O primo Basílio na produção de Eça de Queiroz



O PRIMO BASÍLIO E O ESPAÇO: BREVES CONSIDERAÇÕES

O primo Basílio na produção de Eça de Queiroz

"Em 1878 é publicado em Portugal O primo Basílio, escrito por Eça de Queiroz em New-Castle, onde ocupava o cargo de cônsul. Esse romance:

É, em termos de técnica de ficção, o momento em que o literato se descobre escritor profissional, enquanto vai desenvolvendo, com desembaraço e confiança, um processo romanesco de fundo irônico e seu, por mais que tivesse traduzido e adaptado elementos colhidos em autores estrangeiros, particularmente em Flaubert e Dickens
(ROSA, 1964, p.245).

Nessa obra, Eça desvia seu olhar da vida provinciana portuguesa, retratada em O Crime do Padre Amaro, e sob a rubrica de “episódio doméstico” retrata e analisa a constituição e o funcionamento de uma família burguesa assim definida pelo próprio romancista em carta endereçada a Teófilo Braga: “família lisboeta, produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo, centro de bombachata” (QUEIROZ, 1945, p.101).

Partindo desse princípio, Eça reúne, em O primo Basílio, personagens distintas, que representam as diversas facetas da sociedade, e ao delineá-las, definindo seus caracteres, tece severas críticas à sociedade contemporânea:

A mulher, o marido, a criada e o primo sedutor estão no centro da intriga. O casamento foi para Luísa um expediente de vida, uma forma de se libertar das servidões da vida de solteira. Não a liga ao marido uma afeição séria, falta-lhe a preparação para um trabalho responsável, a sua imaginação na ociosidade é alvoroçada pelas leituras românticas e pelas confidências de uma amiga useira em aventuras. O primo Basílio, que é um desfrutador, encontra o terreno preparado. À volta deste núcleo figuras significativas de outros vícios da vida portuguesa. É um deles o conselheiro Acácio, em que Eça pretende representar a incapacidade mental dos dirigentes políticos do país. Outro, Ernestinho, o representante da vacuidade e futilidade dos meios literários de Lisboa. A figura mais poderosa do romance é porventura a criada Juliana dominada pelo ódio contra a patroa: arde nessa paixão como certas personagens de Balzac
(SARAIVA, 1966, p.247).

Ferreira (1966, p.1033-1034) considera que Eça, percorrendo a América, residindo na Inglaterra e nutrindo grande afeição pela França, descobria em seu país somente pobrezas e injustiças, o que lhe despertava reações e repulsas. O resultado de tais sentimentos é uma notabilíssima obra em que proliferam agressões aos hábitos burgueses na segunda metade do século XIX. Ao se referir a Eça, o crítico ressalta também que “sua luneta irônica rebuscava com voluptuosidade o pandilha, que ele expunha com sorrisos de mofa como exemplar típico das coisas lusitanas” (1966, p. 1033).

Dessa forma, Eça procura traçar um panorama da vida portuguesa de sua época, ou de pelo menos uma parte dela, objetivo esse que se manifesta pela primeira vez, na produção do autor, nos textos que compõem as Farpas, espécie de crônicas sociais e literárias escritas juntamente com Ramalho Ortigão entre junho de 1871 e outubro de 1872. A parte escrita por Eça foi reunida em 1890 com o título de Uma campanha alegre, em dois volumes, e revela severas críticas à literatura contemporânea, na sua visão, imoral e superficial, bem como a diversos outros aspectos sociais e culturais da vida portuguesa.

Para Lins (1964, p. 47) as Farpas, literariamente, “constituem o que se poderia chamar de livro nu. E não é um nu artístico; é o nu puro e simples, o que causa um certo escândalo quando não se está suficientemente preparado para enfrentá-lo”. Esse olhar crítico diante dos problemas de seu tempo, assim como um espírito demolidor e irônico, que tão bem se manifestam nos textos que compõem as Farpas, continuariam a permear os romances de Eça e norteariam, sobretudo, aqueles escritos entre 1857 e 1887.

Neste período, o escritor encontra-se convertido aos preceitos do Realismo, escola assim definida por ele em 1871, numa conferência no Cassino lisbonense, momento em que já é perceptível sua possível inclusão num movimento de reforma literária:

É a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção usando a inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. – Por outro lado, o Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; – o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houve de mal na nossa sociedade
(QUEIROZ apud SARAIVA e LOPES, 1974, p. 960).

É possível afirmar, por conseguinte, que as Farpas, na medida em que representam um quadro da sociedade e retratam um panorama da Família, da Política e da Literatura da época, já continham, em esboço, os temas de um romance panorâmico de costumes.

Assim, a série de romances queirosianos inspirada com o objetivo de montar um painel da vida portuguesa de seu tempo e de tornar concreta a visão esboçada nos textos das Farpas, inicia-se com O crime do Padre Amaro (1875), em que o meio pequeno-burguês de uma cidade provinciana, especialmente seu setor clerical, é estudado; tem sequência com O primo Basílio (1878), e culmina com a publicação de Os Maias (1888), romance no qual se analisa o meio aristocrático de Lisboa, onde circulam artistas, escritores, velhas famílias fidalgas e membros da grande burguesia liberal (SARAIVA 1966, p. 243).

Lins (1964, p.46) reitera que os romances de Eça já estão previamente delineados nas crônicas escritas durante sua mocidade, ainda “com a mão do panfletário” e esclarece que o tema central de O primo Basílio, por exemplo, já havia sido esboçado numa reflexão sobre o adultério, assim como o perfil de sua protagonista já havia sido apresentado num dos textos que compõem as Farpas, no qual se lê:

Uma menina portuguesa, não tem iniciativa, nem determinação, nem vontade. Precisa ser mandada e governada; de outro modo, irresoluta e suspensa, fica no meio da vida, com os braços caídos. Perante um perigo, uma crise da família, uma situação difícil, rezam. Têm a abstrata que só Deus as pode inspirar, dar-lhes a decisão, a idéia precisa: mas terminam quase sempre por seguir o conselho da criada
(QUEIROZ, 1946, p.122 apud LINS, 1964, p.46).

O perfil traçado acima vai, pois, ao encontro daquilo que Luísa representa em O primo Basílio: a mulher que usufrui de restrita vida social, envolta numa rotina de marasmos, vítima de uma educação que a leva a render-se a leituras românticas e a consequentes momentos de escapismos, conforme declara o próprio Eça na citada carta a Teófilo Braga, na qual apresenta uma definição sumária da personagem:

[...] a senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque cristianismo já não o tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance, lírica, sobre excitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. [...]
(QUEIROZ, 1965, p. 101).

Assim como Luísa, as demais personagens de O primo Basílio também representam tipos sociais facilmente identificáveis e personificam uma série de características ou até mesmo uma instituição social, conforme o próprio autor evidencia numa passagem do romance, na qual a personagem Julião se despede dos amigos:

No meio da escada Julião parou, e cruzando os baços: — Ora aqui vou eu entre os representantes dos dois grandes movimentos de Portugal desde 1820. A Literatura — e cumprimentou Ernestinho — e o Constitucionalismo! — e curvou-se para o Conselheiro. Os dois riram lisonjeados
. (p.309)

Eça revela, ainda, a Teófilo Braga, crer no caráter revolucionário de O primo Basílio e diz enxergar no romance uma maneira de atacar as falsas bases da sociedade. Contudo, os recursos utilizados pelo romancista para alcançar esse objetivo foram alvos de críticas, na época, especialmente por parte daqueles que viam certo exagero e consequente deformação na caricaturização das personagens e dos costumes. Além disso, “procurou-se identificar O primo Basílio como um pastiche de Madame Bovary. E ninguém quis anotar que, apesar de todas as aproximações, Eça sempre permaneceu o próprio Eça” (LINS, 1964, p.58).

Entre as diversas críticas ao romance O primo Basílio coube a primazia ao artigo escrito por Ramalho Ortigão e publicado na imprensa portuguesa em 22 de fevereiro de 1878. O escritor confessou ter lido a obra com sofreguidão e, não obstante tenha se mostrado favorável ao romance do amigo e elogiado seu estilo, apresentou algumas ressalvas. Considerou, por exemplo, que Basílio apresenta incongruências em sua construção, haja vista que seu comportamento devasso vai de encontro à postura de um homem de negócios. Além disso, considera precária a apresentação do meio social lisboeta e sua possível influência no comportamento de Luísa (NASCIMENTO, 2008, p.18).

Todavia, as mais severas críticas de Ramalho são direcionadas às cenas do “Paraíso”:

As cenas de alcova são reproduzidas na sua nudez mais impudica e mais asquerosa. As páginas que as retratam tem as exalações pútridas do lupanar, fazem na dignidade e no pudor largas manchas nauseabundas e torpes, como as que põem nos muros brancos os canos rotos. [...] Queirós, atribuindo a um trabalhador valoroso a mórbida corrupção peculiar da luxúria imaginativa, sutilizadora, estafada, um tanto físico, dos homens de prazer, confundiu e obscureceu um pouco o enunciado do seu interessante problema
(ORTIGÃO apud NASCIMENTO, 1998, p.160 - 161).

As palavras de Ramalho inauguraram a polêmica em torno de O primo Basílio e podem ter contribuído para o sucesso editorial do romance, já que este passou a ser vorazmente lido, além de permearem as primeiras páginas dos principais jornais da época diversos comentários sobre a obra.

Também Machado de Assis, utilizando o pseudônimo de Eleazar, publica no jornal brasileiro “O Cruzeiro” suas impressões sobre O primo Basílio, datadas de 16 e 30 de abril de 1878. As palavras do crítico e escritor evidenciam uma postura desfavorável ao romance em questão e revelam discordância com diversos recursos utilizados por Eça na construção da narrativa, pois crê que nesta “o incidente domina o essencial; a sensação física, essência da composição, sobrepõe-se à verdade psicológica, a ponto de a eliminar; a dor moral não existe” (ROSA, 1964, p.173).

O cerne da discussão de Machado estava, sobretudo, na construção da personagem Luísa, pois cria que seu vazio interior desencadearia as demais deficiências do romance:

[...] a Luísa, força é dizê-lo – a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação idealizada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral. Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos ou músculos, não tem mesmo outras coisas; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda a consciência
(ASSIS, 1964, p. 159).

Machado considera, assim, que Luísa não seria capaz de atrair a atenção dos leitores e nem despertaria comoção, justificando que faltam à personagem elementos catárticos, sejam eles de rebeldia ou de arrependimentos: “Luísa não tem remorsos, tem medo” (ASSIS, 1964, p. 163).

Além de considerar incongruente e falha a construção de Luísa, o crítico brasileiro acusou Eça de apelar para o imprevisto, de inventar arbitrariamente certos episódios (como o do roubo das cartas) e de radicalizar os preceitos do Realismo.Lins (1978, p.112-116) discorda das palavras dispensadas por Machado ao romance de Eça e considera que o romancista português, não crendo no livre arbítrio do homem e sim no determinismo das causas, utiliza o imprevisto a serviço deste, ou seja, como uma forma de resolver uma situação determinada por outros fatores. Luísa, na visão do crítico, não representa um ser ausente de caráter, mas sim alguém com duas personalidades: a sua própria, que não aflorara e é vislumbrada pelo leitor por meio do desenrolar dos fatos e uma outra, artificial, moldada por fatores externos, cuja queda simboliza a insatisfação da burguesia diante da própria realidade, bem como o vago desejo de aventurar-se e fugir à própria condição. Já Nascimento (2008, p.133) considera que:

Os aspectos que mais incomodavam Machado de Assis no romance de Eça de Queirós – a hipertrofia do acessório, em prejuízo do essencial, a ausência de vínculos necessários entre as partes, o enredo impulsionado pela interferência sistemática do narrador na fábula – tornaram-se questões de importância muito reduzida ou nula nas expressões vanguardistas do novecentos.

É possível dizer, assim, que as críticas de Ramalho Ortigão e Machado de Assis, dois verdadeiros marcos na história literária de Eça de Queiroz, que implicaram, inclusive, réplicas do romancista, não contribuíram para uma visão negativa de O primo Basílio na produção queirosiana, pois o que se sobressai é a visão, com a qual concordamos, desse romance como uma obra que atende fielmente aos preceitos de sua escola e onde afloram, com magnitude, o olhar irônico de Eça diante das coisas de seu tempo e a busca pela verdade por trás das aparências. Nesse processo, emerge, com graça e clareza, o estilo do romancista português, seguido por tantos outros escritores, já que depois de sua obra a “arte de escrever em língua portuguesa foi coisa diferente do que era antes, porque sua visão plástica da vida e a sua maneira de compreender os valores dela incorporaram-se na consciência nacional” (FIGUEIREDO, 1960, p.438).

Saraiva e Lopes (1974, p. 968) esclarecem que Eça recebeu dos mestres da arte realista, sobretudo de Flaubert, técnicas de notação impressionista dos ambientes e soube desenvolvê-las com primor, ciente de que no romance realista existe uma interação entre o ambiente físico e o ser que o ocupa, de modo que o espaço pode variar de acordo com a percepção humana, ou seja, ele se modifica de acordo com o estado de espírito das personagens. E prossegue:

Cada ambiente é, no romance de Eça, sugestivo de uma disposição da personagem focada – langor, cansaço, hostilidade, sensualidade, etc., eis o que podemos designar como impressionismo, termo que aproxima o realismo flaubertiano de uma escola afim de pintura. E assim a adjetivação e as associações através das quais surge uma descrição, um quadro, uma cena, dão um sentido humano às coisas inanimadas
(SARAIVA e LOPES, 1974, p. 968).

Dentro desta perspectiva aberta pela crítica, torna-se realmente importante aprofundar a análise das imagens que constituem o espaço em O primo Basílio, na tentativa de verificar como a categoria do espaço atua como elemento fundamental à construção do sentido dessa narrativa e de que maneira se imbrica com a refinada ironia que constitui uma das marcas peculiares do estilo de Eça de Queiroz."

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Fonte:
Renata Aparecida De Freitas Araújo: “O PRIMO BASÍLIO: FUNCIONALIDADE E IRONIA DO ESPAÇO”. (Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências exatas da Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Letras (Área de concentração: Literaturas em Língua Portuguesa). Orientador: Prof. Doutor Rogério Elpídio Chociay). São José do Rio Preto, 2010.

Nota
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