Hospital psiquiátrico segundo Foucault



“O hospital como objeto terapêutico é uma invenção relativamente nova, como diz Foucault (2003), data do final do século XVIII. A noção de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar surge explicitamente em torno de 1780, com a prática da visita, observação sistemática e comparação dos hospitais. Eles deixam de ser uma simples obra arquitetônica, para integrar um fato médico-hospitalar que necessita estudos, assim como as doenças.

Os relatórios produzidos, as descrições funcionais da organização médico-espacial do hospital, não são mais de autoria dos arquitetos. São dos médicos que como tais, foram designados pela Academia de Ciências para as visitas aos hospitais, o que faz emergir “um novo olhar sobre o hospital considerado como máquina de curar e que, se produz efeitos patológicos, deve ser corrigido”. (FOUCAULT, 2003, p.101)

Mesmo que se argumentasse, segundo o autor, que há milênios existiam hospitais destinados a curar, pode-se declarar que no século XVIII, se os hospitais não atendiam as expectativas de cura como deviam, alcançaram um refinamento nas exigências manifestadas sobre o instrumento hospitalar. Mas Foucault salienta que o hospital que funcionava na Europa desde a Idade Média não era, de qualquer modo, um meio de cura, não era compreendido para curar. O hospital como instituição significativa e essencial para a vida urbana do ocidente desde a Idade Média, não é uma instituição médica e a medicina neste período, uma prática não hospitalar.

Conforme mostra Foucault num tempo não muito distante, o hospital foi um lugar impreciso, uma ambigüidade “de constatação para uma verdade escondida e de prova para uma verdade a ser produzida”. Como uma atuação direta sobre a doença, “não só lhe permitia revelar a sua verdade aos olhos do médico, mas também produzi-la”. (FOUCAULT, 2003, p. 118)

Supunha-se, com efeito, que o doente deixado em liberdade, em seu meio, na sua família, naquilo que o cercava, com o seu regime, seus hábitos, seus preconceitos, suas ilusões, só poderia ser afetado por uma doença complexa, opaca, emaranhada, uma espécie de doença contra a natureza, que era ao mesmo tempo uma mistura de várias doenças e o empecilho para que a verdadeira doença pudesse se reproduzir na autenticidade de sua natureza. O papel do hospital era então, afastando esta vegetação parasita e formas aberrantes, não só de deixar ver a doença tal como é, mas também produzi-la na sua verdade, até então aprisionada e entravada, sua natureza própria, suas características essenciais, seu desenvolvimento específico poderiam finalmente, pelo efeito da hospitalização, tornar-se realidade
. (FOUCAULT, 2003, p.118)

No século XVIII, o hospital aplicava-se em propiciar as condições para que a verdade do mal se manifestasse. Apresentava uma diversidade de dispositivos complexos que se aplicavam simultaneamente para surgir e reproduzir verdadeiramente a doença. “... o hospital, estrutura de acolhimento da doença, deve ser um espaço de conhecimento ou um lugar de prova”. (FOUCAULT, 2003, p.119)

A medicina dos séculos XVII e XVIII era significativamente individualista, a experiência hospitalar estava afastada da formação e práticas do médico. Ele era qualificado para transmitir receituários e a intervenção sobre a doença era organizada em torno da noção da crise. O médico observava o doente e a doença desde os seus primeiros sinais, para desvelar o momento em que a crise surgiria. Entre a natureza, a doença e o médico, estabelecia-se um jogo. Foucault (2003), salienta que a concepção de uma longa série de observações, no interior do hospital em que se poderiam registrar as freqüências, as generalidades, as particularidades, estava excluída do exercício médico.

Destaca-se então que nesta época, nada da prática médica permitia a formação de um saber hospitalar, como também não era permitida a intervenção da medicina no hospital. A reorganização do hospital nesta época passa, não pela técnica médica, mas a partir de uma tecnologia política chamada: a disciplina. O espaço hospitalar e o saber médico tinham o papel de produzir a verdade crítica, a realidade da doença.

No começo da Idade Clássica segundo Foucault, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo, a pratica do internamento no começo do século XIX estabelece a função do hospital psiquiátrico como “lugar de diagnóstico e de classificação”. Época em que o poder médico encontra garantias e justificações, que conhece a doença e os doentes. A pratica psiquiátrica e o poder médico, foram sacudidos no final deste século por uma primeira forma de antipsiquiatria, que questionava suas obscuras e abusivas práticas. O que implicava eram as relações de poder, “o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura”, num momento em que o sujeito que dela sofria encontrava-se desqualificado como louco, despojado de todo poder e todo saber sobre sua doença. Era este jogo de poder no final do século XIX, que caracterizava a psiquiatria clássica e que a antipsiquiatria pretendia desfazer, dando ao indivíduo direitos e liberdades até então desqualificados, um despojamento que insiste em persistir até a atualidade."

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Fonte:
LUÍS CARLOS PEREIRA VARELLA: "LETTRES DE CACHET - A SOLITÁRIA TRAJETÓRIA PARA A LOUCURA: jovens internos e egressos do Instituto de Psiquiatria do Estado de Santa Catarina". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção de Grau de Mestre em Sociologia Política, orientada pela Professora Doutora Janice Tirelli Ponte de Sousa). Florianópolis, 2006.

Nota
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