A TRAJETÓRIA ARQUEOLÓGICA DE FOUCAULT: AS OBRAS PROGRESSIVAS
“Para um melhor entendimento da fase arqueológica de Foucault, faz-se necessário reconstituir a trajetória de obras que a assinalam com tais características. O objetivo desta seção não é apenas uma análise cronológica da obra foucaultiana, mas um exame das mutações por que a arqueologia passou, sem perder a sua essência primeira, que é a análise do discurso. Foucault (2004, p. 20) assevera aos leitores que “[...] v rios, como eu sem d vida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis”.
Portanto, apontam-se as modificações ocorridas na fase arqueológica de forma sucinta e objetiva, mostrando que a própria obra foucaultiana apresenta-se como uma descontinuidade; a dispersão que lhe é característica não significa contradição, mas antes, uma forma diferente de pensar o ainda impensado.
História da Loucura (1961): Loucura ou Ausência de Razão?
Em 1961, Foucault publica a sua primeira obra - História da Loucura na Idade Clássica. O referido trabalho é fruto de sua tese de doutorado e, em linhas gerais, aponta que a loucura e a razão possuem uma história paralela. Corroborando com essa idéia, Araújo (2008) menciona que nessa obra fica descaracterizada a herança de uma razão individualizada, do ser como representação objetivada e do ser analisado de forma dialética, que marcavam a época.
Essa obra não teve intenção de mostrar a história da loucura, propriamente dita, nem descrever sintomas, evolução e cura. Porque para o autor, a pergunta a ser postulada não “o que é a loucura?”, mas “como a loucura percebida pelas práticas institucionais?”. Portanto, esta obra mapeia o estatuto histórico, social e político da loucura nas diversas épocas da sociedade (ARAÚJO, 2008). Colaborando para esse entendimento, Machado (2006, p. 157) alega que esta obra desvela que “[...] não no nível da teoria da loucura – jurídica, médica, ou psiquiátrica – que se encontra o essencial da relação histórica entre razão e loucura: é na relação direta com o louco na exclusão institucional e nos critérios sociais que a possibilitam”.
Para tanto, Foucault faz uma viagem pela história e analisa as experiências e a loucura no decorrer de uma linha temporal, verificando que é impossível determinar a loucura em si mesma, em seu estado original, pois ela somente existe quando está imbricada em um contexto social. Assim, percebe-se que a loucura é apresentada em uma descontinuidade de época, marcando a maneira com que a sociedade se relaciona com o louco. Vandresen (2008) menciona que a tese de Foucault é de que o conceito de loucura é histórico e que por meio do discurso presente em cada época, é possível encontrar condições para a formulação de um saber sobre a mesma.
A importância dessa obra é indiscutível, porquanto abre uma seqüência de outras obras que caracterizam a fase arqueológica e trazem em seu bojo um novo olhar sobre o discurso. “Enfim, compreender a loucura como produto social exige uma mudança na percepção histórico-filosófica” (VANDRESEN, 2008). É relevante destacar também que nessa obra, o problema maior é a análise prioritária em definir as regras de formação dos objetos para individualizar o discurso sobre a loucura, portanto, privilegiou-se o nível dos objetos e não os tipos enunciativos, conceitos ou estratégias.
Outro fator proeminente dessa obra que inicia a jornada arqueológica foucaultiana é o fato de questionar o saber da psiquiatria como alicerçado sobre proposições da racionalidade científica moderna. Nesse sentido, Ara jo (2008, p. 35) defende que “Foucault teve um papel importante no movimento da antipsiquiatria por meio dessas suas idéias acerca da loucura investida nos saberes que muitas vezes se tornam poderes de controle e sujei ão [...]”.
O Nascimento da Clínica (1963): A Arqueologia no Olhar Médico
Publicada em 1963, a segunda obra da fase arqueológica de Michel Foucault, O Nascimento da Clínica, ficou à sombra da que a antecedeu e da que a sucedeu (ARAÚJO, 2008). Diferentemente da História da Loucura na Idade Clássica, essa obra estuda a doença em geral, não se atendo somente à loucura, na época clássica e na modernidade; porém, a partir do olhar e da linguagem, duas abordagens diferenciadas, mas, intrinsecamente relacionadas (MACHADO, 2006).
Nessa obra de 1963, Foucault não analisa a medicina clínica com base nos preceitos epistemológicos ou pela história das idéias; contrariamente a isso, foge dessas abordagens e avalia a transformação ocorrida no conhecimento médico, por meio do deslocamento do olhar médico sobre a doença. Diante disso, Araújo (2008, p. 36) explicita que “grande parte da importância dessa obra reside na abordagem arqueológica da história das idéias. No lugar do comentário, o arqueólogo ouve o discurso, os enunciados articulados a outros enunciados, evidenciando as diferen as entre eles”.
As Palavras e as Coisas (1966): A Arqueologia que Revela Epistémês
A Palavra e as Coisas, publicada em 1966, trata-se de uma obra densa, extensa, erudita e que percorre o pensamento ocidental do século XVI para possibilitar a compreensão do aparecimento e evolução das ciências humanas (ARAÚJO, 2008). Destarte isso, apresenta a proposta arqueológica como uma metodologia que investiga e descreve os saberes formados em determinada época, primordialmente, daquela ordem que articula qualquer saber, que o autor denomina epistémê.
Nessa obra, Foucault quer evidenciar que há uma ordem na disposição das coisas que condiciona o aparecimento dos saberes, e que esta ordem aparece por meio do discurso produzido. Logo, em 1966 surge o conceito implícito de discurso que só é formalizado explicitamente na obra de 1969. De acordo com Araújo (2008, p. 38), o discurso que aparece As Palavras e as Coisas “[...] o que cada época pôde dizer ou articular significativamente, uma espécie de acontecimento do dizer na esfera do saber, típico do pensamento de uma época, sem ser ideologia nem proposição científica. O discurso arma o pensamento”.
A definição de epistémê, não configura o mesmo conteúdo do saber, mas é a existência de uma ordem anterior a ele que condiciona o seu aparecimento. Colaborando para esse entendimento, Machado (2006, p. 133) desvela que a epistémê “[...] a ordem específica do saber; a configuração, a disposição que o saber assume em determinada época, e que lhe confere uma positividade como saber”. Ainda de acordo com Machado (2006), essa ordem do saber na obra de 1966 de Michel Foucault, pode ser depreendida pela distinção de dois aspectos complementares: [1] uma época determinada caracteriza-se por uma epistémê que rege o conjunto das normas de um saber e; [2] a profundidade de análise, pois, na superfície o que se encontram são opiniões, que só podem dar lugar a uma doxologia, ou seja, manifestação de glória perante alguma situação.
Para evidenciar a descontinuidade que caracteriza a arqueologia do saber,
Essa divisão proposta por Foucault não é somente uma periodização histórica, mas revelada pelo discurso de cada época. Os discursos dessas eras determinam o modo como as coisas são ordenadas e interpretadas, formando o discurso central de cada época analisada (VANDRESEN, 2008).
A Arqueologia do Saber (1969): A Arqueologia do Discurso
De acordo com Machado (2006, p. 156), A Arqueologia do Saber “[...] um livro intrinsecamente relacionado às pesquisas históricas realizadas por Foucault, no sentido de que sem referência a elas seria impossível compreender seu significado”. Portanto, esta obra, publicada em 1969, representa um ponto final da trajetória arqueológica foucaultiana, visto que as próximas publicações do autor se detiveram nos aspectos relativos à genealogia.
A Arqueologia do Saber é uma obra proveniente da união de dois outros textos anteriores: [1] Sobre a Arqueologia das Ciências, um texto escrito em respostas às questões formuladas pelo círculo de epistemologia francesa e; [2] Resposta a uma Questão, uma resposta dada a questões formuladas pela revista Esprit. Portanto, esta obra, em parte, foi escrita para dirimir as dúvidas metodológicas suscitadas sobre a obra anterior – As Palavras e as Coisas (ARAÚJO, 2008; VANDRESEN, 2008).
Neste livro, Foucault encerra um “m todo” iniciado desde a sua primeira obra, visto que define a arqueologia como sendo a análise dos discursos produzidos ao nível das formações discursivas e dos enunciados. Na obra, o autor define que as regras de formação de um discurso são individualizadas por meio do entrelaçamento das descontinuidades percebidas ao nível dos objetos, modalidades enunciativas, conceitos e estratégias. Ora, suas obras anteriores não fazem menção direta a esses níveis, mas intrinsecamente observa-se a presença desses aspectos discursivos nos interstícios de toda a trajetória arqueológica.
Podem-se citar algumas evidências dessa presença subliminar do “m todo” arqueológico nas obras anteriores, levando-se em consideração os seguintes aspectos: [1] na obra A História da Loucura, a problemática pesquisada refere-se à emergência dos objetos, e desse modo, a questão primordial foi descrever o sistema de formação dos objetos para individualizar o discurso sobre a loucura; [2] no Nascimento da Clínica, a preocupação centra-se nas modificações que se efetuaram nas modalidades enunciativas do discurso médico ao longo das épocas e; [3] na obra As Palavras e as Coisas, Foucault privilegiou o estudo das regras que formam os conceitos (MACHADO, 2006). Por isso, pode-se depreender que esta última obra da fase arqueológica é o resultado da reflexão gerada em todas as obras anteriores.
O termo “m todo” aqui utilizado entre aspas pelo fato de constituir-se em um conceito não convencional do que normalmente se caracterizaria. Fica claro
Na obra mencionada que encerra a fase arqueológica foucaultiana, fica evidente a busca que o autor faz pelo estranho, pela rejeição da linearidade dos objetos discursivos, constituindo-se em uma linha metodológica indeterminável, que vai avançando conforme a pesquisa se delineia, os objetos requerem e os conceitos permitem (THIRY-CHERQUES, 2008). Nesse sentido, Araújo (2008, p. 57) assevera que tal obra “[...] focaliza as práticas discursivas que formam o saber de uma época, os arquivos, isto é, os enunciados efetivamente ditos e o funcionamento dos discursos [...]”.
Nas palavras de Foucault (2004, p. 18), A Arqueologia do Saber “não a retomada e a descrição exata do que se pode ler
[...] não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade. Mas esta dificuldade não é apenas negativa; não se deve associá-la a um obstáculo cujo poder seria, exclusivamente, de cegar, perturbar, impedir a descoberta, mascarar a pureza da evidência ou a obstinação muda das próprias coisas; o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo e permitir-lhe que se encarne em uma visível e loquaz objetividade; ele não preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações.
Isto é, conceber o discurso e seus enunciados em cada época, como prática discursiva, é buscar reconhecer sua singularidade de emergência. É mostrar que além do discurso revelar-se em sua dispersão e descontinuidade, também produz um deslocamento do sujeito. Portanto, a arqueologia do saber ao situar suas análises no âmbito do acontecimento, evita as conclusões precipitadas e equivocadas, ao cair em ilusões e certezas absolutas (VANDRESEN, 2008).
Nessa mesma época, Bachelard e Canguilherm, também franceses, estudavam as condições para que um determinado objeto pudesse ser tratado cientificamente, sob um enfoque epistemológico. Nesse contexto, Foucault escreve A Arqueologia do Saber, seguindo essa nova trilha filosófica, por m sua preocupação foi indagar como e “[...] quais os arranjos na ordem do saber produziram determinados objetos que uma ciência pode descrever [...]” (ARAÚJO, 2008, p. 57). Perante o ambiente intelectual da época, Foucault serviu de alvo às críticas marxistas e existencialistas, por esse motivo, na contemporaneidade sua trajetória arqueológica tem muito mais a mostrar se comparado à década de 1960. Diante disso, Foucault (2004, p. 28) aduz que,
É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância.
Verifica-se assim, que para o autor, a emergência do discurso ocorre por meio de regras que possibilitam com que ele apareça e não outro em seu lugar. Nesse ínterim, a partir dessa obra, somadas às de mesma natureza da época, cai por terra o representacionismo, que se caracterizava pela relação existente entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece tal objeto. Ou seja, para Foucault, os objetos não preexistem ao saber, “[...] eles existem como acontecimentos, como aquilo que uma época pôde dizer por causa de certos arranjos entre o discurso e condições não discursivas” (ARAÚJO, 2008, p. 58). Assim sendo, Foucault configura a existência de epistemes em cada época, conceito muito semelhante ao termo “paradigma” preconizado por Kuhn.
Nessa obra, aparecem os conceitos mencionados por Foucault de formação discursiva e seus níveis: objetos, modalidades enunciativas, conceitos e estratégias, já anteriormente mencionadas. O filósofo francês propõe analisar esses quatro níveis por meio das regras que definem a sua existência e transformação, ou seja, uma formação discursiva aparecerá como individualizada, quando se puder descrever o conjunto de regras que determinam seus objetos, modalidades enunciativas, conceitos e estratégias (FOUCAULT, 2004). Enfim, o empreendimento arqueológico presente na obra de 1969 visa libertar-se de uma tradição histórico-transcedental baseada numa subjetividade fundadora, que fica claro nas palavras de Foucault (2004, p. 137-138),
Desse tema a análise enunciativa tenta liberar-se, para restituir os enunciados à sua pura dispersão; para analisá-los em uma exterioridade sem dúvida paradoxal, já que não remete a nenhuma forma adversa de interioridade; para considerá-los em sua descontinuidade, sem ter de relacioná-los, por um desses deslocamentos que os põem fora de circuito e os tornam inessenciais, a uma abertura ou a uma diferença mais fundamental; para apreender sua própria irrupção no lugar e no momento em que se produziu; para reencontrar sua incidência de acontecimento.
Assim sendo, pode-se à primeira leitura da obra em questão, concluir de forma equivocada que essa estratégia de investigação proposta por Foucault é hermética e inacessível aos pesquisadores. Todavia, trata-se de abandonar pressuposições existentes e “mergulhar” no desconhecido como fez o próprio autor observando os dados e cunhando os termos que desenvolveram sua própria Epistemologia. Portanto, tal obra, a cada releitura desvela inúmeros detalhes e suscitam reflexões relevantes para a busca de um olhar que oferece alternativas dinâmicas no estudo da produção do saber nos campos de conhecimento.
Diante das ponderações expostas até o presente momento, pode-se depreender que os conceitos presentes na fase arqueológica foucaultiana possibilitam a inserção de novos elementos para a compreensão da produção do saber na área contábil. Destarte isso, a próxima subseção revisita um discurso produzido por Riccio, Mendonça Neto e Sakata, em 2007, que trata do status quo da utilização das metodologias foucaultianas no âmbito contábil."
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Fonte
FLAVIANO COSTA: "A PRODUÇÃO DO SABER NOS CAMPOS DE CONTROLADORIA E CONTABILIDADE GERENCIAL: UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA INSPIRADA NA ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA". (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Programa de Mestrado em Contabilidade do Setor de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª. Drª. Márcia Maria dos Santos Bortolocci Espejo). 2010.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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