Da presença shakespeariana no Brasil no século XIX



INTRODUÇÃO – DA PRESENÇA SHAKESPEARIANA NO BRASIL NO SÉCULO XIX AO CASO OTELO

“Nesta capital, onde, infelizmente, vive em abandono e no desprestígio a arte dramática, têm sido admirados notabilíssimos intérpretes do personagem do Othello. Vimos e ouvimos Rossi, Salvini, Emanuel, Novelli e o nosso imortal João Caetano. Todos eles, artistas de gênio, foram extraordinários no desempenho do papel do Mouro de Veneza; cada um desses heróis do palco desempenhou, segundo o seu temperamento, o papel do fogoso, terno e criminoso Othello, cada um o interpretou, sem faltar entretanto à verdade, segundo o seu gênio, imprimindo-lhe um cunho acentuadamente individual, de modo a enfraquecer e aniquilar a teoria errônea do confronto, tão empregada pela crítica.” Jornal do Comércio, 06/05/1891, p. 1

Harold Bloom, um dos mais polêmicos críticos contemporâneos da obra de Shakespeare, considera o bardo inglês como o centro do cânone ocidental, e como o próprio criador da noção do ser humano moderno, com toda a sua articulação de conhecimento de mundo e de si mesmo. Isso porque, tomando a expressão cunhada por Hegel, as personagens shakespearianas seriam as primeiras, na história da literatura, a serem “artistas livres de si mesmas”, podendo entreouvir seus próprios pensamentos e ações no decorrer do enredo.

Quer concordemos ou não com Bloom, o fato é que a abrangência e a popularidade da obra shakespeariana são inegáveis. Traduz-se Shakespeare para línguas tão díspares quanto o português e o swahili, o alemão e o bengali, o japonês e o grego. Shakespeare é encenado por todo o mundo, às vezes mantendo-se uma reverência clássica à obra, às vezes usando-a como ponto de partida para experimentações dos mais variados graus.

Em vários países, existem pesquisas extensas sobre a apropriação cultural da obra shakespeariana, e sobre o histórico de traduções, adaptações e encenações das peças no país em questão. Bons exemplos incluem a Alemanha, onde a admiração por Shakespeare, desde o século XVIII, motivou até o aparecimento da expressão
Unser Shakespeare – “Nosso Shakespeare”. Hauptmann, em 1915, chegou a afirmar que Shakespeare estava mais vivo na Alemanha do que em qualquer outra nação, inclusive a Inglaterra. Outro exemplo interessante é a Índia, que primeiramente recebeu Shakespeare como uma imposição do colonialismo britânico para depois dele se apossar, adaptando-o para formas teatrais tradicionais.

Como uma obra de tal magnitude penetrou no Brasil? Que leituras e apropriações foram empreendidas? Esta tese foi iniciada tendo por objetivo investigar a entrada de Shakespeare ao Brasil no século XIX, analisando suas versões francesas setecentistas, de Voltaire e de Ducis, por exemplo, na cena do Rio de Janeiro e, em seguida, os autores da dramaturgia nacional que escreveram peças que dialogam com a obra do autor inglês. O estudo focaria, particularmente, no caso de
Otelo e de suas versões na literatura dramática brasileira no período em questão, demonstrando a intensa recorrência do protagonista dessa peça em relação a outras personagens do cânone shakespeariano.

O projeto inicial pretendia não apenas passar a limpo certas questões debatidas ao longo do tempo por estudiosos do teatro brasileiro – por exemplo, se João Caetano encenou ou não o
Otelo de Shakespeare, alternando-o com a adaptação de Ducis, traduzida para o português por Gonçalves de Magalhães mas também, e principalmente, demonstrar como a apropriação da personagem foi perene em nossas terras, ensejando um número considerável de obras que se valem de Otelo em maior ou menor grau. Algumas peças verdadeiramente se impregnam do enredo e das personagens da obra anterior (como O novo Othelo, de Macedo, que parodia o texto duciano), enquanto outras fazem mera citação (como O Protocolo, de Machado de Assis). De qualquer modo, é interessante perceber o fenômeno da citação, que indica um presumido conhecimento prévio do público.

Um dos objetivos do projeto, assim, seria o de contribuir para os estudos sobre as relações entre Shakespeare e o Brasil e sobre a própria literatura dramática nacional. três obras publicadas que se ocuparam, ainda que marginalmente, do assunto, mas que não esgotaram a questão, até porque não era tal a proposta de nenhuma delas.

O primeiro trabalho é o de Celuta Moreira Gomes,
Wil iam Shakespeare no Brasil, de 1961. A obra, na verdade, é um livro de referência bibliográfica de valor inestimável, muito abrangente, que trata das citações de obras do dramaturgo inglês em textos publicados no Brasil até 1954 (livros, periódicos, tudo o que pudesse ser encontrado nos arquivos da Biblioteca Nacional). A autora inclui desde traduções, adaptações e paródias das peças até críticas e artigos sobre representações de artistas nacionais e de companhias estrangeiras quando em solo brasileiro. Sem dúvida, é uma obra de fôlego, mas que não se propõe a analisar os textos arrolados ou a desenvolver uma reflexão sobre a recorrência de Shakespeare no país.

O segundo livro, também datado de 1961, é
Shakespeare no Brasil, de Eugênio Gomes, que traz elementos interessantes sobre a cronologia das encenações das peças de Shakespeare e das versões francesas e sobre a influência do dramaturgo em diversos autores. Há, porém, algumas diferenças em relação a este trabalho. Em primeiro lugar, o autor não se restringe aos dramaturgos: capítulos relevantes sobre Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo, mas trata-se também de escritores como Cruz e Sousa, Olavo Bilac e Rui Barbosa. O capítulo sobre Machado de Assis não analisa sua obra dramática, o que faz falta. Além disso, há um foco considerável nas traduções e em questões diferentes daquela apontada no título do livro. Há uma série de capítulos que discutem temas da obra shakespeariana no geral, e não em sua relação com o Brasil. Exemplos incluem “A rima em Shakespeare”, “Hamlet através dos tempos”, “O Hamlet de Olivier”, e “Impressões de Stratford-Upon-Avon”, que narra a visita do autor à terra natal do bardo. Todo o material não relativo ao Brasil acaba por ocupar quase quarenta por cento da obra.

Finalmente, temos um artigo curto de Bárbara Heliodora, “Shakespeare in Brazil”, publicado na Shakespeare Survey no. 20, de 1967. Nele, temos um esboço da recepção de Shakespeare no país, em termos de traduções, encenações e adaptações. Aparece ainda aqui a crença – também presente no livro de E. Gomes – de que João Caetano teria encenado os textos shakespearianos originais e não apenas as versões de Ducis, o que Décio de Almeida Prado refutaria posteriormente em seu estudo sobre o ator. Das peças nacionais inspiradas em
Otelo, apenas Os Ciúmes de um Pedestre, de Martins Pena, é citada. A presença das companhias italianas e francesas desde o século XIX é descrita por alto, e o texto demora-se mais em montagensbrasileiras das peças originais a partir de 1938, com a famosa encenação de Romeu e Julieta pelo Teatro do Estudante do Brasil (TEB).

Faz-se mister, portanto, um estudo exaustivo traçando as apropriações de Shakespeare pela literatura nacional, especialmente em termos de dramaturgia. O romance brasileiro até foi contemplado em obras como
O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de Helen Caldwel , traduzido para o português em 2000, que analisa Dom Casmurro. Porém, a cena nacional ainda não foi retratada minuciosamente. A própria publicação, em 2002, da peça (até então inédita) O Caboclo, de Aluísio Azevedo e Emílio Rouède, calcada em Otelo, demonstrara a existência de material novo para estudo. Além disso, a documentação da cena brasileira no período poderia ser enriquecida, com o aprofundamento da análise sobre a interpretação de João Caetano – que fez seu nome partindo de textos neoclássicos, apesar da atuação claramente romântica – e de seus escritos, que citam o papel de Otelo, e também com a discussão sobre a importância da passagem das companhias estrangeiras em terras nacionais. Salvini e Rossi, por exemplo, foram dois dos Otelos mais importantes do século XIX, tendo sido aclamados inclusive na Inglaterra e nos Estados Unidos, mesmo atuando em italiano, e encantaram as platéias cariocas, em tournées importantes, mas pouco estudadas. Finalmente, a figura abrangente e marcante de Shakespeare na literatura mundial ratificaria a importância do assunto, dando margem a um estudo da literatura brasileira.

A partir de tais pressupostos, surgiram inúmeras questões a serem respondidas, muitas delas se ligando à já mencionada preponderância de
Otelo nos palcos nacionais do período citado, dentre todas as obras shakespearianas. Nada leva a crer que tal preferência se deva à presença do protagonista negro, uma discussão que poderia ser relevante em um país que se livrará da escravidão no decorrer do século XIX. Mas qual o papel do negro no teatro brasileiro do período? A questão já foi examinada, por exemplo, por Miriam Garcia Mendes, mas não explica o fenômeno Otelo. A recorrência do texto parece se dever mais à estrondosa popularidade da personagem criada por João Caetano a partir do texto de Ducis, pelo entrecho sentimental latente e pelo seu potencial também cômico do que por qualquer razão de caráter social mais amplo. Considerada a mais “doméstica” das quatro grandes tragédias de Shakespeare, Otelo se presta, no Brasil, tanto a uma exploração cômica de seu enredo (de resto, absolutamente plausível, como demonstra Bárbara Heliodora) quanto a um tratamento mais sério, por vezes romântico.

Nesse momento, uma série de questões diretrizes e de hipóteses surgiu. Entre elas, podemos destacar as seguintes: o
Otelo de Ducis dominaria a cena nacional e inspiraria autores em um patamar acima de Shakespeare; a encenação de João Caetano é central para a recepção da personagem no Brasil; outras versões, inclusive a de Shakespeare, também circulam e às vezes se misturam; é só com o passar do tempo que o texto shakespeariano se impõe como fonte; a importância da personagem é grande o suficiente para receber atenção concentrada em certas obras de autores nacionais que tiveram contato com textos e/ou encenações de Otelo, e ainda para ser citada de passagem em outras obras, o que pressupõe conhecimento compartilhado entre autores e leitores/público.

Claro fica, assim, que a questão central não deveria ser Shakespeare em si. Devemos, ao invés disso, nos perguntar qual é o lugar de
Otelo na formação do repertório brasileiro, qual é a medida em que ele atua nas balizas nascentes de nosso teatro. E aqui, a pergunta se refere realmente a Otelo, e não a Shakespeare, pois o que se via e o que se lia no país, em especial no Rio de Janeiro, foco básico do estudo, não necessariamente se referem ao autor inglês. O objetivo essencial desta tese, portanto, é responder à seguinte questão: quais os Otelos que aportaram no Rio de Janeiro do século XIX, e quais suas contribuições para a criação do repertório dramatúrgico nacional?

Com isso, o estudo analítico aborda a trajetória das adaptações de
Otelo, em especial na França, base para os textos aqui aportados; depois, o foco recai sobre a questão central, dividida em dois pontos: as portas de entrada da personagem no Brasil e os usos dela feitos pelos artistas e dramaturgos nacionais. No primeiro caso, temos o trabalho de João Caetano sobre Otelo, a partir da tradução de Gonçalves de Magalhães para o texto de Ducis; sobre Orosmane, de Zaïre, de Voltaire; e sobre a personagem-título de Kean, de Dumas (além da composição de outras personagens, como o Hamlet também calcado em Ducis); temos também as encenações do texto de Shakespeare por companhias teatrais estrangeiras, desde a companhia espanhola de Adolfo Ribeli, em 1838, até as companhias italianas de Ernesto Rossi e de Tommaso Salvini, provavelmente o maior Otelo do período, entre 1871 e 1896, além das encenações das óperas de Verdi e de Rossini, a partir de 1847. No segundo caso, temos as apropriações cômicas do enredo e das personagens do Otelo de Ducis, primeiramente por Martins Pena (Os Ciúmes de um Pedestre, Judas em Sábado de Aleluia), e depois por Joaquim M. de Macedo (O Novo Othelo); por fim, merecem reflexões os escritos dos primeiros leitores de Shakespeare no original inglês, como Gonçalves Dias (Leonor de Mendonça), bem como uma peça de Aluísio Azevedo (O Caboclo), e as citações de Machado de Assis.

Finalmente, dada a abundância de documentação factual sobre os Otelos do período artigos de jornal, críticas, anúncios, fotos – julgou-se interessante fazer uma compilação abrangente de tais dados nos anexos finais, de forma a enriquecer e expandir a compreensão do significado desses Otelos na época. A relevância de todo esse material salta aos olhos durante a leitura e fala por si só, incitando novos questionamentos e projetos. Espera-se, assim, com o estudo aqui apresentado e a compilação de material, em grande parte artigos não recuperados ou reeditados dos jornais da época, contribuir para a construção do conhecimento sobre o teatro no Brasil no século XIX, e para compor um panorama mais amplo da presença de Shakespeare no Brasil por meio do estudo da dramaturgia nacional."

---
Fonte:
DANIELA FERREIRA ELYSEU RHINOW: "Visões de Otelo na cena e na literatura dramática nacional do século XIX". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Prof. Dr. João Roberto Gomes de Faria). São Paulo, 2007.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Excetuando ofensas pessoais ou apologias ao racismo, use esse espaço à vontade. Aqui não há censura!!!