Liga Brasileira de Higiene Mental e a Disciplinarização do Corpo


“Os doentes mentais do Rio de Janeiro, então capital do Império, não tinham tratamento especializado, seu destino muitas vezes eram as prisões, ao lado de criminosos, ou vagar pelas ruas abandonados à sua própria sorte. Na melhor das hipóteses, acabavam internados em hospitais gerais. Influenciados pelas idéias francesas os médicos adotaram princípios de tratamento moral para a loucura. Criaram uma Sociedade de Medicina no Rio de Janeiro, por volta de 1830, idealizando um asilo para internação dos loucos, o que culminou com a criação do primeiro hospital psiquiátrico no Brasil, o Hospício D. Pedro II.

apenas no início do século XX, mais especificamente em 1912, a Psiquiatria tornou-se uma especialidade médica autônoma, reproduzindo o discurso teórico da psiquiatria francesa. E ao dominar o corpo, a medicina reforçou o exercício de poder sobre a razão, ou a desrazão. Surge em 1923, no Rio de Janeiro, a LBHM - Liga Brasileira de Higiene Mental, entidade civil que contava, inicialmente com subvenção federal. Costa faz uma crítica à atuação da LBHM, por ser ela composta por psiquiatras que não se percebiam como sujeitos históricos, criando programas de higiene mental sem considerar a referência histórica da cultura brasileira. Desta forma, desprezavam a cultura, os valores e própria subjetividade das pessoas. Os psiquiatras da LBHM, com sua visão de um Brasil sofredor em função da degradação moral e social, causada pelos vícios, ociosidade e miscigenação racial, adotaram a “prevenção eugênica”, que não tinha compromisso com a racionalidade da ciência moderna e sim com os interesses políticos e particulares. Desejavam dominar a loucura, ou melhor, todos os indivíduos que ousavam manifestar sua subjetividade, os que não se permitiam ser “normatizados”, os “fora da ordem”.

A relação de poder que permeava o pensamento psiquiátrico brasileiro favoreceu a criação da LBHM. Fundada pelo psiquiatra Gustavo Riedel, o objetivo da Liga era, na opinião de Costa, “melhorar a assistência aos doentes mentais através da renovação dos quadros profissionais e dos estabelecimentos psiquiátricos”. Mais tarde, ela desviava-se do objetivo inicial de cuidar do doente, e contaminada pela idéia de prevenção, tomou como objeto de cuidado o indivíduo normal, definindo-se como higienista. Desencadeava então o processo de invasão social: tomados pelo ideal eugênico, os psiquiatras encontraram espaço na política, servindo aos interesses do Estado, no momento em que o país enfrentava crises e revoltas com a República. Ao receber o apoio do Departamento de Saúde e do Governo da Revolução de 1930 para o combate do alcoolismo numa campanha repressiva, a Liga sentiu-se estimulada a ampliar sua atuação e aplicar os métodos de higiene mental em outras esferas da sociedade, adotando a idéia de eugenia como higiene social. E a propaganda eugênica se intensificou, paralelamente a nova concepção de eugenia na Alemanha, pleiteando cuidar da vida de pessoas doentes e também sadias.

Em suma, a medicina higienista do século XIX, reconhecida pelo Estado ao medicalizar suas ações políticas e reforçar seu poder, é por ele legitimada para converter os sujeitos à uma nova ordem, na opinião de Costa. A Medicina, apoiada pelo Estado, se apodera do espaço urbano, e ao se lançar na higienização das cidades encontra resistência na tradições familiares. Estabelece neste momento a higiene familiar, modificando a conduta de seus membros, criando uma estrutura de controle da família: “A ordem médica vai produzir uma norma familiar capaz de formar cidadãos individualizados, domesticados e colocados à disposição da cidade, do Estado, da Pátria." Tudo isso se reflete na prática da psiquiatria, que á continuidade ao discurso normativo e moralizador no século XX.

Ao desenvolver as hipóteses que possibilitaram essa continuidade epistemológica e conceitual de higiene, Luz observa que o louco no Brasil era pensado de diferentes formas de acordo com o momento histórico. E que, se por um lado, acredita-se que a Psiquiatria criou o mito da doença mental ao fabricar a loucura, por outro, a própria Psiquiatria, pela sua inoperância ou abuso de poder, preconizou a sua morte. Durante as duas primeiras décadas do século XX, a psiquiatria faz campanhas e discursos geradores de estigmas sociais, desenvolvendo mecanismos de controle moral e racial da sociedade brasileira, ressalta. Costa acrescenta que a década de 20 marcou o adoecimento ou a transformação da psiquiatria, a partir dos propósitos preventivos da Liga Brasileira de Higiene Mental. A Psiquiatria, originada como discurso e práticas políticas, objetivando normalizar e normatizar a sociedade, se fortalecia principalmente no século XX, marcado pela desordem social. Situação que gerava grande número de excluídos, entre eles loucos, negros, desvalidos, desordeiros, transgressores das normas: “campo fértil para que se desenvolvesse uma racionalidade apoiada no saber técnico-científico”.
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Fonte:
JACQUELINE SIMONE DE ALMEIDA MACHADO: "GÊNERO SEM RAZÃO: MULHERES E LOUCURA NO SERTÃO NORTE MINEIRO". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS, da Universidade Estadual de Montes Claros, como requisito para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Regina Célia Lima Caleiro). Montes Claros, 2009.

Nota
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A imagem (Francis Galton, pensador inglês, primo de Charles Darwin e idealizador da Eugenia) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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