Eça de Queirós e o romance realista

“Sob o ponto de vista da teoria literária, o positivismo e o proudhonismo dominavam a primeira fase da obra de Eça de Queirós, que pretendia ser uma crítica geral da sociedade portuguesa contemporânea” (SARAIVA & LOPES, [s.d.], p. 668). Tal afirmação pode ser constatada n’As Farpas, onde, com Ramalho Ortigão, Eça iniciava uma crítica feroz à vida portuguesa, intimando “um povo inteiro não só a saber ler, raciocinar, mas igualmente, a saber vestir-se e até, a saber andar...” (LOURENÇO, 1982, p. 91). Mas era nos romances que a pena queirosiana valia-se dos “fragmentos caóticos (...), socialmente viáveis e moralmente desculpáveis”, enfim, servia-se “da anarquia social para fabricar sentido estético” (BARTHES et alli, 1984, p. 63). Em outras palavras, nos romances, ao mesmo tempo em que a sua escrita se comprometia com as orientações realistas e naturalistas, privilegiando a descrição detalhada do real, a partir da análise rigorosa dos fatos, Eça não resistia em deixar sobre esse real suas impressões, denunciando criticamente, por meio da caricatura e da ironia, as contradições da realidade que observava. Sobre esta visão parcial do fatos, nos diz ainda Carlos Reis:

O romancista que tanto e tão sugestivamente descreveu a sociedade portuguesa não o fez de forma passiva: investiu na descrição a sua subjetividade, normalmente com propósito crítico; e fê-lo tanto com relação aos grandes cenários (descrição do Largo de Camões no final d’O Crime do Padre Amaro), como em relação a personagens de escasso destaque (os padres d’O Crime do Padre Amaro)
([s.d.], p.110).

Concebido segundo as propostas da estética realista-naturalista, para além de ser o romance fundador desta escola em Portugal, O Crime do Padre Amaro foi também considerado o primeiro texto de fôlego de Eça de Queirós. Tendo “por objetivo final fazer ‘ver o verdadeiro’, ou melhor, ‘fazer rir do ídolo, mostrando por baixo o manequim’ (FIGUEIREDO, 2002, p. 2), esta narrativa firmou-se como um texto crítico que reavaliava uma sociedade rigidamente católica, denunciando e questionando, sobretudo, o poder exercido por um corpo clerical corrupto e decadente dentro do espaço provinciano da Leiria do século XIX. Carregando um forte veio naturalista, posto que se debruça sobre as mazelas provenientes da realidade social adoecida do Portugal oitocentista, o romance atua na tentativa de levar alguma lucidez a um mundo às avessas, onde os vilões são as beatas mexeriqueiras e os padres corruptos, ou seja, um exército de hipócritas “a serviço de Deus” (do qual excetua-se o bondoso abade Ferrão); enquanto os ateus, apartados da Igreja e das doutrinas católicas, carregam alguma lucidez, bondade e princípios mais nobres. Nesta apequenada e sufocante cidade de papel, encoberta inteiramente pela sombra poderosa de sua Sé, a vigilância social acirrada esmaga e desnuda cruamente a vida dos habitantes, tornando gritantes os limites asfixiantes dentro dos quais cada personagem pode mover-se. Ao mesmo tempo, a narrativa oferece às personagens um campo fértil para a elaboração de novas formas de burlar a vigilância ostensiva de vizinhos que difamam e caluniam, de padres que manipulam e ameaçam, de autoridades que corrompem e condenam. Tendo sido o próprio Eça emparedado por uma pátria que não reconhecia (nem dava lugar) a sua genialidade, o autor de O Crime do Padre Amaro recusou passar pelo mundo na categoria de passivo espectador, travando, tal como seus companheiros da Geração de 70, uma batalha acirrada para tentar, por meio das palavras, tirar a sociedade do torpor e da ignorância em que se encontrava.

Desta forma, apesar de acreditar que a literatura poderia ser um discurso da verdade, capaz de expor as muitas chagas presentes no corpo deteriorado que era a sociedade portuguesa, sua proposta estética acabou por se firmar justamente no deslocamento dos pressupostos naturalistas. “Quanto mais a escrita queirosiana se afastava da proposta marcadamente política defendida desde as Conferência do Casino, mais refinadamente múltiplos (...) se tornavam seus personagens” (FIGUEIREDO, 2002, p.3). Gradativamente, O Crime do Padre Amaro abandonava o caráter político e de denúncia de que se revestira inicialmente para:

discutir a própria condição humana pressionada por poderes que [podiam] estar presentes na sombra lançada pelos muros da sobre uma cidade beata e provinciana; nas paredes das casas que [isolavam] corpos atormentados pelo desejo; nas letras impressas nos jornais que [serviam] a interesses poderosos; ou no descaso pachorrento das autoridades de um Estado que só [tinha] leis que [guardavam] os interesses de uma minoria, em detrimento de uma massa de gente que [mendigava], se [humilhava] e que [morria] por conta de toda sorte de moléstias
. (FIGUEIREDO, 2002, p. 4)

Ao ultrapassar os ditames naturalistas, O Crime do Padre Amaro pôde oferecer outras formas de interpretação, como a leitura dos silêncios observáveis ao longo de todo o texto. Mesmo detentoras de um conjunto semântico empobrecido e repetitivo, em que imperam ditos populares, rezas e outras expressões pouco significativas, esta limitação foi vencida pelas personagens a partir de um código outro de comunicação, tecido paralelamente à linguagem oral esvaziada de sentido. O Crime do Padre Amaro possibilita ainda a leitura das relações sociais que, sob o disfarce das máscaras, denunciam a precariedade do conceito de verdade ao fazer da representação social uma forma tacanha de estar no mundo. Segundo Leo Bersani, “o romance do século XIX nos inculcou a procura obsessiva das estruturas significativas da literatura” (BARTHES et alli, 1984, p. 55). Sendo assim, o bom leitor deve saber que nada está isento de significação num texto queirosiano. Utilizando sem pudor as artimanhas do texto realista, Eça de Queirós faz da descrição dos detalhes o grande trunfo de suas narrativas. Sobre isto acrescenta Barthes:

As palavras mais quotidianas, os gestos mais banais, os episódios mais insignificantes, submetem-se de boa vontade a uma disciplina que exige que sejam palavras, gestos e episódios reveladores. Na literatura realista os comportamentos são a expressão contínua da psicologia dos personagens. Incidentes, aparentemente fortuitos, transmitem-nos, com economia, mensagens respeitantes à sua personalidade, de forma que o mundo acaba por estar de acordo , pelo menos estruturalmente, com o personagem do romance, no facto de propor constantemente à nossa inteligência objetos e acontecimentos que contêm desejos humanos e lhes conferem uma forma inteligível
(BARTHES et alli, 1984, p. 53).

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Fonte:
ÉRICA CARVALHO ARRUDA: "A SILENCIOSA ENCENAÇÃO DE SAIAS E BATINAS: A PROPÓSITO DE “O CRIME DO PADRE AMARO”, DE EÇA DE QUEIRÓS”. (Dissertação de mestrado em Literatura Portuguesa apresentada à Coordenação de Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Mônica do Nascimento Figueiredo. Universidade Federal do Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, 2007.

Nota
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