O narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas



Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance publicado em 1881, é narrado em primeira pessoa, e nele o narrador Brás Cubas conta a sua própria história de vida, mas com uma diferença: conta após a morte:

Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adoptar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas
um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escripto ficaria assim mais galante e mais novo. (ASSIS, 1975a, p.99). (grifos nossos).

Com essa categoria narrativa de “defunto autor” Machado de Assis não só introduz uma novidade em sua narrativa como rompe com a vorossimilhança realista mais vinculada ao enredo, optando por uma verossimilhança com a tradição narrativa dos diálogos dos mortos, oriunda da sátira menipéia e consolidada por Luciano de Samosata. Assim, escrevendo “da campa”, Brás Cubas narra suas próprias experiências em primeira pessoa, dispensando a mediação do tradicional narrador externo e deixando o leitor com a sensação de estar mais próximo da verdade.

Esse narrador machadiano conta tudo o que viu ou o que parece ter visto. Sendo assim, temos a sua versão dos fatos e somos propensos a acreditar no que ele afirma, pois ele deixa claro que não tem mais nada a temer, como se respaldasse a célebre afirmação de Bakhtin: “a morte tira a coroa de todos os coroados em vida” (BAKHTIN, 2005, p.133). Pois bem, ele está morto, portanto, fora do alcance das leis dos homens, e nessa condição privilegiada pode falar o que quer. Se não precisa temer, para que mentir? Se de certa maneira desconfiamos de Brás, de outra passamos a confiar. Somos seduzidos a acreditar, pois ele exerce sobre nós o poder da palavra, é ele quem conta, que escolhe o que deve ser revelado e o que não deve, e assim procedendo expõe não só a sua vida, mas também a de todas a personagens que povoam a obra.

É importante lembrar que esse narrador é também o autor do romance, sendo autor conhece a vida das personagens, os papéis exercidos por elas e suas particularidades, como afirma Bakhtin:

O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como
enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas, e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre determinado e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra. (BAKHTIN, 2003, p. 11) (grifos nossos)

É esse enxergar e conhecer mais que dá legitimidade a Brás Cubas; ele não é só o narrador, é também o responsável pela criação da obra, e isso lhe dá o poder da escrita, e este lhe permite dizer o que quiser sobre as demais personagens, dar voz a elas ou silenciar sobre elas, assim como dar maior destaque a algumas ou reduzir ao mínimo sua função na narrativa, ou mesmo limitar-se a uma simples referência a alguma personagem, como o faz com Damião Cubas, cujo papel na genealogia da família Cubas ele praticamente exclui. No que se refere ao leitor, não se pode falar de relação de poder, mas de diálogo, no qual ele ora se coloca no mesmo nível do leitor, ora o desrespeita jocosamente, ameaçando-o com um piparote.

Além de enxergar e conhecer mais, o autor “enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas”. O que é inacessível às personagens é exatamente aquilo que o outro vê nelas e é isso que Brás Cubas ratifica ao narrar as suas memórias. Há uma parte de nós que não conhecemos, da qual só nos inteiramos por meio do outro, que consegue formar uma imagem através das nossas atitudes, ações, comportamentos, o defunto autor das Memórias... revela que quem sabe mais sobre as personagens é ele e, além de saber mais, sabe de particularidades que elas não conseguem perceber, o que na narrativa o torna superior a elas.

Segundo Bosi, “O que marca a singularidade das Memórias póstumas, o seu salto qualitativo, é o modo pelo qual a presença do narrador junto aos fatos dobra-se em autoconsciência”. (BOSI, 2006, p.9). Brás Cubas faz também o seu autodesvelamento, mostrando o seu caráter de egoísta, de inescrupuloso, de indivíduo para o qual não existem limites, e assim acaba criticando a si mesmo e consequentemente a todos de sua classe.

Reforçando a ideia do autodesvelamento, o crítico Roberto Schwarz afirma que “O volúvel Brás Cubas entretanto desde a primeira linha do romance vai sentar-se no banco dos réus, verdade que para rir do leitor”. (SCHWARZ, 2000, p. 58). Ao assumir tal atitude, Brás Cubas expõe todo o seu amoralismo, porém mostra que nessa sociedade quem tem o poder do dinheiro assegura a impunidade para os seus atos. Não vemos no romance nenhum tipo de punição social em relação a ele, Brás mostra de fato que a impunidade rege essa sociedade dos detentores do dinheiro. Morre solteiro, sem filhos, mas após a morte continua gabando-se de sua vida.

No final do romance, observamos uma reflexão do próprio Brás Cubas, que parece não dar importância ao fato de não ter se casado, como se isto lhe desse uma condição de superioridade em relação àqueles que se casaram e tiveram filhos: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma creatura o legado da nossa miséria”. (ASSIS, 1975a, p. 301). No entanto isto não passa de subterfúgio para encobrir um desejo que habitava o seu inconsciente, pois quando, no capítulo XC, vem à tona a gravidez de Virgília, ele é tomado de um verdadeiro frenesi de pai e varão: “sentia-me homem”. Logo, a afirmação pomposa de não ter querido transmitir o legado de sua desgraça é mera pacholice, isto é, pura farsa, pois, como ele mesmo afirma em relação à farsa sobre Damião Cubas contada pelo pai, “[...] quem não é um pouco pachola nesse mundo?” (ASSIS, 1975a, p. 102), isto é, quem não é um pouco farsante? E ele o era, e muito.

Nesse movimento pendular entre sinceridade e fingimento farsesco Brás Cubas dialoga com o leitor, e nesse diálogo só ouvimos à primeira vista a voz do narrador. Mas, como já observamos no capítulo “Ao leitor”, sua relação com o leitor é ora de galhofa (“pago-te com um piparote”), ora de um respeito irônico a um eventual interlocutor (“se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa”) de quem ele espera o julgamento. Aí é invocada a figura do outro, criada para ouvir: “É deste outro imaginado e virtual que vem o juízo ético, mas é o eu narrador que o desentranha e o invoca e obriga-se a escutá-lo e a transmitir-nos a sua voz”. (BOSI, 2006, p.11).

Memórias póstumas de Brás Cubas, primeiro romance de Machado de Assis da chamada segunda fase, teve uma recepção modesta na imprensa, sendo até questionado por Capistrano de Abreu se era um romance (apud GUIMARÃES, 2004, p.347). Urbano Duarte afirma que: “Para romance falta-lhe entrecho e o leitor vulgar pouco pasto achará para sua imaginação e curiosidade banaes”. (apud GUIMARÃES, 2004, p.350).

Por outro lado, percebia-se algo diferente dos anteriores como destaca Raul Pompéia: “É ligeiro, alegre, espirituoso, é mesmo mais alguma cousa: leiam com atenção, com calma; ha muita critica fina e phrases tão bem subscriptas que, mesmo pelo correio, hão de chegar ao seu destinatario”. (apud GUIMARÃES, 2004, p. 345).

Ao pensarmos nessa recepção “modesta”, buscamos entender o que era estabelecido como romance nesse período para entender o que os críticos buscavam e desta forma entender o motivo do questionamento por parte de Capistrano de Abreu. E aí Luis Filipe Ribeiro destaca que se quisermos entender o romance brasileiro no século XIX temos que entender a sociedade desse período:

Um autor, de alguma forma, segundo Clarisse, está condenado aos limites do imaginário de sua classe social. Ele só consegue captar e escrever aquilo que cabe no seu horizonte de vivência; ele está condenado a uma prisão de classe, da mesma forma que nós humanos estamos presos a um tempo e um espaço cujas grades só conseguimos romper mergulhando no imaginário.
(RIBEIRO, 2008, p. 41-42).

Pensamos que Machado mergulhou tão fundo nesse imaginário que acabou superando as expectativas da época e o modelo (ou os modelos) de romance até então praticados, dando voz a um personagem que escreve do outro mundo e conseguindo captar e revelar aquilo que está no seu “horizonte de vivência”, mas com um estilo peculiar, provocando assim a desconfiança da crítica. Machado de Assis estava preso ao seu tempo e ao espaço, mas graças a uma técnica peculiar de composição, haurida de um sólido conhecimento das diversas tradições narrativas, e a uma virtuosa concepção de representação do dado real conseguiu romper aquelas grades a que se refere Ribeiro e deixar a sua marca indelével na nossa literatura. É o que percebemos na seguinte passagem da obra: “Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance , em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas [...]”. (ASSIS, 1975a, p.151-152) (grifos nossos).

Esse narrador sempre deixa o leitor na expectativa do que vai acontecer: “Brás Cubas enquanto narra dissemina pelo romance um sem número de índices, ou “dicas”, que servem para alertar o leitor sobre se deve ou não confiar no narrador”. (FACIOLI, 2002, p. 94). Confiar ou não confiar no narrador cabe à capacidade de leitura e interpretação do leitor e, principalmente, à capacidade de acompanhar o movimento pendular entre sinceridade e fingimento farsesco ou pacholice que marca sua voz narrativa do início ao fim do romance.

O narrador das Memórias... tenta seduzir o leitor pelo inusitado da forma narrativa, ao declarar: “escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, “obra de finado”, “trabalhadas cá no outro mundo”. É o diferente que atrairá os leitores, que os provoca à reflexão e a captar os múltiplos sentidos que enfeixam a obra através da forma um tanto inusitada de sua composição."

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Fonte:
ANA PAULA MOUTINHO MOREIRA: "AS RELAÇÕES ENTRE AS PERSONAGENS DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS E QUINCAS BORBA". (Dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: Estudos de Literatura. Subárea: Literatura Brasileira e Teorias da Literatura. Orientador: Prof. Dr. PAULO AZEVEDO BEZERRA). Niterói, 2009.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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