Psicologia e Governo na Ótica de Nikolas Rose



"Nikolas Rose, como mencionado anteriormente, é um dos autores do grupo inglês de estudos sobre a governamentalidade. Formado em Sociologia, ex-professor do Goldsmith College of Sociology em Londres, Rose trabalha atualmente na London School of Economics (LSE) onde desenvolve pesquisas na área da subjetividade contemporânea. Os trabalhos que usamos em nossa análise foram, em sua maioria, escritos, na década de noventa, período no qual ele se dedicou especialmente ao estudo das ciências psi, sendo alguns desses textos feitos em parceria com Peter Miller, também professor da LSE e membro da Escola inglesa de governamentalidade. O objetivo das pesquisas de Nikolas Rose é fazer uma genealogia da subjetivação. Como subjetivação, Rose (1998) entende “todos os processos e práticas heterogêneos pelos quais o ser humano se relaciona consigo e com os outros como sujeitos de um certo tipo” (p.25). Nesse sentido, fazer a genealogia da subjetivação é refletir sobre como o ser humano é pensado (ROSE, 1998). A metodologia genealógica não busca fazer uma história das idéias, mas a história “das práticas e técnicas do pensamento enquanto ele busca fazer-se técnico” (ROSE, 1998; p.23). Escrever a genealogia da subjetivação é buscar entender os caminhos pelos quais o self funciona como um ideal regulador das formas de vida contemporâneas (no consumo, no planejamento da vida, nas organizações). Assumindo as idéias de Foucault, Rose busca fazer uma genealogia da relação dos seres humanos consigo mesmos e das formas técnicas que essa relação assumiu. O autor afirma, que o ser humano é uma criatura cuja ontologia é histórica , ou seja, “o ser humano não é a base eterna da história e da cultura humanas mas um artefato histórico e cultural” (ROSE, 1998, p.22). Isto quer dizer, em outras palavras, que o homem não possui uma essência universal, mas que a forma de relação conosco mesmos muda de acordo com o período histórico e com a cultura da sociedade que estamos avaliando. Portanto, para entender as formas de subjetivação contemporâneas, devemos relacioná-las com as práticas sociais que nos rodeiam e saber que nem sempre existiu um self psicológico como vemos hoje, isto não é naturalmente inerente à espécie humana, é uma construção histórica.

Rose (1998) deixa claro que deseja se diferenciar de análises clássicas da Sociologia como as propostas por Giddens (1991), Lasch (1983), Bauman (1998) e Beck (, 1992). Esses estudos sociológicos tratam o surgimento do individualismo e do self como conseqüência de uma transformação social generalizada, da tradição para a modernidade, do feudalismo para o capitalismo, da solidariedade mecânica para a orgânica, etc. Essa perspectiva é chamada de destradicionalização (Rose, 1998; 1996). Rose afirma que a subjetividade tem sua própria história e que esta história é mais heterogênea, mais prática e técnica que os estudos sociológicos sobre a destradicionalização sugerem. Sem dúvida, estudos como estes são relevantes para entendermos o problema da subjetivação mas devemos insistir que tais mudanças não transformam o ser humano pela mudança que produzem. A mudança nas relações de subjetivação não pode ser estabelecida unicamente por derivação ou interpretação de outras formas culturais ou sociais. Aqui a história é outra. Rose busca reconstruir a história específica da subjetivação. Os dispositivos de produção de sentido (vocabulários, normas, sistemas de julgamento) “produzem experiência, não são eles mesmos produzidos pela experiência” (ROSE, 1998, p.25). Esses dispositivos precisaram de ser inventados, refinados e estabilizados para que se disseminassem e fossem implantados em diversos locais. A genealogia da subjetivação busca focalizar diretamente as práticas que inserem os seres humanos em regimes particulares de pessoa.

A psicologia, como tecnologia intelectual, provocou uma mudança significativa nas formas de subjetivação contemporâneas. Segundo Rose (1998), ela não pode ser vista como um campo dado previamente, separado da “Sociedade”. Não é uma ciência neutra, desinteressada e excluída do ambiente cultural no qual se insere. Além disso, o objeto de estudo da psicologia também não é preexistente, não tendo sido meramente descoberto. A psicologia constituiu seu objeto no processo mesmo de conhecê-lo. Ela não é um conjunto de significados nem um discurso, mas uma tecnologia, uma união de artes e habilidades que une pensamentos, afetos, forças e artefatos. A noção de tecnologia pode parecer estranha e mesmo paradoxal quando se trata das ciências humanas mas nossa experiência como pessoas deriva de uma série de tecnologias humanas. . Falar em tecnologias humanas não implica na existência de tecnologias “desumanas”, que esmagam e desumanizam a pessoa que somos. Ao contrário, o poder dessas tecnologias é que elas nos oferecem a promessa de nos adequarmos à nossa natureza (ROSE, 1998). A escola, a prisão e o manicômio são exemplos dessas tecnologias. O autor afirma que “tecnologizar” a conduta humana não é ruim porque essas tecnologias produzem e encaixam os seres humanos em certos tipos de ser cuja existência é capacitada e governada por sua organização num campo tecnológico. Vejamos como Rose (1998) explica sua hipótese de que a psicologia é uma tecnologia humana.

Em primeiro lugar, para Rose (1998), a linguagem psicológica constitui uma tecnologia intelectual que permite enquadrar a realidade num formato específico, ordenando, classificando e permitindo que ela se encaixe em certo tipo de reflexão. A linguagem psicológica, com suas teorias e conceitos, forma um tipo de maquinário intelectual que torna o mundo pensável em apenas algumas descrições, as descrições psicológicas que nos são dadas. É difícil analisarmos o que chamamos de personalidade em um modelo que não seja o psicológico. É difícil cogitarmos dar outra interpretação a esse fenômeno. Além desse arsenal lingüístico, a psicologia, como outras disciplinas, também engloba uma série de mecanismos de inscrição, e de procedimentos que colocam o mundo em forma de observações, gráficos, tabelas, figuras, etc., criando os objetos do discurso psicológico e tornando-os perceptíveis, notáveis e inteligíveis. A psicologia, em associação com outras tecnologias humanas, forma uma parte das racionalidades práticas de tudo aquilo que visa agir sobre os homens para moldar sua conduta como o aparato legal, a escola, a direção espiritual, entre outros.

O papel da psicologia pode ser evidenciado quando a abordamos não como uma mera aplicação da ciência mas em termos de expertise. O expert é “um tipo de autoridade social, empregado em torno de problemas, exercendo um diagnóstico, baseado numa alegação de verdade e de eficácia técnica” (Rose, 1998; p.86). Ao usar a noção de expertise mais do que grupo profissional ou setor ocupacional, Rose (1998) busca chamar a atenção para três características. A primeira é que a expertise é heterogênea, e seu estilo característico de atividade é a bricolagem: um amálgama de saberes e técnicas diferentes que formam um complexo know-how. Não há um corpo único de teoria. As técnicas são unificadas numa prática pedagógica: cursos, credenciais, livros, etc. Em segundo lugar, essa noção nos permite distinguir uma série de processos diferentes: o avanço ocupacional dos psicólogos, a capacidade da psicologia tornar a realidade inteligível de certas formas e a invenção de técnicas psicológicas específicas. Queremos dizer que as conseqüências sociais da psicologia não são as mesmas conseqüências sociais dos psicólogos. A psicologia empresta seus conceitos livremente a outros experts que guiam sua prática por uma ética psi, o que permite também a aplicação de suas práticas. Em terceiro lugar, a noção de expertise ajuda a esclarecer como ocorrem as afiliações entre distintas autoridades (psi e não psi). A psicologia promete uma simplificação das tarefas das autoridades que lidam com o comportamento humano. Essas autoridades podem visualizar, avaliar e diagnosticar seus sujeitos, tendo com isso, autoridade social pois a base teórica psicológica não é meramente técnica e científica, mas ética (ROSE, 1998).

A expertise psicológica não apenas simplifica o comportamento dos seres humanos ao oferecer critérios que o encaixam em certas categorias, facilitando sua inteligibilidade e condução, mas exerce domínio sobre os indivíduos à luz de um saber sobre sua natureza interior “tornando a autoridade uma atividade quase terapêutica” (ROSE, 1998; p.92) pois:

(...) um novo tipo de relacionamento é estabelecido entre os experts psi e aqueles que os consultam. Sejam eles gerentes, pais ou pacientes, sua relação com a autoridade não é nem e subordinação da vontade e nem de persuasão racional. Em vez disso, tem a ver com um tipo de discipulado. A relação entre expert e cliente é estruturada por uma hierarquia de saber, é mantida por um desejo de verdade e certeza e oferece ao discípulo, a promessa de auto-entendimento e auto-aprimoramento
(ROSE, 1998, p.93)

Com a inclusão da psicologia no treinamento e credenciamento dos profissionais da conduta, torna-se possível que as decisões tomadas por essas autoridades sejam conduzidas de forma a estarem de acordo com os interesses daqueles que são governados. Essa transformação ético-terapêutica é um aspecto da força que une diversas autoridades à expertise psi e que a tornam tão poderosa. A psicologia fornece as autoridades um valor humano e moral e legitimidade às suas decisões cotidianas. O caminho ético para a autoridade é o self, pois é ele o elemento que permite à psicologia governar os indivíduos."

---
Fonte:
Danielle Silva Veiga: "A Psicologia como tecnologia de governo da subjetividade contemporânea". (Dissertação Orientadora: Prof.a. Dra. Cláudia Maria Passos Ferreira Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Ciências Humanas e Saúde). Rio de Janeiro, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!