A propósito do "Brás, Bexiga e Barra Funda"

A série "Fundo do Baú" de hoje versará mais uma vez sobre Literatura. Desta vez acerca do escritor paulista Alcântara Machado e sua obra "Brás, Bexiga e Barra Funda". Trata-se de uma resenha escrita em forma de carta por Couto de Barros, na revista "Verde", em 1927.
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A PROPÓSITO DO “BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA"

S. Paulo, 22 de março de 1927.

Alcântara:

Li seu livro com imenso prazer. De uma só vez. Um homem está num plano inclinado e, num dado momento, quer deter-se. Não pode. E escorrega até o fim. Seu livro igual ao plano inclinado.

Domingo, em casa de Paulo Prado, eu dizia para os da roda que só quem conhece S. Paulo podia compreender integralmente Brás. Bexiga e Barra Funda. Nesse sentido, era uma obra regionalista. Houve protestos.— Não, disse Mario de Andrade.—Não, disse Paulo Prado. Chegou-se mesmo afirmar que era preciso acabar com essa "historia de regionalismo" Si os ânimos estivessem um pouco mais exaltados e Mr. Bacharach entrasse na discussão, acabava-se concluindo que o regionalismo não existe.

Não era possível demonstrar a minha tese. Por mais bem educados que sejam os interlocutores, há sempre tanto barulho e tanta cousa alheia em volta de uma discussão, que ninguém pode distinguir o ponto essencial, que está no meio, como ninguém vê o poste de parada, quando a multidão se acotovela em volta. Entretanto, o poste está lá, visível: é só levantar a vista para o céu... Mas, ali, naquele terraço em que estávamos reunidos, uma formiga no corrimão da escada; o suicídio de uma nuvem no céu; a cor do licor: o mercúrio do termômetro; a frase latina na parede; um pouco de estatua e aquela enorme figa preta, que parece um punho de boxe ameaçador contra o azar, tudo atrapalhava, tudo desviava, tudo perturbava o pensamento. Mas, agora, a você eu faço questão.

Um livro matematicamente falando é um X. Para o autor, X tem um valor definido, digamos 100. Só o autor sabe intimamente o livro. Dentro das suas paginas, tudo tem uma significação especial, um valor próprio. E' um todo. Para o leitor é deferente. Para o leitor, raramente acontece coincidir o valor que ele dá com o valor 100 pressuposto. Ou não chega a 100, ou ultrapassa. E tanto num, como noutro caso, o livro perde. Anatole France disse que um dia se surpreendeu descobrindo profundidades que nunca existiram não sei mais em que autor grego. Estava "ultrapassando..."

Essa cousa pode acontecer mesmo nos livros descritivos. Todo o mundo "compreende" uma descrição do Japão, sem nunca ter ido lá, lendo Loti, Lafcadio Hearn ou Horacio Scrosoppi. Entretanto, essa descrição tem muito mais interesse para aquele que viu. Mas, mesmo para "aquele que viu", o livro já é deferente, em relação à idéia que dele faz o próprio autor. Sim, porque foi debaixo de certo estado físico, sob certa pressão emocional que o ator presenciou certas cenas, anotou certos aspectos, fixou certos tipos. E é impossível transplantar para o espírito do leitor esse ambiente psicológico, que é por assim dizer uma invenção do autor, propriedade sua e que só ele pode usufruir. Sob este ponto de vista, todo livro é hermético. O regionalismo é uma espécie de hermetismo. Hermetismo objetivo.

Você conhece o caso doméstico da receita de doce. A receita está ali escrita, direitinha, não falta nada. Mas vá alguém tentar fazer! Doce é mágica. Precisa jeito. Ler, o mesmo. As palavras estão ali, o sentido gramatical também. Mas que dê o outro sentido, o sentido que "vale"?

Em arte, a questão não está tanto em compreender, mas em reconhecer. A função do reconhecimento é tão importante que, exagerada, deu naquela teoria de protestou energicamente: “a man puts a model before him and he paints it so neat as to make it a deception. Now I ask any man of sense is that art?"

Todos gostam de reconhecer, porque reconhecer é viver de novo, é bisar a vida, é tornar reversível o tempo linha reta de Bergson.

Eu citei o exemplo da receita de doce. Vou citar o do mapa. Mapa, criança compreende. Mas um mapa da cidade de S. Paulo para quem reside aqui tem outra significação. Além do simples valor utilitário, topográfico, o mapa torna-se uma cousa rica, cresce por aluvião de idéias e sentimentos. Esparrama-se. Inunda, principalmente si o paulista está fora no estrangeiro. Tem a Estação da Luz, tem a rua onde ele mora, tem a casa da namorada.

Eu podia em vez de mapa falar em retrato, falar em bandeira, falar em tudo que implique reconhecimento e produza atropelo de representações mentais. Mas você está farto de saber tudo isso. É ou não é? Estou dizendo todas essas cousas para mostrar que um livro só é compreendido integralmente quando é "sentido", e só pode ser sentido quando o leitor começa a refazer as experiências vitais que constituem a matéria prima do livro, quer essas experiências sejam objetivas (como na descrição), quer subjetivas (como num caso de amor, por exemplo).

As análises de Sthendal ou de Proust só interessam quando a gente diz "é isso mesmo" ou "tal e qual" Ora, "isso mesmo" ou "tal e qual" que é senão o próprio "reconhecimento"?

Quanto ao Brás, Bexiga e Parra Funda (como você gosta dos bês, seu Alcântara, desde o Pathé-Baby!), eu digo que aquele que não conhece S. Paulo, como nós conhecemos, não pode gostar dele como nós gostamos. Um estranho estará muito longe daquele valor 100 convencional. Seu livro exige, pelo menos nos contos mais característicos, como Gaetaninho, Carmela, Liselta, O Monstro de Rodas etc., uma bagagem de conhecimentos empíricos sobre o nosso meio, usos e costumes para poder ser apreciado. Quem não tiver essa bagagem não passa. Fica nos 'umbrais" do livro. Poderá apreciar as Notas biográficas do novo deputado, mas nunca poderá penetrar o valor de um conto como os acima citados. E' que falta a esse leitor a "função do reconhecimento" Será para sempre um livro seco. Dry. Extra-dry, como você. Depois, há muito dialogo no Brás, Bexiga e Barra Funda, o que agrava o seu hermetismo.

Si fizessem um concurso entre os escritores nacionais e prepusessem como tema os enredos dos seus contos, você ganharia o prêmio. Ganharia longe. Agora, escute. Lembra-se do jogo do "diavolo"?

E' preciso saber imprimir uma certa velocidade ao carretel, para que ele, atirado ao ar, volte direitinho ao barbante que o equilibra. Sem essa velocidade, não vai. Ora, muitos livros não "vão" por falta dessa velocidade espiritual, por parte do leitor. Falta-lhe a experiência objetiva ou subjetiva e, faltando isso, falta tudo. Você pode contar a mais bela historia de amor a um homem que nunca sofreu casos amorosos, e ele chamará você de bobo. Com toda a razão.

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Fonte:
A. C. Couto de Barros: "Verde : revista mensal de arte e cultura", ano 1, n. 2, out. 1927 disponível digitalmente no site biblioteca: Brasiliana - USP

Nota:
Para melhor compreensão do texto, a ortografia foi atualizada para os padrões atuais.

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