelas “análises diferenciadas”. Isso lhe Permite descrever, como episteme de uma época, não a soma de seus conhecimentos, ou o estilo geral de suas pesquisas, mas o desvio, as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de seus múltiplos discursos científicos: a episteme não é uma espécie de grande teoria subjacente, é um espaço de dispersão, é um campo aberto e, sem dúvida, indefinidamente descritível de relações. (...) a episteme não é um pedaço da história comum a todas as ciências; é um jogo simultâneo de remanências específicas. (...) A episteme não é uma etapa geral da razão; é uma relação complexa de deslocamentos sucessivos.

Portanto, nada que se compare a um “espírito unitário de uma época” ou a uma “história
de um transcendental sincopado”, mas o estudo dos “conjuntos de discursos”, com suas transformações e seus feixes de relações. Foucault não trabalha com o sistema, mas com os sistemas.

Será que isso é verdade? Bem, um pouco mais tarde, realmente há todo um esforço para
tornar o conceito de episteme menos “monolítico” e mais aberto a outras pesquisas arqueológicas (a questão do aprisionamento, da sexualidade, etc.), mas duas entrevistas de 1966 mostram um Foucault ainda preso à noção de “estrutura” e de “sistema”, esta dita no singular. Explicando o método arqueológico como aquele que busca “o saber comum” que torna possível as práticas, as instituições e as teorias de uma época, se fará uma redução disso tudo a “traços verbais” que, pelas ciências humanas, são reconhecidos como estruturas:

Todas essas práticas, portanto, essas instituições, essas teorias, eu as tomo no nível
dos traços, isto é, quase sempre traços verbais. O conjunto desses traços constitui uma espécie de domínio considerado homogêneo: não se faz entre os traços, a priori, nenhuma diferença, e o problema é encontrar entre aqueles de ordem diferentes os traços comuns para constituir o que os lógicos chamam de classes, os estetas [esthéticiens] de formas, os pesquisadores das ciências humanas de estruturas, e que são a invariante comum a um certo número desses traços.

Quanto à idéia de “sistema”, Foucault irá colocá-la em uma interessante entrevista com
a escritora e jornalista francesa Madeleine Chapsal. Mostrando que a sua geração se livrou da influência intelectual daqueles que faziam a famosa revista “Les Temps Modernes”, criada por Sartre, e que teve a colaboração de Merleau-Ponty, Foucault advoga ter descoberto uma outra “paixão”: o conceito de sistema. Enquanto Sartre se apegava ao sentido como determinante do real, ancorado nas pesquisas sociais de Lévi-Strauss e no inconsciente lacaniano, Foucault abraçará a tese de que o sentido é nada mais nada menos que um “efeito de superfície”, um “reflexo” da realidade e que o sistema é justamente aquilo que nos “atravessa profundamente”; o sistema é “um conjunto de relações que se mantém, se transformam, independentemente das coisas que elas ligam. (...) Antes de toda existência humana, haveria um saber, um sistema, que nós redescobrimos...” Madeleine Chapsal se inquieta e quer saber quem faz segredo desse sistema. Foucault lhe responde que é um “pensamento anônimo” no qual temos como exemplo a literatura contemporânea. O sistema é uma grande rede subjacente às nossas vidas e que, silenciosamente, nos comanda. Ele diz:

Em todas as épocas, a maneira como as pessoas refletem, escrevem, julgam, falam
(até na rua, as conversações e os escritos mais quotidianos) e mesmo a maneira como as pessoas experimentam as coisas, cuja sua sensibilidade reage, toda a sua conduta é comandada por uma estrutura teórica, um sistema, que muda com as épocas e as sociedades — mas que está presente em todas as épocas e em todas as sociedades.

Mas não fiquemos apenas nesta constatação. Foucault vai mais longe ao trazer para a
filosofia a tarefa de exposição do solo no qual a liberdade é determinada:

Pensa-se no interior de um pensamento anônimo e obrigatório que é aquele de uma
época e de uma linguagem. Este pensamento e esta linguagem têm suas leis de transformação. A tarefa da filosofia atual e de todas as disciplinas teóricas as quais dei nome é expor esse pensamento antes do pensamento, esse sistema antes de todo sistema... É o fundo sobre o qual nosso pensamento “livre” emerge e cintila durante um instante...

Eis, como podemos constatar, o momento mais estruturalista de Foucault. Mas ele dura
pouco, pois no ano seguinte Foucault parece dar mostras de um certo afastamento. É o que podemos confirmar em uma entrevista na Tunísia quando, distinguindo-se de um estruturalismo ancorado no fortalecimento de algumas ciências como lingüística, etnologia e sociologia, ele se coloca em um outro tipo de pesquisa estrutural:

O segundo estruturalismo seria uma atividade pela qual os teóricos, não especialistas, se esforçam em definir as relações atuais que podem existir entre tal e
tal elemento de nossa cultura, tal ou tal ciência, tal domínio prático e tal domínio teórico, etc. Dito de outra forma, seria uma espécie de estruturalismo generalizado e não mais limitado a um domínio específico preciso e, por outro lado, um estruturalismo que interessaria a nós, nossa cultura, nosso mundo atual, o conjunto das relações práticas ou teóricas que definem nossa modernidade. É nisso que o estruturalismo pode valer como uma atividade filosófica, se admitirmos que o papel da filosofia é o de diagnosticar. O filósofo, com efeito, deixou de querer dizer o que existe eternamente. Ele tem a tarefa bem mais árdua e mais fugidia de dizer o que se passa. Nessa medida, pode-se falar de uma espécie de filosofia estruturalista que poderia ser definida como a atividade que permite diagnosticar o que é a atualidade.

Vemos o prenúncio do que mais tarde se tornaria uma das questões de maior
importância no trabalho de Michel Foucault. Ou seja, nesse momento, ele procurava uma distância do método estrutural enquanto análise das bases de uma determinada ciência. Agora, trata-se de empreender análises que vão além da esfera científica e abrange as relações culturais da nossa atualidade.

Nessa mesma entrevista, Foucault ainda explica como se coloca diante do
estruturalismo. Posição ambígua, que seu trabalho de alguma forma se desdobra sobre o movimento:

O que tentei fazer foi introduzir análises de estilo estruturalista em domínios nos quais elas não tinham penetrado até o presente, ou seja, no domínio da história das idéias, dos conhecimentos, da teoria. Nessa medida, fui levado a analisar em termos de estrutura o nascimento do próprio estruturalismo. Assim, tenho com o estruturalismo uma relação ao mesmo tempo de distância e de
reduplicação. De distância, que falo dele em vez de praticá-lo diretamente, e de reduplicação, já que não quero falar dele sem falar sua linguagem.

A partir daqui, estamos em 1967, o discurso foucaultiano será cada vez mais
radicalizado no sentido de querer consolidar sua diferença para com os estruturalistas, mas o mal-entendido já estava instalado. Mas então, qual era a real diferença? Dito de outro modo, qual era o novo interesse e a nova direção que Foucault vinha tentando realizar em seu trabalho? Podemos, de maneira geral, discorrer sobre alguns pontos:

1. Vimos que o estruturalismo é uma pesquisa sobre as relações estruturais que definem
ou regem uma cultura. Essa estrutura que amplamente determina uma cultura, uma sociedade, é a linguagem, ou melhor, o sistema formal que compõe a linguagem. Foucault dará um novo direcionamento às suas pesquisas a partir do momento em que afirmará seu desinteresse em relação a esse sistema formal. No lugar do sistema, ele colocará o discurso: “...meu objeto não é a linguagem, mas o arquivo, ou seja, a existência acumulada dos discursos”. O interesse será deslocado das estruturas determinantes para o surgimento do discurso. Vejamos como ele marca essa mutação:

Diferentemente daqueles que são chamados de estruturalistas, eu não estou
interessado pelas possibilidades formais oferecidas por um sistema como a língua. Pessoalmente, estou antes obcecado pela existência dos discursos, pelo fato de as palavras terem surgido: esses acontecimentos funcionaram em relação à sua situação original; eles deixaram traços atrás deles, eles subsistem e exercem, nessa própria subsistência no interior da história, um certo número de funções manifestas ou secretas.

Mas à frente, ele precisa a diferença entre língua e discurso:

A língua é um conjunto de estruturas, mas os discursos são unidades de
funcionamento, e a análise da linguagem em sua totalidade não pode deixar de fazer face a essa exigência essencial. Nessa medida, o que faço localiza-se no anonimato geral de todas as pesquisas que, atualmente, giram em torno da linguagem, ou seja, não somente da língua que permite dizer, mas dos discursos que foram ditos.

Portanto, uma ruptura com as estruturas lingüísticas para tornar evidente o próprio
funcionamento do discurso. Esse deslocamento para o discurso é, na verdade, por um lado, a continuação de uma recusa do sujeito, da possibilidade de sujeito consciente de si e do mundo à sua volta, o que aparentemente o mantém preso ao estruturalismo. O sujeito não é detentor de si mesmo não mais por causa da existência de uma estrutura inconsciente que o domina, mas pelo fato de, na prática e pela prática, existir toda uma confluência, toda uma lei que rege nossos discursos e nossas condutas no seio da sociedade. Dito isso, por outro lado, Foucault tenta fazer uma análise mais ampla ao deslocar sua pesquisa para o que chamou de “prática discursiva”. Se, em As Palavras e as Coisas, a episteme reinava como elemento explicativo dos saberes, com A Arqueologia do Saber (livro em que Foucault procura precisar o seu “método”) a análise histórica sai da esfera puramente discursiva e tenta dar conta do que não era percebido pelo estruturalismo. Citemos uma passagem na qual ele mostra em que sentido as relações discursivas são práticas:

As relações discursivas, como se vê, não são internas ao discurso: não ligam entre si os conceitos ou as palavras; não estabelecem entre as frases ou as proposições uma arquitetura dedutiva ou retórica. Mas não são, entretanto, relações exteriores ao discurso, que o limitariam ou lhe imporiam certas formas, ou o forçariam, em certas circunstâncias, a enunciar certas coisas. Elas estão, de alguma maneira, no limite do discurso: oferecem-lhe objetos de que ele pode falar, ou antes (pois essa imagem da
oferta supõe que os objetos sejam formados de um lado e o discurso, do outro), determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos, para poder abordá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los etc. Essas relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática.

Será com este conceito que Foucault irá cada vez mais se liberar do movimento
estruturalista, enveredando por uma prática política que o marcará como militante nos anos 70. Ele até procura dar uma outra visão sobre a relação da prática política com a teoria estrutural; ou seja, esta não não deve ser mais vista como uma análise das constituições estruturais da língua como também não deve se limitar a uma teorização da totalidade dos discursos na sociedade, mas deve a todo o momento se ampliar em uma prática política:

Creio que uma análise teórica e exata da maneira como funcionam as estruturas econômicas, políticas e ideológicas é uma das condições necessárias para a ação
política na medida em que esta é uma forma de manipular e eventualmente de mudar, revirar e transformar estruturas. Em outros termos, a estrutura se revela na ação política ao mesmo tempo em que esta forma e modifica as estruturas. Portanto, não considero o estruturalismo como uma atividade exclusivamente teórica para intelectuais de gabinete; ele pode e deve necessariamente se articular a algo como uma prática política.

Essa entrevista foi publicada em 1968, em Estolcomo, ou seja, justamente em um
momento em que o pensamento de Foucault estava se transformando e caminhando cada vez mais para a questão da prática, forçando-o a trabalhar um novo conceito: o de dispositivo.

2. O outro elemento de não identificação da filosofia foucaultiana com a onda
estruturalista, talvez um elemento menor em relação ao apresentado anteriormente, é o desacordo sobre a questão do significado, do sentido. Se a geração de 50 e 60 estava marcada pelo interesse em saber, estruturalmente, quais são as condições formais do sentido, Foucault tenta empreender o caminho inverso pesquisando não o sentido em si, mas como ele desaparece. Não se trata de investigar como um determinado objeto científico ganha sentido existencial a partir das estruturas da linguagem, mas como o mesmo deixa de existir para colocar em seu lugar outra coisa. Enquanto um se prende às condições formais, o outro procura o momento de “modificação” e/ou “transformação” do significado. Parece-me que esta pouca diferença deve ser relembrada. Ele explica ao seu entrevistador:

Eu lhe falava de nossa geração e da maneira como estávamos preocupados com as
condições de aparição do sentido. Agora, ao contrário, lhe direi que me preocupo com a maneira segundo a qual o sentido desaparece, como eclipse, pela constituição do objeto. Dito isto, é justamente nesses termos que eu não posso ser assimilado ao que foi definido como “estruturalismo”. (...) Não se pode dizer que eu faço estruturalismo porque no fundo não me preocupo nem com o sentido nem com as condições as quais ele aparece, mas com as condições de modificação ou de interrupção do sentido, condições nas quais o sentido desaparece para fazer aparecer outra coisa.

Mas, no apagamento do sentido, o que aparece? Com certeza não são “significações de
ordem lingüística ou verbal”, mas outros sentidos que não se solidificam naquilo que representam. É por isso que Foucault se interessou pelo discurso literário de Raymond Roussel, pelo seu procedimento de produção discursiva. Nessa mesma entrevista, em uma parte que não apareceu na publicação original de 67, mas na versão em livro que saiu em 69, Foucault utilizará o funcionamento da linguagem literária de Roussel como exemplo de distanciamento da corrente estruturalista:

Assim, nesse caso também [falando da linguagem de Roussel], não se trata
exatamente do problema do estruturalismo: o que me importava e o que procurei analisar não era a aparição do sentido na linguagem, mas o modo de funcionamento dos discursos no interior de uma cultura dada, ou seja, como um discurso pode funcionar durante um certo período como patológico e em um outro como literário. Era, portanto, o funcionamento do discurso que me interessava e não seu modo de significação.

De um lado, um rompimento com o estruturalismo que significa também os laços
cortados com o momento francês do existencialismo e da fenomenologia; de outro, um salto adiante a partir d’A Arqueologia do Saber, no qual o conceito de prática discursiva coloca a pesquisa de Foucault no limite entre a formalização e a interpretação e lhe permite impor um “espaço complementar”, não-discursivo, ou seja, toda uma análise histórica das instituições com suas práticas, seus discursos, seus processos econômicos.

Daqui em diante, a negação de uma filiação ao estruturalismo será tão intensiva, por
vezes nervosa, que o levará a afirmar que nunca utilizou o conceito de estrutura. Apesar disso, será pela pesquisa histórica, inicialmente de influência nietzschiana, que Foucault empreenderá uma grande inflexão no seu pensamento e no seu trabalho.

De todas as recusas em suas entrevistas nenhuma delas nos interessou tanto quanto a
realizada com Alexandre Fontana e Pasquino, em 1976. Nesse diálogo, Foucault advoga a necessidade de ser “anti-estruturalista” para poder pensar o acontecimento. A resposta é longa, mas devemos estudá-la na íntegra:

Admite-se que o estruturalismo foi o esforço mais sistemático para eliminar, não
apenas da etnologia, mas de toda uma série de outras ciências e até da história, o conceito de acontecimento. Eu não vejo quem possa ser mais anti-estruturalista do que eu. Mas o importante é não fazer com o acontecimento o que se fez com a estrutura. Não se trata de colocar tudo sobre um certo plano que seria aquele do acontecimento, mas de considerar que existe toda uma hierarquização de tipos de acontecimentos diferentes que não tem o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos. O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis aos quais eles pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de genealogia das relações de forças, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem sentido, o que não quer dizer que ela é absurda ou incoerente. Ao contrário, ela é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias e das táticas. Nem a dialética (como lógica da contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação) dariam conta do que é a inteligibilidade intrínseca dos afrontamentos. Nesta inteligibilidade, a dialética é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta, reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a semiologia é uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo.

Repito: “Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da
língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não lingüística. Relação de poder, não relação de sentido”. Está claro aqui o quanto Foucault tinha que se liberar, naquele momento do pensamento francês, não apenas do estruturalismo, mas também do marxismo. Tanto um como o outro eram formas de destituição do acontecimento. É nesse sentido que podemos dizer que a arqueologia foucaultiana se apresentou como uma impossibilidade do acontecimento. Para se pensar a lógica dos afrontamentos no seio da história era preciso desviar-se tanto da contradição dialética como da estrutura da linguagem. Mostramos o desvio frente ao estruturalismo. Em "Acontecimento e Genealogia", mostraremos o desvio do marxismo, para melhor desenharmos a prática do acontecimento na filosofia de Foucault, mas antes é preciso elucidar os conceitos de arqueologia, enunciado e discurso e identificar o momento em que germina a idéia de acontecimento, além de tratarmos da questão do sujeito e do humanismo."

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Fonte:
MIGUEL ÂNGELO OLIVEIRA DO CARMO: "Acontecimento e Atualidade em Michel Foucault: uma análise a partir do Dits et Écrits". (Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco). Rio de Janeiro, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

3 comentários:

  1. O texto é muito bom e elucidativo, me ajudou a esclarecer as ideias sobre o tema do estruturalismo em Foucault.

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