A primeira mobilização refere a política ao conjunto das instituições e das práticas que formam o aparelho de Estado – aparelho que encerra as funções e os cargos de execução de políticas públicas, os processos de constituição, aplicação e coação de comandos e leis, de estabelecimento dos vínculos de representação – e concernem à administração e ao governo de um país ou nação. Nessa primeira acepção, remete ao Estado, ao aparelho de Estado, tudo o que é político, enquanto se lhe opõe, como não política, a sociedade civil. De acordo com esse significado do político, entende-se o poder como algo central e divisível, fala-se da divisão de poderes na própria unidade do Estado. Essa primeira acepção de política é aquela, tradicional, que associa poder e Estado, limitando, assim, o exercício do poder às práticas e às instituições que constituem o Estado. Em certos momentos, e de acordo com uma estratégia determinada, Foucault vai apenas estender esse significado, para considerar política toda atividade que de algum modo remete ao Estado. Como exemplo disso, podemos mencionar uma entrevista de 1973,
Em uma segunda forma de mobilização da palavra, mais típica de Foucault, o político se refere a toda relação de força presente entre grupos sociais e entre indivíduos
Foucault, em suas entrevistas, artigos e livros vai oscilar entre essas duas mobilizações da palavra ‘política’. O que pode ser entendido seja como uma falta de rigor, seja como um artifício, uma oscilação permitida, que visa a introduzir uma ambigüidade proposital na significação da palavra. Problematizar o político é fazer com que o campo de atuação do propriamente político se amplie, e passe a incorporar lugares e atividades, lutas e reivindicações, antes considerados apolíticos, isto é, com um interesse local, isolado do todo da sociedade. Problematizar o político é abordar o campo social, permeado por relações de força, sem uma pré-concepção já dada da política; é tentar reinventar a grade de inteligibilidade da política, é flexibilizar os seus significados, é introduzir ambigüidades onde o seu sentido parece claro, para criar um conjunto de noções articuladas entre si que permita pensar a política de uma outra forma.
Problematizar a medicina quer dizer analisá-la a partir das relações de poder. As relações estabelecidas entre seres humanos saudáveis, pacientes, médicos e instituições dos mais diversos tipos, que constituem o poder medical, formam uma trama que se intercala, que atravessa, que muitas vezes coincide com a trama de poderes que cobrem a sociedade. No poder medical, aparecem entrelaçadas as duas mobilizações da ‘política’. O poder medical possui dois vieses. Significa tanto o processo de sedimentação social da autoridade medical, como a estatização da medicina. Politizado, o poder medical exerce um papel crucial na anátomo-política, nos diversos processos de configuração disciplinar dos corpos individuais, enquanto, em seu outro viés, o poder medical estatizado participa da biopolítica, do modo pelo qual o Estado se encarrega da saúde das populações.
As três conferências do Rio, de outubro de 1974, marcam um momento em que o ponto de vista analítico de Foucault começa a se deslocar em relação a Vigiar e punir, saindo do plano estrito de uma microfísica, próprio à análise de instituições como a prisão, o asilo ou o hospital, e a interessar-se pelo plano da macrofísica do poder, em que a palavra ‘política’ faz uma referência ao modo pelo qual o Estado procura orientar as relações de poder. Como veremos a seguir, nas duas primeiras conferências, Foucault opta por uma visada mais próxima à primeira mobilização da palavra ‘política’, e considera as relações entre medicina e Estado: (1) a primeira conferência trata de uma questão contemporânea, a crise do modelo europeu de medicina social; (2) a segunda conferência, do surgimento e da transformação da biopolítica, desde o século XVII; (3) na terceira, porém, a análise volta a perseguir a trama fina da anátomo-política, nos moldes de Vigiar e punir, e trata da disciplinarização do hospital. A série de conferências sobre a medicina social acontece no Rio de Janeiro, e se dirige a uma platéia provavelmente constituída por médicos e outras pessoas interessadas no “funcionamento atual das instituições do saber e do poder medical”, no assunto das políticas públicas de saúde. Uma platéia – supõe-se – tomada pelo interesse reflexivo a respeito da aplicabilidade, no Brasil, do modelo de saúde pública em vigor nos países europeus.
(1) Segundo Foucault, a formatação do modelo europeu atual de políticas públicas da saúde remonta à época das discussões levantadas pelo lançamento do Plano Beveridge, em 1942, na Inglaterra, cujas propostas foram, em boa parte, transformadas em lei e aplicadas nos anos seguintes. Elas tiveram grande influência em vários países do pós-guerra europeu, na formação do que ficou sendo conhecido como o Estado de bem-estar, o Estado-providência etc. Com as discussões provocadas pelas propostas de Beveridge, não apenas na Inglaterra, mas na totalidade dos países desenvolvidos ocidentais, a saúde passa a ser uma das reivindicações políticas presentes nos programas eleitorais das mais variadas tendências. É certo que o Estado, na Europa, ocupou-se da saúde física dos cidadãos desde o século XVIII, mas antes de 1942, o fim último dessa ocupação era o próprio Estado, e a preservação da força física nacional só valia enquanto força de produção ou força militar própria a um Estado. Com o Plano Beveridge, dá-se uma inversão: não é mais o indivíduo que está a serviço do Estado, como trabalhador ou soldado, mas é o Estado que se coloca a serviço dos indivíduos. Garantir a saúde dos indivíduos, ou o seu direito à saúde, torna-se uma das principais funções do Estado. “Em 1942 – em plena guerra mundial que mata quarenta milhões de pessoas –, se consolidou não o direito à vida, mas um direito diferente, mais importante e mais complexo, que é o direito à saúde”. As exortações morais à higiene, características da moral do corpo no século XIX, vão dar lugar a uma nova moral que determina a relação dos indivíduos com seus corpos, mais voltada para o direito a estar doente e a interromper o trabalho por motivos de saúde. Se a saúde e a higiene pessoal, no século XIX, representam para o indivíduo, na sua relação com seu próprio corpo, uma obrigação moral em relação à sociedade e ao Estado, o direito à interrupção das atividades em caso de doença passa a ser pensado, em meados do século XX, como possibilidade moralmente justificada e até mesmo como obrigação do Estado em relação ao indivíduo. A assistência à saúde efetuada pelo Estado passa a ser entendida como forma de correção das desigualdades sociais devidas às diferenças de renda. O fato de que o Estado tome em mãos a saúde de todos, como sua obrigação, viabilizada pelos impostos, é entendido como instrumento de correção das desigualdades sociais.
Quando se fala em crise da medicina, nos anos setenta, fala-se da estagnação dos resultados obtidos com a estatização da medicina. Mas essa crise, como acontece, segundo Foucault, com qualquer crise, é apenas o paroxismo de um processo histórico que precisa ser reconstituído. Para Foucault, a crise da medicina e o fracasso das políticas de saúde, nos anos setenta, têm sua gênese histórica naquele momento em que a saúde se torna preocupação do Estado. Para entendermos a crise atual, é necessário conhecer e desvendar o processo histórico que culmina nela. Devemos nos interrogar sobre o modelo com que a medicina se desenvolveu na Europa durante os séculos XIX e XX, para sabermos em que medida ele deve e pode ser corrigido, pode e deve ser aplicado, em outros lugares, além da Europa e dos Estados Unidos. Preocupado com essas questões, Foucault ressalta três aspectos da crise atual: o risco medical, a sociedade da norma e o consumo da saúde.
O que está em jogo no risco medical, para Foucault, não é a eventual ignorância dos médicos, mas exatamente aquilo que deriva, ou que pode derivar, do saber medical. Foucault se interessa por aquilo que ele chama de “iatrogenia positiva” (iatrogénie positive), isto é, as doenças decorrentes de práticas medicais regulares, não de erros ou negligências dos médicos. Doenças e males cuja causa é justamente a eficácia da medicina científica, não a sua ineficácia. As atividades humanas, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo industrial, têm conseqüências diretas e decisivas sobre a vida e a evolução das espécies vivas do planeta. O que interessa Foucault, nesse momento da conferência do Rio, quando isola o objeto para uma possível bio-história, não concerne os efeitos da atividade humana sobre o todo da vida biológica, mas se limita ao risco medical, resultante dos efeitos do progresso científico da medicina sobre a própria espécie humana. Exemplos como a intoxicação farmacêutica, os efeitos colaterais desconhecidos das intervenções medicais, o tratamento por antibióticos das doenças infecciosas, que reduzem a imunidade, ou os resultados da manipulação genética, cujo desenrolar é imprevisível, senão fora de controle, permitem afirmar que a ação medical passa a afetar não apenas as vidas individuais, mas a vida da espécie humana como um todo. A bio-história, para Foucault, seria o estudo dos efeitos da ação medical sobre a vida da espécie humana. Esses efeitos são tanto mais relevantes quanto mais abrangente se torna a ação medical.
É justamente a enorme abrangência da ação medical, a medicalização sem limites de nossas sociedades normalizadas, que constitui o segundo aspecto da crise atual da medicina. Podemos falar em um domínio próprio da ação medical? Em princípio, a medicina se limitaria às doenças e às solicitações do paciente doente, às suas dores, a seu mal-estar. A doença e a demanda do paciente deveriam constituir o domínio da medicina. Para Foucault, porém, “não há nenhuma dúvida, a medicina foi muito além”. Para além da solicitação do doente, é a medicina que se impõe a ele, em “ato de autoridade”. A medicina judiciária, os exames medicais no campo do trabalho, os check-ups aconselháveis ou obrigatórios são alguns exemplos do poder medical, cujas funções normalizadoras debordam a demanda do paciente. Para além da doença, a própria saúde se constitui como campo para a intervenção medical. As políticas de prevenção de doenças e de controle da saúde, o acompanhamento médico constante não remetem diretamente à patologia, mas significam a abertura da saúde como domínio medical. Definir as normas da saúde e dos comportamentos saudáveis e obrigar os indivíduos a agir em conivência com essas normas tornou-se, para além da simples função terapêutica, uma das grandes atribuições do poder medical. A sociedade passa a se regular, a se ordenar, a se condicionar, de acordo com normas físicas e mentais que são determinadas por processos medicais. Mais do que uma sociedade regida pela lei, para Foucault, a nossa sociedade é regida pela norma e pelos mecanismos, em grande parte medicais, que em seu seio distinguem o normal do anormal. A medicina, segundo Foucault, “começa a não ter domínio que lhe seja exterior”. A medicina atual, por assim dizer, está em todo lugar, tem sempre uma palavra a dizer. A medicina está presente não apenas no hospital, mas em todos os outros aparelhos disciplinares que compõem nossas sociedades e que, por princípio, não são, ou não eram, diretamente do domínio medical: a prisão, a escola, a empresa. Nossas sociedades são sociedades da norma, nas quais critérios não jurídicos, associados principalmente a performances de base fisiológica, estabelecem a repartição entre o normal e o anormal. No domínio medical, que praticamente coincide com todo o domínio do social, tais normas prescrevem comportamentos individuais e os métodos terapêuticos para que os indivíduos se mantenham dentro das normas. Nesse sistema, o poder medical é responsável, por um lado, por estipular as normas, e por outro, por aplicá-las aos indivíduos.
A terceira característica marcante da medicina moderna está relacionada ao fato de que a saúde tornou-se um objeto de consumo. No século XX, organiza-se um enorme mercado da saúde – medicamentos, terapias, centros de recondicionamento físico e mental tornaram-se mercadorias, como quaisquer outras. Mercado para o qual a medicina é o agente e o intermediário mais importante. Passa pelas mãos dos médicos, ou é dirigida por médicos, a aplicação dos volumosos recursos que os orçamentos dos Estado e das famílias dedicam à saúde. Desde há muito, o corpo humano está presente no mercado como força de trabalho adaptada ao aparelho produtivo, mas o corpo humano entra no mercado também de uma outra forma, como consumidor da saúde. Esses dois tipos de inclusão mercadológica do corpo, como força de trabalho que se vende e como consumidor de uma saúde que se compra, estão relacionados justamente na forma de governo assistencial que deriva do plano Beveridge. Em um outro lugar, Foucault afirma: “o mundo está evoluindo na direção de um modelo hospitalar, e o governo adquire uma função terapêutica”. Se, por um lado, a função do governo é a de capacitar os indivíduos, pelo aprimoramento disciplinar das sociedades, e fazer deles os instrumentos do desenvolvimento econômico, por outro, o governo tem a função de corrigir os efeitos negativos causados, por esse mesmo desenvolvimento, sobre a vida e a saúde dos indivíduos."
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Fonte:
Leon Farhi Neto: "BIOPOLÍTICA
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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