Entre infância e morte



MORRER SEM PERDER A VIDA


ENTRE INFÂNCIA E MORTE
Não há tarefa mais urgente para nós que a de aprender a morrer; mas não é com renúncia à vida que aumenta nosso aprendizado sobre a morte, apenas o fruto maduro do aqui-e-agora apanhado e mordido espalha em nós seu sabor indescritível.

Meditar sobre a morte não é um ato recente, tampouco incomum. Afinal, a morte desafia seu entendimento desde que há vida. Platão já afirmava ser a filosofia uma longa meditação sobre a morte. Cícero caracterizava a vida filosófica como uma
commentatio mortis. O que se pensa acerca da morte tem constituído, há muito, uma questão recorrente, sempre atualizada por uma nova forma de entendimento, um diferente meditar sobre o tema. Há entendimentos restritos que associam a morte à interrupção da vida humana. E há, também, modos mais amplos de percebê-la que tendem a conectar o termo morte à cessação de fenômenos múltiplos. Esta segunda forma de entendimento gera possibilidades infindas de relações de sentido. Neste caso, toda cessação poderia estar, de modo análogo, próxima ao sentido da morte humana, mas poderia também se constituir em algo mais que a desintegração do aspecto orgânico da vida. Esta acepção provoca o surgimento de analogias com as mais diferentes formas de desaparição ou ausência. Ela faz emergir, também, uma busca ainda mais intrigante e desafiadora por se identificar as distintas maneiras de cessação das coisas na continuidade da vida. Deixar de ser e, ainda assim, continuar a ser, emerge como um problema crucial do qual se derivam inúmeras questões. Que maneiras há de se deixar de ser? Há graus de mortalidade na vida? Se existem modalidades e níveis distintos de morte, onde se situa a morte humana? Estes são alguns dos questionamentos que, inquietantemente, desdobram-se do problema relativo ao deixar ser – a vida, mas também ao deixar de ser - a morte.

Deixar ser e deixar de ser apresentam-se, assim, como movimentos inerentes à própria vida – forças decorrentes de um fluxo vital de rupturas e inícios. Ainda que a morte se faça presente, não se trata de uma morte que nega a vida. Ao contrário. No âmbito da existência humana, esta é uma morte que afirma a vida. Uma morte capaz de reconhecer na vida o que já não é mais vida. Uma morte necessária para a eliminação do que deixou de ser vida. Uma morte que delineia um espaço de onde pode emergir uma infância. È assim que neste tipo de morte subjaz a infância. Uma infância que prescinde da morte para irromper. Infância e morte, co-irmãs na vida, assumem, deste modo, uma relação íntima, profunda e profícua. Essa coexistência da morte e da infância faz-se mais evidente a cada vez que a própria vida exige mudança. Para dar conta da
matéria vertente da vida, como sugere Guimarães Rosa, é preciso, pois, perceber que as coisas são mesmo misturadas, como ele mesmo alerta na voz de Riobaldo, seu personagem mais conhecido. Se tudo é mesmo tão misturado, a apartação das coisas só pode decorrer da tentativa tola de apreensão, domínio e controle. Da necessidade de ensinar a vida, advém a idéia de tornar ensináveis infância e morte.

Contudo, entranhadas, infância e morte dificultam seu aprendizado. Ainda mais por não permitirem seu ensinamento. É preciso aprendê-las, mas não parece ser possível ensiná-las. É que ambas encontram-se no porvir. Não são antecipáveis. Não se deixam aprisionar por grades curriculares. Sua coexistência não se sujeita a provas. A evidência de seu aprendizado integra a vida mesma de quem as sabe. Mais do que uma busca por conhecê-las, mais do que falar sobre infância e morte, parece imprescindível dispor-se a elas. Criar disposição. Deixar-se atravessar pela infância e pela morte. Acompanhar a suspeita de Rilke e acatar sua sugestão:

Há morte na vida, e me admira que se pretenda ignorá-la: a morte, cuja presença impiedosa sentimos em toda mudança a que sobrevivemos, porque é preciso aprender a morrer lentamente. É preciso aprender a morrer: eis aí toda a vida. Preparar de longe a obra prima de uma morte orgulhosa e suprema, uma morte em que o acaso não tem papel algum, uma morte bem-feita, bem feliz, entusiasta como os santos souberam moldá-la; uma morte longamente maturada, que apaga, ela própria, seu nome odioso, ao devolver ao universo anônimo as leis reconhecidas e salvas de uma vida intensamente cumprida. É essa idéia de morte que se desenvolveu em mim de forma dolorosa, de experiência em experiência desde a infância, e que me ordena suportar humilde a pequena morte para me tornar digno daquela que nos quer grandes.

O autor destaca, na vida, a presença marcante da morte. Uma morte tão forte e imponente que é capaz de alterar suas formas de aparição e apresentar-se desejada a ponto de causar entusiasmo e animar a vida. Uma morte provocante, exigente do cuidado e da atenção de quem nela reconhece mais um sentido para a vida. Uma morte contente. Não mais a máscara fúnebre e grotesca de uma morte avassaladora, cruel e injusta. Sem a identificação odiosa de inimiga da vida. Com a marca evidente da vida. Uma morte assim, tão amiga da vida, não se oporia à infância. Uma morte deste tipo exige uma infância que a justifique, que a torne cúmplice e companheira. Sem medo. Na companhia do tempo. Na intensidade de uma vida experienciada. Qual o sentido em evitá-las? Por que apressar a infância, torná-la tão pequena, tão delimitada por uma faixa etária? Por que diminuí-la a ponto de torná-la insignificantemente apenas uma etapa a ser superada? E quanto à morte? Por que temê-la? Por que horrorizá-la tornando-a feia e repugnante, cruel e indevida? Por que distanciar infância e morte da vida?

Infância e morte podem, então, ser abordadas enquanto temas de estudo, pelos mais distintos ramos do saber. Enfoques biológicos, psicológicos, sociológicos e legais, entre outros, tentam dar conta destes fenômenos de modos peculiares. Esta gama de estudos evidencia o caráter múltiplo dos entendimentos que os termos morte e infância suscitam e o caráter tanto natural quanto social da morte e da infância. Mas, quais seriam as figurações da morte e da infância tornadas possíveis pela literatura? Em sua peculiar polifonia e polissemia, que vozes e sentidos estariam a se dar forma pela linguagem literária?

O aspecto figural da morte, no âmbito da literatura, a aproxima da própria linguagem, diria Bakhtin. Para o autor elas parecem caminhar lado a lado. Ele a vê como um tipo de atividade criadora que mantém, pela escrita, uma relação estreita com a morte ou com a extinção dos referentes, na contemporaneidade. Os referenciais como o sistema de objetos, situações, solos e territórios histórico-sociais, mortos para um sujeito em dissolução, seriam a figura mesma da morte. Uma figura, ou seja, um problema estético. O resultado de uma relação emotiva e deliberada com a existência, própria da individualidade artística. Uma disposição interna capaz de adivinhar o íntimo daquilo que está do lado de fora. Uma vivência interior da exterioridade das diferentes formas de vida alcançável apenas pelo esforço empreendido pelo artista, no caso o escritor, em externar uma relação intuitivamente perceptível com um fora. Esta
compreensão simpática da existência, cuja acepção do termo compreensão Bakhtin esclarece não associar-se ao sentido usual de reflexo exato e passivo, mas da transferência de uma vivência, inaugura novos valores e, por conseguinte, outros juízos e formas de aparição das coisas. Não é o que expressa Rilke ao vislumbrar uma morte geradora de entusiasmo, paradoxalmente a animar a vida?

As fronteiras temporais da vida são pensadas por Bakhtin a partir do entendimento de que o que costumeiramente se diz a respeito do início e do fim da vida não se prestam à autoconsciência. É preciso, portanto, repensar as conotações valorativas atribuídas aos termos nascimento e morte. Tanto assim que não é possível dar-se conta do próprio nascimento ou da própria morte. Não devido a uma impossibilidade física, mas à
inaptidão para encontrar uma abordagem axiológica para estes acontecimentos. Assim se expressa o autor:

Em minha vida, vivida por dentro, não posso vivenciar os acontecimentos do meu nascimento e da minha morte; o nascimento e a morte, enquanto
meu nascimento e minha morte, não podem tornar-se eventos da minha vida.

O autor continua este raciocínio que acaba por levá-lo a considerar que tanto o nascimento quanto a morte tem sido valorados em referência ao nascimento e morte de um outro. Sabe-se sempre do nascimento e da morte de alguém, mas não se sabe do próprio nascimento ou morte. É neste sentido que temer a morte ou celebrar o nascimento é uma relação externa com estes acontecimentos, algo que se valora desde fora. Neste caso é possível registrar a perda e o desaparecimento de uma pessoa ou a aparição e presença de outra, nova no mundo. Mas, e no caso da própria morte? Bakhtin pondera:

A perda, quando se trata de mim, não significa uma separação de mim mesmo – de um eu amado e determinado por suas propriedades – já que viver-ser neste
mundo não é tampouco a felicidade de estar comigo mesmo[...]

É neste sentido que a escrita se faz necessária, enquanto possibilidade de efetivação da vida e da morte de si mesmo na vida e na morte dos personagens inventados. Manter-se vivo na escrita e, ainda assim, morrer nos personagens inventados é a saída. Este é o modo de fortalecer a vida do autor. Ele a reforça na medida em que morre, repetidas vezes, nas obras que produz.

A configuração da morte na literatura é também analisada por Blanchot por meio de matrizes teóricas de um pensamento que se articula em torno de uma espécie de variação sobre a morte, em que se constitui, a seu ver, a literatura. Na sua concepção, a literatura não é comunicação ou expressão de uma subjetividade, mas a forma que resta aos homens para falar do que não podem compreender, do que não pode ser expresso pela linguagem cotidiana. A literatura diz o que não pode ser dito: o vazio da linguagem e da morte. Com relação à ficção contemporânea, pode-se afirmar existir, nela, uma tentativa de fazer sobressair menos o sentido, mais a linguagem, mais o trabalho da escrita que a função comunicativa, mais a dimensão performativa que a pedagógica. Esse vazio, então desencadeado pela escrita, a despeito de poder ser tomado como algo negativo, contém em si, paradoxalmente, uma dimensão positiva: porque é um nada e porque lida com a morte ou a extinção do referente, a literatura pode desenvolver então sua maior ambição criadora, pois ao mesmo tempo em que coincide com nada, ela pode também ser imediatamente tudo. Essa a sua força, que faz derivar daí seu poder de transformação e negação.

Morte e escrita caminham lado a lado em alguns textos ficcionais, na medida em que expressam a frustração de desejos e a morte como experiência privilegiada capaz de engendrar a escrita. Por meio da escrita, a morte configura-se em impulso e provocação da vida. Não é o que se passa com o menino no conto ‘As Margens da Alegria’? A morte, experienciada gradualmente, nos diversos tipos de vida que se apresentam a ele extraordinariamente novos, afirmam a vida que tiveram e o ser do que foram e permanecem sendo como memória. Também o menino se afirma vivente nas próprias mortes que vivencia. Ele nasce outro a cada experiência de aprendizagem porque morre um pouco ao deixar de ser o que era. A convivência com a morte (representada nas figuras do peru e da árvore) aparece não apenas como a antítese e o contrário do deslumbramento inicial do menino, mas nessas figuras surge o avesso do encanto no qual também ocorre um tipo de aprendizagem. A capacidade de projetar-se para além de uma contingência angustiante ou mesmo mortal é que transfigura a aprendizagem do menino na figura do vaga-lume que mesmo sendo escuridão, é também luz. O pequeno vaga-lume é um ponto luminoso que se constitui numa linha de fuga para a morte experienciada pelo menino – um detalhe que o libera daquela condição de morte parcial em que se encontrava. Trata-se de um tipo de negatividade que viabiliza identificações positivas. A literatura, pensada assim, como uma aventura, como um exercício astuto de criatividade face à precariedade de sentido, cada vez mais intensamente impulsiona a escrita no ato primaz de inventar, na ausência. A literatura seria, assim, uma aventura capaz de múltiplas figurações da morte.

O olhar infantil de Rosa, na figura do menino, parece alcançar uma verdade e beleza que persistem diante da violência e crueldade, ou mesmo da ausência de sentido. É assim que, mesmo após o impacto do horror sentido diante do ato instintivo do peru vivo em atacar o peru morto, surge, para o menino, o contraste do brilho luminoso do vaga-lume. No caso do pequeno inseto, morte e vida representadas pela presença e ausência de luz coexistem e configuram a especificidade daquele tipo de vida. São muitas as figurações da morte utilizada literariamente por Rosa a fim de criar uma sensação de morte e vida contínuas no conto. Figuras antropomórficas como a do peru, ora equivalentes a uma expressão suprema de beleza, ora emblemáticas da irracionalidade e crueldade animais, vinculam a interrogação do mal, da dor, do medo e da morte à questão essencialmente poética do fundamento do sentido neste conto. São as margens dos sentimentos ambíguos que se põem a exigir do menino a travessia. Ora alegre, ora triste, ele aprende a lidar com a multiplicidade de eventos concernentes à vida e à morte. A linguagem literária favorece os deslocamentos exigidos pela experiência de aprendizagem por ele vivenciada. Sua mobilidade é imprescindível para dar à busca de sentido do menino, algum tipo de materialidade, de possibilidade de transmissão de uma experiência não somente estética, mas também ética e epistemológica.

A escrita literária pode até mesmo ser entendida como um mecanismo criado na tentativa de superação do medo, o medo de não ser possível dizer da vida o que ela exige em termos de expressão. Expressão não apenas do vivido, mas também do que há por viver e também do que não pode mais ser. Há fragmentos nos contos integrantes das
Primeiras Estórias que provocam um profundo sentimento de saudade do que não foi vivido. Este é o caso do lamento do menino em relação ao fato de não ter dedicado mais atenção ao primeiro peru que vira – aquele. A segunda visão que tivera já não era mais a mesma, fosse porque a ave era outra, fosse porque a primazia da primeira aparição guardava uma singularidade irrepetível. O conto surpreende exatamente por fazer irromper uma estória secreta que existia paralelamente àquela que estava sendo contada e que surge, abruptamente, após ter estado secreta no período inicial da leitura. Este encantamento verbal, que aprisiona o leitor até o último instante e o mantém atento, o liberta, violentamente, no fluxo de sentidos que explode no ápice da narrativa.

A epifania do conto, sua verticalidade, tão presentes na obra rosiana, dimensionam a força expressiva da morte enquanto experiência privilegiada de explosão de sentidos. A escrita do conto é, ela mesma, uma figuração intensa da morte. É depois de morta a emoção, que o escritor a revive. Só depois de revivê-la e duplamente vivenciá-la é que chega, o escritor, à arte da escrita. É preciso deixar morrer a emoção para que ela nasça reencarnada na forma de escrita. No ardor do desejo da escrita, a energia necessária para o esforço do nascimento da expressão verbal se descarrega. A carga, contudo, fica retida e contraída na escrita mínima do conto, na narrativa curta de uma estória. No caso do menino, a intensificação das mortes contínuas é expressa na habilidade do escritor para selecionar palavras capazes de exprimir significados e sentidos múltiplos, além de sons, cores e odores derivantes não apenas das figuras, mas também de todas as paisagens que as inserem. Equivalentes às mortes vivenciadas pelo menino, outras manifestações de vida também morriam, embora não parecessem sofrer. Quem sofria era o menino, embora no seu sofrimento e tristeza ainda houvesse lugar para a alegria. Talvez ele estivesse a aprender, na convivência com a morte, a dela aproximar-se em vez de rejeitá-la. Quem sabe Rosa, o escritor, estivesse, por meio do menino, a rever a morte como se fora pela primeira vez, tentando extrair desta experiência revisitada, uma nova experiência, outra vez primaz.

O menino se dá conta da presença da morte na vida. O menino, nas margens entre a alegria e a tristeza, percebe que também pode morrer. Posso morrer? Parece perguntar o menino.
Posso morrer? Pergunta Blanchot. Estonteante, esta pergunta gera um intrigante questionamento acerca do medo associado à morte e da iminente proibição de desejá-la. É como se houvesse, desde sempre, um impedimento à própria formulação da pergunta. A obviedade da resposta inibe a forma interrogativa do enunciado. Uma afronta ao senso comum. Um dissenso. Poder morrer não é já uma questão sem sentido, reforça o autor. Para Blanchot se trata de uma questão crucial que desestrutura o sentido posto. Ela é mesmo um questionamento que exige a criação de todo um processo de busca. Ela é, em si mesma, uma busca pelo extremo – a morte. Quem dispõe da morte, dispõe extremadamente de si, afirma Blanchot. Este que dispõe da morte está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte seria, por conseguinte, o domínio do momento supremo, supremo domínio. A arte como uma maneira de se exercitar o poder de morrer. A arte, em especial a arte literária se configuraria numa sabedoria capaz de fazer coincidir a satisfação e a consciência de si, em encontrar na extrema negatividade, na morte convertida em possibilidade, trabalho e tempo. Não mais a negatividade da morte comumente associada ao sofrimento e à dor, mas a morte como medida do absolutamente positivo. Se se pode morrer, a morte deixa de se apresentar apenas como uma possibilidade, mas também como uma deliberação. A ambigüidade do termo “poder”, faz irromper sentidos múltiplos que forçam uma busca aprofundada de possíveis respostas. Assim, para poder morrer é preciso ter força de ânimo, energia de vontade, ou seja, é preciso estar vivo. Para poder morrer é preciso, portanto, poder atestar a vida. Poder morrer é também ter uma razão, um motivo, o direito de morrer. Pode morrer aquele que, de algum modo, pode dar razão à morte e também à vida. Poder morrer é, por outro lado, ser capaz de suportar, de agüentar a morte. É preciso poder com a morte, para morrer. Para poder morrer há que se sobrepor à morte, sobre ela exercer autoridade. Poder morrer é ter chance, criar oportunidade ou condição de fazê-lo. Poder morrer é, portanto, dar conta de morrer. Contar com a morte, contar com o ânimo, com o vigor, com a autoridade, com a força, com a aptidão, disposição e recursos que ela exige. A morte apresenta-se, assim, como uma tarefa artística, um ofício de arte. É pelo intermédio da arte literária que Blanchot remete-se a Rilke e dele toma a idéia da arte como um caminho até si mesmo e, até mesmo, a uma morte singular. Contudo, é o próprio Blanchot quem, em seguida, questiona: Mas, onde está a arte? E é ele quem conclui ser desconhecido o caminho que conduz à arte. No entanto, adverte que a obra exige um trabalho, um saber, um exercício que acabam por se fundir numa imensa ignorância. É deste modo que a obra significa sempre ignorar que há uma arte, ignorar que já há um mundo. Morrer para um mundo já existente. Daí uma contínua infância a irromper junto à morte e à arte. Ainda em referência à obra de Rilke, o autor destaca um entendimento da morte que a distingue de um fim acidental. É sua imbricação com a vida que a diferencia de uma interrupção casual e apressada:

(...) no solo debe haber muerte para mí em el momento último, sino muerte desde el momento que vivo y en la intimidad y la profundidad de la vida. La muerte, por lo tanto, formaria parte de la existência, viviria de mi vida, en lo más interior.

Exigente, a morte demanda preparo, esforço e, primordialmente, tempo. O tempo indefinido do morrer é o que possibilita várias mortes, além de diferentes formas de morrer. O menino do conto ilustra a mobilidade daquele que pode morrer. Ele se move no espaço da morte. A estranheza de seus aprendizados o faz morrer e perceber a morte levada a bom termo. No momento extremo da experiência está a morte, em cruel harmonia com a vida, percebe o menino. Embora inicialmente tenha se apresentado horrorosa ao menino, a morte parece ter dele se aproximado a ponto de até mesmo contentá-lo por meio de sucessivos encontros. É que uma ligeireza cruel parece definir a morte no conto. A mesma ligeireza com a qual a alegria vem e volta para o menino. A arte literária de Rosa joga assim com a morte. Seu menino inventado na figura de um personagem, ainda que vivo, parece mover-se no espaço da morte, estranho à vida, por ela colocado à prova. Ambos, escritor e personagem, passam, então, a jogar com a morte, a lidar com sua presença em momentos extremos de prova que são como uma morte em vida. Instantes da própria vida que misturam vida e morte. Ambos são impelidos a jogar. Eles jogam onde não há mais possibilidade de jogo, onde não há domínio, nem recurso. É preciso, portanto, inventar o que falta. É daí que surge a inusitada força expressiva do conto no uso incomum da palavra, na cadência e no ritmo da narração. Quando nada mais resta a fazer, quando não há o que dizer, quando a travessia já se deu e tudo é de outro modo, é preciso arte, a arte mesma de relacionar-se com a morte. É quando a escrita emerge como possibilidade de uma vida nova. Então, pode-se morrer contente. Afinal, uma relação com o mundo normal já está, de algum modo, rompida. É esta separação, esta exigência de solidão, imposta pelo trabalho da escrita que faz com que na morte possa haver contentamento. “
A morte contente é o que se ganha com a arte, é o objetivo e a justificação da escrita”, afirma Blanchot. O paroxismo da experiência intervalar do menino nas margens da alegria confirma a declaração do autor e aproxima a escrita Rosiana de seus estudos literários.

É como se o escritor pudesse, por meio da escrita, dos personagens que inventa, alcançar um jeito próprio de morrer. Alcançar até mesmo uma morte leve, benfazeja, desejada, como a de Nhinhinha. No conto, são os personagens adultos que se angustiam com a morte da menina que se apresenta como frustração de uma série de expectativas almejadas. A menina parece morrer contente. Sua morte é a satisfação mesma de um desejo. A morte não lhe é injusta. Pode-se mesmo pensar, com Blanchot, que a relação com o mundo ordinário dos adultos considerado normal, já estava mesmo rompida pela menina. Neste sentido a menina já estava morta para aquele tipo de vida. Ela já se colocava à prova na estranheza que vivia. A capacidade de morrer contente significa, para Blanchot, que a relação ordinária com o mundo, já rompida, se configura materialmente na escrita. De algum modo, o escritor já estava morto para a vida corriqueira e, embora privado da vida, para se fazer feliz da morte que o acompanha, precisa escrever. É preciso escrever para morrer tranquilamente. Na profundidade da experiência, morte e escrita instalam-se. O escritor é, então, o que escreve para poder morrer e que obtém seu poder de escrever de uma relação antecipada com a morte – poder morrer por meio da obra que se escreve – a obra mesma como uma experiência da morte – há que se dispor previamente dessa experiência para se chegar à obra e, pela obra, à morte. Mas também se pode pressentir que o movimento que na obra é proximidade, espaço e uso da morte, não é exatamente o mesmo movimento que conduziria o escritor à possibilidade de morrer organicamente. É preciso, portanto, e em sentido inverso, morrer para um tipo de vida, a fim de se escrever.

Deste modo, a experiência da escrita, bem como qualquer experiência autêntica, altera as formas do tempo. Este parece ser o resultado da ambigüidade da experiência, de seu duplo aspecto. Há, na experiência, uma exigência circular que situa no ponto de partida da busca, aquilo mesmo que se deseja encontrar. Só assim é possível entender a busca pela palavra justa no próprio exercício do uso da palavra. É o que faz o escritor partir de um ponto em que está até aquilo do qual se aproxima afastando-se. É este ofício da palavra que cria condições de possibilidade da emergência de uma esperança. Emerge, deste trato dedicado e cuidadoso com as palavras, o termo ou o fim de onde se anuncia o interminável. Poder morrer é, pois, uma questão repleta de sentidos. O objetivo de uma vida pode mesmo ser a possibilidade da morte. Essa busca, contudo, só se torna significativa quando se faz necessária. Este parece ser o caso da busca pela infância. Para se chegar à infância faz-se imprescindível buscá-la no ponto em que ela se inicia. Afinal, é a sua natureza primaz que faz emergir, inclusive a morte. Buscar uma pode ser encontrar, de incerto jeito, a outra. Um encontro buscado que se mantém imprevisível. Ao deparar-se com a morte ou com infância, a chance de se encontrar o inusitado. Só uma coisa parece certa: a necessidade da morte do excesso de adultez existente.

Para fortalecer a vida é imperativo reconfigurar a morte. Deleuze, a respeito de Foucault, entrecruza literatura e filosofia destacando o modo pelo qual Bichat rompe com a concepção clássica da morte:
colocar a morte como coextensiva da vida, fazer dela o resultado de mortes paralelas e, sobretudo, tomar como modelo a morte violenta em vez da morte natural. Sim, Foucault faz referência ao nascimento da clínica e aos estudos científicos a respeito da morte. Ele não alude, aqui, a uma morte simbólica. Ainda assim, a incorporação da idéia de uma morte que acompanha a vida, uma idéia ainda não concebida até então, passa a ganhar notoriedade na atividade médica. Esta foi a grande marca distintiva por ele ressaltada. É o que ele expressa ao afirmar:

Foi quando a morte se integrou epistemologicamente à experiência médica que a doença pôde se destacar da contranatureza e ganhar corpo no corpo vivo dos indivíduos. A medicina moderna, no sentido de medicina anátomo-clínica, estrutura onde se articulam o espaço, a linguagem e a morte, data do aparecimento da morte como condição de possibilidade do conhecimento da vida e da doença, dos fenômenos orgânicos e de suas perturbações.

É nessa perspectiva que Foucault relaciona, em seus estudos, a experiência médica e a experiência literária. Em O Nascimento da Clínica, ele assinala que medicina e literatura evidenciam a irrupção, o aparecimento do sentido de finitude que domina a relação do homem com a morte. Uma relação que opera tanto no âmbito de um discurso científico, quanto na esfera de uma linguagem que se desdobra infinitamente no vazio deixado pela ausência dos deuses. Esta linguagem incessantemente desdobrante, a linguagem literária, atua no campo da sensibilidade e conduz a uma percepção difusa e tateante. Contudo, acaba por chegar a entendimentos súbitos, definitivos. É este processo sofrido, mas compensador que, levando ao limite extremo o projeto de chegar à infância, chega, de súbito, à morte."

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Fonte:
BERNARDINA MARIA DE SOUSA LEAL: “CHEGAR À INFÂNCIA”. (Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor. Orientador: Prof. Dr. Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2008.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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