Franz Kafka, viagens, tráfego e o cinema


Paisagem – é nisto que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como quarto. - Walter Benjamin

Quando estava para ser construída a primeira linha alemã de trens na Baviera, a faculdade de medicina de Erlangen emitiu o seu parecer.. : o movimento rápido provocaria... doenças cerebrais; mesmo a mera observação de um trem passando em velocidade poderia provocá-las; seria portanto necessário construir em ambos os lados da ferrovia um tapume de cinco pés de altura.
Egon Friedell, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p.91.

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Existe uma opinião bastante disseminada de que o mundo de experiências de Kafka se limitava a Praga e suas redondezas da Boêmia. Porém, um olhar mais apurado mostra outra imagem que não coincide exatamente com o retrato de um eremita. Kafka possuía um contínuo desejo por viagens, que começou a experimentar nos primeiros anos de trabalho com seu amigo Max Brod. Ele viu grande parte do leste e sul europeu, o Mar do Norte e o Báltico e conheceu as grandes metrópoles do período imperial: Berlim, Dresden, Leipzig, Paris, Milão, Zurique, Viena e Budapeste. Conforme Peter-André Alt, viajar significa para Kafka a possibilidade de observar o estrangeiro e captar sua peculiaridade livre de impulsos de adaptação, sem abandonar a proteção da anonimidade. Já cenas de ferrovias, viagens de trem e bonde lhe proporcionaram oportunidades de praticar aquela refinada cultura da percepção que sob a pressão da rotina só esporadicamente podia se desenvolver. Também nos períodos de férias Kafka está próximo do
medium da escrita: através da leitura de periódicos, guias de viagem e romances, que o iniciaram em regiões exóticas, e através de seus apontamentos no diário, cujo duto seletivo apanha o que foi visto para ordenar o material para futuras histórias (ALT, 2009, p. 194, tradução nossa).

No terceiro capítulo de
Kafka vai ao cinema Hanns Zischler informa que

No decorrer de uma viagem em geral fatigante a Paris, em outubro de 1910, Kafka vivenciou a metrópole – há muito admirada a distância – como um teatro grotesco e angustiante de descontextualização, um mundo de cabeça para baixo e incorrigível. Paris desfazia-se em não-lugares, entroncamentos, estações de metrô, intensidades puras, geradas pela aceleração mecânica. Kafka, sempre prontamente afetado pela “mais nova tecnologia”, sentiu fisicamente essas turbulências inusitadas
(ZISCHLER, 2005, p. 33).

Um motivo bastante recorrente dentro do contexto das grandes cidades e do meio literário é o do
flâneur e voyeur que são figuras já do século XIX. Esse tema tem entre alguns de seus maiores representantes literários E.T.A. Hoffmann com o conto A janela de esquina do primo [Des Vetters Eckfenster] (1822), Balzac com Le peau de chagrin (1831), Edgar Allan Poe com The man of the crowd (1840), Nerval com Les nuits d’octobre (1852), Baudelaire com A une Passante (1857) e Kierkegaard com Diário de um sedutor (1843). Não raro o flâneur surge aqui como o passeador apaixonado no mar de ruas da metrópole moderna que se abandona ao poderoso fluxo da multidão. O flâneur observador que se coloca na posição de um velejador na torrente da massa, permanece como um espectador solitário, sem que o ritmo da vida autônoma o consiga agarrar realmente.

Walter Benjamin em
Passagens (2009) afirma que o caso em que o flâneur se distancia do tipo do passeador filosófico e assume os traços do lobisomem a vagar irrequieto em uma selva social foi fixado pela primeira vez – e de maneira definitiva – por Poe em seu conto O homem da multidão. Benjamin informa que nessa narrativa se desenvolve a dialética da flânerie: de um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos, como um verdadeiro suspeito; de outro, o homem que dificilmente pode ser encontrado, o escondido (p. 463, 465).

Kafka também conhecia essa disposição para a observação velada. Como
voyeur ele apreciou a relação entre intimidade e desenvoltura que a grande cidade lhe ofereceu. Seus diários são ricos em descrições voyeurísticas de jovens mulheres que ele seguiu com os olhos durante passeios, em cafés ou em leituras e palestras. Lise Weltsch, as atrativas irmãs de Werfel, Margarethe Kirchner, a bela atriz Gertrud Kanitz, passantes anônimas, governantas e serventes foram observadas por ele com uma paixão carregada de erotismo. Sempre são descritos detalhes dos cabelos, da forma do rosto e cor dos olhos, peças de roupa (sobretudo peles, véus, xales e aventais) e chapéus.

Esses elementos
flâneurísticos se misturam com os voyeurísticos especialmente no conjunto de contos publicado sob o sugestivo título de Contemplação (1913). Muitos dos contos já indicam o tema no próprio título como Os que passam por nós correndo, Olhar distraído para fora e A janela da rua. Nesse último o ato de observar é descrito da forma mais simples imaginável:

Quem vive isolado e gostaria de vez em quando de estabelecer contato em algum lugar, quem quer ver, sem mais um braço qualquer no qual possa se apoiar, levando em consideração as mudanças das horas do dia, das condições climáticas, das relações profissionais e coisas dessa natureza – esse não vai levar isso adiante por muito tempo sem uma janela de rua
(KAFKA, 1999a, p. 34).

Ao observar da perspectiva da janela mistura-se o flanar que permite aos heróis de Kafka perseguir jovens mulheres com o olhar: “Vejo porém moças”, se lê em
Roupas, “que são sem dúvida bonitas e ostentam músculos e ossinhos múltiplos e encantadores, pele esticada e massas de cabelo fino [...]” (KAFKA, 1999a, p. 30). O específico da visão de Kafka consiste em seu sentido para detalhes que reduz a cena visual enquanto decompõe a impressão de um ser humano completo em fragmentos.

Zischler cita um pequeno trecho escrito a lápis que ele diz simplesmente ser das “anotações” de Kafka, porém não especifica exatamente a origem do texto, que é um pequeno poema de quatro linhas em francês e informa não ser possível identificar se é de autoria do próprio Kafka ou se foi meramente copiado

Moi je flâne
Qu’on m’approuve ou me condamme
Je vois tout
Je suis partout (KAFKA apud Zischler, 2005, p. 33).

Zischler sustenta que quando se afasta a suposição de que o falante, neste poema, é um ser vivo e dotado de sentimentos, uma instância psíquica deste ou daquele tipo, e se percebe que se trata, ao invés disso, de um aparelho mecânico, como uma máquina fotográfica ou uma câmera de filmagem (“vejo tudo, estou em toda parte”), os quatro versos, aparentemente anotados sem compromisso, surgem sob um prisma diferente. Já não recorrem a uma capacidade individual específica de ver, ou a uma preferência estética, mas a “visões” anônimas. Quanto a mim, eu flano / quer me aprovem ou me condenem, / vejo tudo, / estou em toda parte.

Zischler faz ainda uma relação da experiência em Paris com o conto
Na Colônia Penal. Essa viagem foi interrompida por Kafka em função de uma furunculose e ao retornar a Praga ironicamente enviou de casa três postais aos seus amigos Max Brod e o irmão Otto Brod que ficaram em Paris.

Querido Max,
Cheguei bem e, pelo simples fato de ser olhado por todos como um fenômeno improvável, estou muito pálido. – A alegria de gritar com o médico foi-me negada por um pequeno desmaio, que me empurrou para o divã dele e durante o qual – isso foi esquisito – senti-me a tal ponto como uma moça que tentei ajeitar com as mãos minha saia de menina. No mais, o médico declarou-se horrorizado com a minha aparência posterior; os cinco novos abscessos já não são tão importantes, uma vez que apareceu uma erupção cutânea pior que todos os abscessos, que requer longo tempo para se curar e que produz e produzirá a dor real. Minha idéia, que naturalmente não revelei ao médico, é que essa erupção foi produzida pelas calçadas internacionais de Praga, Nuremberg e especialmente Paris. – Assim, sento-me agora à tarde em casa como que numa sepultura (não posso andar, por causa das ataduras sólidas, e não posso sentar sossegado, por causa da dor, que a cicatrização piora ainda mais), e só de manhã saio deste Além, por força de ter que ir ao escritório. Amanhã irei encontrar seus pais. – Na primeira noite em Praga, creio ter sonhado a noite inteira (o sono pairou sobre esse sonho como um andaime numa nova construção parisiense) que estava alojado, para pernoitar, numa casa grande, que não consistia em nada além de carros de praça, automóveis, ônibus parisienses, e assim por diante, os quais não tinham nada melhor a fazer que andar grudados uns nos outros, ultrapassando e passando por cima e por baixo uns dos outros, e não se falava nem se pensava em nada além de tarifas, conexões, baldeações, gorjetas, direction Pereire, dinheiro falso etc. por causa desse sonho, não mais consegui dormir, porém, como não dispunha de informações adequadas sobre as questões necessárias, só com extremo esforço pude suportar o sonho em si. Queixei-me internamente de terem de me acomodar, a mim, que estava tão necessitado de repouso depois da viagem, numa casa dessas, mas ao mesmo tempo, havia em mim um assecla que, com a reverência ameaçadora dos médicos franceses (que usam casacos de trabalho abotoados até em cima), reconheceu a necessidade dessa noite. – Por favor, torne a contar o seu dinheiro, para ver se não o roubei; segundo minha contabilidade, não totalmente impecável, gastei tão pouco que é como se houvesse passado o tempo todo em Paris lavando minhas feridas. Que horror, está doendo de novo! Era mais do que hora de eu voltar, por vocês e por mim. Seu Franz K (KAFKA15 apud Zischler, 2005, p. 35-36).

Para Zischler, de acordo com essa carta, Paris ficou-lhe gravada no corpo. Assim como um mártir, Kafka levou consigo a calçada até Praga e, em uma transcrição caligráfica, “mostrou” aos amigos que lá haviam permanecido as “suas feridas”, como a impressão e a expressão viva que Paris lhe causara – sua leitura da cidade, por assim dizer. Essas feridas e as ataduras foram sua colheita, sua impressão sumamente material da cidade.

Em
Kafka’s Clothes: Ornament and Aestheticism in the Habsburg Fin de Siècle (1992) Mark Anderson afirma que Kafka era fascinado pelo movimento do tráfego na cidade moderna e o mais importante, pelo espetáculo estético e dilemas metafísicos que esse movimento implicava. Para Anderson essa fascinação coincide com uma mudança geral na arte, filosofia e ciência europeia que ocorria na virada do século: um afastamento da representação de pessoas e objetos firmemente arraigados a um ambiente estável e constante, e em direção a uma percepção relativizada das coisas em movimento, de um deslocamento súbito ou inconsciente de energia, de modelos de circulação e troca flutuantes e efêmeros.

Anderson diz que para colocar a questão com mais simplicidade e abstração, em sua obra dos primeiros anos, Kafka sempre está preocupado com a aparente falta de razão da realidade material, ou seja, objetos em movimento. Para Anderson “the big city –
die Groβstadt – was a common theme in german literature at the turn of the century, and New York often served the European imagination as a hyperbolic version of its own urban and futurist tendencies” (ANDERSON, 1992, p. 100). A cidade grande como um espaço teatral despersonalizado marcado por seu tráfego e consequentemente pelo problema dos acidentes – mas também do acaso, oportunidade e morte – isso, rudemente falando, é o duplo ótico através do qual os primeiros textos de Kafka veem o mundo moderno.

No quarto capítulo de seu livro, Anderson se debruça sobre o gênero
travelling narrative para analisar mais detalhadamente o romance O desaparecido. Ele diz que essa obra se apresenta primeiramente como um texto em movimento, como uma travelling narrative e se mostra assim sempre unterwegs (on the road) como uma nova forma de transporte suplanta a anterior ao projetar o romance para um espaço infinito e de certa forma atemporal do continente americano. A difícil situação de Karl Rossmann é bastante similar àquela do leitor enquanto a narrativa vai implacavelmente adiante abandonando lugares inominados e personagens inescrutáveis por novos, aparentemente seguindo um curso aleatório e imprevisível e sem afixar letreiros espaciais e temporais identificáveis.

Para Anderson, uma distância considerável separa os textos de Kafka dos tradicionais romances do século XIX, os quais – sejam escritos por Jane Austen, Balzac ou Fontane, ou o jovem Thomas Mann – são organizados de acordo com a noção de “propriedade”. Ele chama de “narrativa de propriedade” qualquer texto que trabalha para estabelecer a identidade de seus protagonistas, assim como a estabilidade dessas estruturas narrativas através das quais a identidade é apreendida, ao circundar seus protagonistas em uma rede de relações de propriedade. Mas não propriedade somente no sentido de terras ou bens econômicos, como também todas as vantagens e atributos que os seguem: acima de tudo, um nome próprio; uma casa, talvez uma residência aristocrática carregando o mesmo nome, uma esposa e filhos também marcados por esse nome; uma linhagem de ancestrais e descendentes que tornam a identidade do protagonista acessível como uma forma de propriedade histórica e psicológica. Situada em um espaço histórico e geográfico preciso, a narrativa de propriedade se ocupa em determinar as origens de seus protagonistas, as razões de seu comportamento e as consequências de suas decisões. Os indivíduos e locais que ela representa são oferecidos ao leitor como estáveis, por fim, objetos reconhecíveis da percepção; são oferecidos a nós como um tipo de narrativa de propriedade que podemos adquirir e torná-las nossas.

A narrativa de viagens modernista – como
O desaparecido – nega essa forma de leitura porque está sempre em movimento, está sempre um passo a frente do leitor sem permitir que ele a acompanhe e nunca se volta para questionar suas próprias origens ou causas. O prazer que ela oferece é aleatório, vicário, mutável. O texto de viagem trabalha para desestabilizar a identidade do protagonista tanto quanto as estruturas genealógicas através das quais essa identidade normalmente é apresentada. O protagonista não tem propriedade, está sempre on the road, nunca mostra o que está para acontecer e nunca questiona o porquê de estar lá. O nome próprio é tênue, fraco, disfarçado ou desimportante, pois seu portador está continuamente renunciando ao lugar onde ele é reconhecido. O desejo não é fixado a algum objeto, intenção de possuir esse objeto ou acumular com as suas várias formas de propriedade, mas está ele próprio na estrada, amalgamado com a multidão, se perdendo no tráfego, indo em frente. Claramente ligado ao desenvolvimento da cidade grande, capitalismo tardio e às formas de propriedade fluidas e mutáveis, as narrativas de viagem se tornaram um modo privilegiado de narrar na literatura do século XX.

Anderson menciona os romances de Alfred Döblin e John dos Passos que “provide further examples of a widespread modernist tendency in European and American literature to use the theme of ‘traffic’ to create a destabilized, shifting mode of narration opposed to the nineteenth-century novel’s insistence on narrative ‘property’” (ANDERSON, 1992, p. 115).
Ele ainda aponta o paralelo existente entre essas narrativas e o cinema ao dizer que talvez o uso mais radical das narrativas de viagem foi feito por cineastas como Jean-Luc Godard, Werner Herzog e Wim Wenders, cujos filmes repetidamente tematizam formas mecanizadas de viagem como um gesto autorreflexivo em direção à natureza instável e em movimento da representação cinemática. Para Anderson, sujeito, câmera e imagem projetada estão todas implícitas no tráfego das imagens de viagem.

Outro autor que aborda a questão das viagens em Kafka é Malcolm Pasley em seu artigo
Kafka als Reisender (1985) [Kafka como viajante]. Nele Pasley esboça a tese de que Kafka se ocupou teórica e praticamente com a arte da descrição de viagens especialmente entre os anos 1909 e 1912. E isso, segundo Pasley, com a intenção de abrir caminho na estrada da narrativa intensa. O objetivo manifesto do artigo não é tratar especificamente o tema da viagem na obra ficcional de Kafka, mas sim muito mais em suas tentativas de descrever suas próprias experiências de viagem. Nesse período entre 1909 e 1912 Kafka e Brod não somente se ocuparam intensivamente com literatura de viagens anteriores (como, por exemplo, por Fontane e Hebbel, mas, sobretudo, Goethe e Flaubert), como também notoriamente refletiram e conversaram muito sobre teoria e prática de descrição de viagens. Essas descrições de viagens e reportagens eram especialmente atuais na época. Porém, em seu diário no registro do dia 29 de setembro de 1911, Kafka faz anotações negativas a respeito das viagens modernas, pouco antes da segunda viagem a Paris:

As observações de viagem de Goethe diferem das de hoje porque, feitas de uma diligência postal, com as lentas mudanças do terreno, desenvolvem-se de maneira mais simples e podem ser acompanhadas com muito maior facilidade, mesmo por aquele que não conhece as redondezas. (...) Como a paisagem se oferece incólume em seu caráter inato aos passageiros da carruagem e como também as estradas atravessam o interior de maneira muito mais natural do que os trechos ferroviários, (...) não há necessidade de nenhum ato de violência por parte do espectador e ele pode fazer sua contemplação de maneira sistemática, sem qualquer esforço
(KAFKA, 1990a, p. 36-37, tradução nossa).

Aqui Kafka se queixa da velocidade para o viajante moderno, que passa por ele em um ritmo veloz e, além disso, não lhe permite registrar a paisagem mecanicamente recortada em sua essência natural, seu caráter nativo. Como espectador que deseja descrever, lhe parece essencial, sobretudo, se subordinar ao objeto, não danificar violentamente o percebido – aqui a paisagem –, o que pode acontecer, por exemplo, através de comparações objetivamente insustentáveis. Mais ou menos na mesma época ele escreve em seu diário:

Acolhem-se as cidades desconhecidas como fato de que lá moram habitantes que não penetram na nossa forma de vida, assim como nós não podemos penetrar nas suas, é necessário, não se pode evitar, mas se sabe bem que isso não tem nenhum valor moral e nem mesmo psicológico, por fim se pode frequentemente renunciar à comparação, já que a diversidade demasiadamente grande das condições de vida torna isso impossível. Mas até os subúrbios de nossa terra natal nos são estranhos, aqui sim as comparações têm valor, um passeio de meia hora nos pode recorrentemente comprovar que aqui moram pessoas em parte no interior de nossa cidade, em parte na pobre e escura margem, sulcada como um grande desfiladeiro, apesar de eles todos terem um grande círculo de interesses em comum como nenhum outro grupo de pessoas fora da cidade
(KAFKA, 1990a, p. 196-197, tradução nossa).

Pasley sugere que nesse trecho Kafka quer dizer que as comparações seriam sensatas somente entre partes de um todo interligado, mas ao mesmo tempo admite o totalmente diferente através da comparação do conhecido por experiência pessoal – para com isso realizar uma tentativa de penetrar de qualquer modo no mundo desconhecido e incorporá-lo ao próprio, tornando-o assim inteligível (PASLEY, 1985, p. 4, tradução nossa).

Ao se cotejar esses registros do diário, é possível reconhecer uma das tensões existentes em suas descrições de viagens: seu desejo de não interferir na essência do mundo estrangeiro, que, no entanto, é frustrado pelo impulso – ainda que minimamente violento – de incorporar esse mundo à esfera do conhecido ou colocá-lo tão próximo quanto possível do íntimo para que dele possa se apropriar e assim compreendê-lo.

Adiante Pasley coloca a questão: “como podem imagens vivas, dinâmicas serem primeiramente capturadas, portanto, apanhadas e depois novamente despertadas, ou seja, convincentemente transmitidas no contexto de um novo movimento?” (PASLEY, 1985, p. 7, tradução nossa). Sua conclusão é a de que as indicações sobre o cinema lhe parecem bastante justificadas, pois os anos em que ele se ocupou com os registros de viagem (1909-12) foram igualmente os anos em que ele mais se ocupou pela nova forma artística que mecanicamente colocou imagens capturadas em movimento.

Significativamente, Kafka parece ter se entusiasmado mais pelos cartazes dos filmes do que pelas próprias apresentações: através do [para o observador] incontrolável ritmo do movimento das imagens, ele [Kafka] se sentiu privado da calma que o teria permitido assimilar completamente imagens isoladas ou cenas curtas através de sua forma analítica peculiar
(PASLEY, 1985, p. 8, tradução nossa).

Ele teria assim se interessado mais pelos cartazes e sua relação com o cinema seria de reservas. Isso pode ser reforçado através de uma afirmação de Kafka existente na obra
Gespräche mit Kafka de Gustav Janouch, quando este pergunta se ele não ama o cinema, ao que Kafka responde:

Na verdade eu nunca havia refletido a respeito. No entanto, é um magnífico brinquedo. Mas eu não o tolero, talvez porque eu sou muito dotado oticamente. Eu sou um ser humano visual [Augenmensch]. Mas o cinema perturba o olhar. A rapidez dos movimentos e a rápida alternância das imagens forçam as pessoas a uma constante visão geral. A visão não se apodera das imagens, mas sim essas se apoderam da vista. Elas inundam a consciência. O cinema significa uma uniformização do olho, que até agora estava despido
(JANOUCH, 1961, p. 105, tradução nossa).

Como exemplo da observação calma, podemos retomar a questão do
flâneur que Peter-André Alt menciona em seu Kafka und der Film como sendo especialmente o flanar urbano no crepúsculo da noite que oferece a oportunidade para a observação diária distraída, cujas impressões Franz Kafka anotou no diário especialmente entre os anos 1911 e 1914; e não raramente essas anotações forneceram alicerces para modelos de narrativa, cenas expositivas ou sequências narrativas.

Porém, mesmo Kafka oferecendo essa suposta oposição ao cinema, Alt menciona um apontamento feito por Max Brod em sua biografia sobre Kafka onde diz: “ele se interessava por tudo de novo, atual e técnico, como, por exemplo, pelos princípios do filme” (BROD apud ALT, 2009, p.13, tradução nossa). Utilizando-se aqui da associação realizada entre “o novo, o atual, o técnico e o cinema”, se vê mais uma vez o cinema relacionado à tecnologia e à percepção da vida diária em uma grande metrópole.

Alt corrobora o fato de que dentro do contexto das grandes metrópoles, é de considerável importância a experiência do tráfego emergente logo após a invenção do automóvel. A relação entre a sucessão de imagens no cinematógrafo e a rápida mudança de cenários proporcionada pela cidade grande possuem uma proximidade não desprezível. O próprio Max Brod publicou em 1909 um ensaio no
Neue Rundschau que reflete sobre a relação do filme com o trânsito moderno e que quatro anos mais tarde foi reimpresso em seu volume de ensaios intitulado Über die Schönheit hässlicher Bilder (1913) [Sobre a beleza das imagens feias].

Kurt Pinthus já trata dessa ligação entre cinema e tráfego em seu livro
Das Kinobuch (1913) [livro do cinema], onde através de inúmeros exemplos ele confirma a importância que a representação de processos de movimentos tecnicamente acelerados ganha para o novo medium; não somente em Brod, mas também nos esboços de Walter Hasenclever e Kurt Pinthus as viagens de trem e perseguições de automóvel desempenham um papel importante. A representação de rápidos processos de movimento, que devia causar ataque de nervos nos espectadores, forma um tema central no qual o novo medium reflete a si próprio. Seria relevante mencionar aqui de passagem o fato de que o próprio Max Brod publicou um breve roteiro para cinema intitulado Ein Tag aus dem Leben Kühnebecks, des jungen Idealisten em Das Kinobuch, que até hoje é considerado uma referência na história do cinema inicial.

A questão do tráfego e da velocidade também adquire importância em relação ao cinema não unicamente no nível estrutural narrativo, como também foi um
tema bastante utilizado pelo cinema no início do século. Na Inglaterra, Alfred Collins, Cecil Heptworth, Robert W. Paul e James Williamson rodaram, já na virada do século, filmes sobre colisão de automóveis e catástrofes de trem (The Terrible Railway Accident, 1896 e Explosion of a Motor Car, 1900). O pioneiro cinematográfico de Berlim Oskar Meester produziu em seu show de atualidades a partir de 1905 regularmente filmagens de automóveis em funcionamento, bem como documentários que mostravam corridas e recordes de velocidade (Huldigungsfahrt der sächsischen Automobilfahrer vor König August am 02.07.1905, Die Bilder vom Herkommer Automobilrennen bei München am 12.08.1905). Até mesmo David W. Griffith, considerado o criador da técnica da montagem paralela no cinema, apresentou em 1907 um dramático curta, em cuja sequência um motorista em alta velocidade corre pelas ruas para salvar uma jovem da morte por intoxicação (ALT, 2009, p. 16, tradução nossa).

Alt assinala que os filmes preferidos da época em torno de 1910 nos anúncios tinham títulos como
Der klettergewandte Dieb [O habilidoso ladrão escalador], Ein Eisenbahn-Unglück [Desatre na via férrea], Ein Automobil-Unfall [Um acidente de automóvel], Eine wilde Jagd im Automobil [Uma perseguição selvagem no automóvel] ou Roman eines Lokomotivführers [Romance de um maquinista] (ALT, 2009, p. 18, tradução nossa). Um traço típico do espetáculo cinematográfico, o rápido desenrolar da ação, corresponde bem ao anseio do cidadão metropolitano, a quem, sobretudo, o cinema se adapta. O jogo das perspectivas alteradas surge através da mudança de posição do desenrolar do movimento e seu novo arranjo em seqüências de eventos não-causais. A dinamização da imagem fornece um deslocamento da ênfase do plano da introspecção, como é o convencional para processos narrativos, para o nível da externalização, na qual dominam o movimento físico, os gestos e a mímica.

Nos anos depois de 1909, Kafka descreveu cada vez mais situações que transmitem o processo dinâmico do trânsito. “Aus dem Coupeefenster” [Da janela do Coupee] (KAFKA, 1990a, p. 14, tradução nossa), diz a curta formulação, com a qual o diário de 1909 esboça a posição do observador, o mesmo que se senta em um trem e olha as imagens do ambiente como se elas fossem cenas de um filme veloz que passa.

Em seu diário de viagem parisiense que foi elaborado posteriormente com base em apontamentos rápidos durante o outono de 1911, Kafka se esforça para descrever repetidamente o ritmo do trânsito urbano com os meios do cinema. Como exemplo, tal abordagem não se mostra somente na mencionada perspectiva do trem, mas também captura a descrição de outras cenas das ruas parisienses, as manobras de ultrapassagem e acidentes. A colisão entre um triciclo e um grande automóvel é descrita com uma precisão minuciosa, novamente com adaptação de um parco estilo protocolar que registra somente o essencial. “Sobre o asfalto os automóveis são mais fáceis de dirigir, mas também mais difíceis de parar” (KAFKA, 2003c, p. 75, tradução nossa). A colisão de carros se manifesta assim como consequência de uma sucessão dinâmica puramente mecânica, sem que o texto questione as causalidades psicológicas; possibilidade de falha humana, falta de atenção ou de concentração do motorista não desempenham nenhum papel, porque a visão da câmera mostra o trânsito como circulação de objetos sem alma. Nos princípios do cinema, essa forma de ver preludia a renúncia programática de uma perspectiva psicológica.

Alt menciona um interessante apontamento de Alfred Baeumler que em 1912 diz que “o amplo público compartilha com o
medium do filme um baixo interesse pela ‘relação causal’ e ‘psicologia’” (BAEUMLER apud ALT, 2009, p. 22, tradução nossa). Georg Lukács em 1913 considera o cinema “a-metafísico”, porque ele representa uma dinâmica “sem razão e motivo”; às suas imagens falta coesão interna, como ela se origina de uma perspectiva ordenadora do caráter causal ou final. Com essa suspensão da metafísica, que resulta da limitação por mecanismos da dinâmica física, une-se também, para Lukács, o abandono da motivação psicológica dos acontecimentos. O cinema confere aos objetos um significado isolado, no qual eles são exibidos em sua presença física e efeito. “Só o filme”, esclarece Lukács, “pode tornar o automóvel poético, no qual ele mostra a sua beleza como beleza da função” (LUKÁCS apud ALT, 2009, p. 22, tradução nossa).

Desta forma, o filme serviria para “exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana”, exigência que o processo de tecnização trouxe consigo, assim formularia Walter Benjamin em 1935/36 (BENJAMIN, 1996, p. 174). Esse aspecto será comentado adiante quando em
Kafka’s Clothes (1992) Mark Anderson reforça a falta de profundidade psicológica dos primeiros filmes ao estilo de narrar de Kafka, onde seus personagens aparecem por uma necessidade do momento, mas com a mesma velocidade que surgem também desaparecem sem que necessitem de um passado histórico.

É possível dizer que Kafka adota uma via indireta sobre a representação de processos de aceleração, como o trânsito metropolitano os transmite. Esse processo reproduz a história da percepção do movimento moderno, na qual a dinamização das imagens é tornada acessível inicialmente através da ferrovia e do automóvel. Assim, conforme Alt,

se a visão cinematográfica de Kafka é treinada nos fenômenos do tráfego urbano, isso corresponde à genealogia histórica da percepção moderna. A descrição de ferrovias, bondes elétricos, ônibus e automóveis, que percorrem os diários de Kafka nos anos antes de 1914, já provam as estruturas de uma estética do cinema, como mais tarde elas vão marcar também romances e contos
(ALT, 2009, p. 48-49, tradução nossa).

Nesse sentido, os novos meios de transporte não representam somente o objeto da descrição, mas sim fornecem de sua parte um ponto de vista em movimento que possibilita a observação da vida urbana.

Um exemplo típico dessa afinidade é o fragmento de romance
Preparativos para um casamento no campo (1906-1909), surgido antes das primeiras experiências cinematográficas. No capítulo de abertura o protagonista Eduard Raban empreende uma viagem de trem para visitar sua noiva. O momento da aceleração é descrito com grande precisão de detalhes: “o trem se pôs em movimento tão devagar, que se podia imaginar o giro das rodas, mas logo ele se lançou em uma descida e, em frente à janela, sem preparação, as longas balaustradas de uma ponte foram separadas e comprimidas umas contra as outras [...]” (KAFKA, 2006, p. 532, tradução nossa). O texto tenta transmitir a impressão da velocidade não através de uma aproximação estilística à experiência da aceleração, mas sim, na medida do possível, por uma visualização plástica. O passar da balaustrada da ponte é explicitada em seu efeito ótico como deformação do objeto; o trem em alta velocidade oferece ao expectador a impressão de destruir os objetos que ultrapassa. A curta passagem empreende a tentativa paradoxal de uma fixação fotográfica da experiência da velocidade; ela renuncia a uma organização sequencial, como mais tarde aspira à narrativa análoga ao filme, em favor de um instantâneo de uma viagem acelerada (ALT, 2009, p. 49-50, tradução nossa).

No registro de 18 de novembro de 1911 de seu diário se pode ler:

Ontem na fábrica. Voltei com o elétrico, sentado em um canto com as pernas esticadas, vi pessoas lá fora, lâmpadas de lojas acesas, muros de viadutos percorridos, de novo costas e rostos, saindo da Rua do Comércio do subúrbio uma rodovia com nada de humano além de pessoas indo para casa, as luzes elétricas do terreno cortando e rompendo o escuro, baixas chaminés de uma empresa de gás se estreitando, um cartaz sobre um espetáculo em turnê de uma cantora de Treville colado nas paredes até uma viela nas proximidades dos cemitérios [...]
(KAFKA, 1990a, p. 196, tradução nossa).

As impressões da vida urbana, pelas quais o passageiro percorre, possuem um caráter fugidio, pois o movimento do elétrico não permite uma fixação. Na verdade, algumas imagens isoladas até mesmo são fixadas, porém não se permitem unir umas às outras enquanto o trem as ultrapassa. Mas é exatamente a técnica de sequência da descrição que permite apoderar-se da dinâmica do bonde, assim como a visão do exterior é transmitida através da objetiva de uma câmera.

Essa perspectiva fílmico-estética não renuncia à contemplação do ser humano, mas o objetiva, enquanto o torna objeto em uma totalidade em movimento dos mais variados produtos da percepção. É a vista do observador que está em movimento através da viagem do elétrico, que dissolve o indivíduo em momentos singulares. Na descrição, estes são novamente combinados e montados em uma sequência de imagens particular, na qual domina o elogio de Marinetti à “psicologia intuitiva da matéria” (BERNARDINI, 1980, p. 86), como característica de uma nova vanguarda literária. Os pontos de vista de Kafka sobre o tráfego dividem com o programa de Marinetti o interesse pela pura mecânica do movimento além da causalidade de sua sucessão individual (ALT, 2009, p. 57-58, tradução nossa).

O último capítulo de
O desaparecido transmitido a nós mais uma vez se une aos temas da ferrovia dos diários. O parágrafo final interrompido, que foi escrito no outono de 1914 em meio ao trabalho de O processo, descreve uma viagem de trem de dois dias através da América que Karl Rossmann empreende como membro do teatro de “Oklahama”. O ritmo frenético do trem o permite apreender a paisagem rochosa pela qual ele passa somente de forma incompleta. A descrição de Kafka cuja amostra básica já se encontra aplicada similarmente no esboço de roteiro de Kurt Pinthus Die verrückte Lokomotive [A locomotiva maluca] do Kinobuch, acentua essa experiência do fugaz com a ajuda de uma técnica retórica tradicional:

massas de pedra negro-azuladas aproximavam-se do trem em cunhas pontiagudas e mesmo quem se debruçasse para fora da janela em vão buscaria seus cumes; escuros e estreitos vales rasgados afloravam, podia-se descrever com o dedo a direção em que iam se perder; largos cursos d’água vindos das montanhas afluíam ligeiros em grandes ondas de espuma, precipitavam-se por debaixo das pontes sobre as quais passava o trem, e estavam tão perto que o sopro de seu frescor fazia o rosto arrepiar
(KAFKA, 2003b, p. 269).

Por um lado, a sugestão de velocidade se torna possível através de efeitos de sincronismo, nos quais a paisagem e viagem são diluídas em uma imagem de simultaneidade. Por outro lado o ritmo da viagem encontra-se refletido no motivo da água da montanha que ressoa sob a ponte do trem. Isso corresponde ao procedimento retórico da metonímia, como o filme a transmite com estratégias não-verbais; nesse caso a câmera não mostra o trem em movimento, mas sim a dinâmica das forças da natureza que ilustram o progresso da viagem (ALT, 2009, p. 72, tradução nossa)
. O pretenso objeto é representado pelo seu deslocamento e dessa forma indiretamente capturado através de um ato de substituição. Em oposição às descrições do tráfego nos diários de viagem parisienses e à descrição de Wilde Jagd, o último parágrafo de O desaparecido tenta registrar o ritmo de um movimento dominante não através de uma imitação fílmica de seu ritmo, mas sim através de um modo de procedimento treinado na técnica do campo – contracampo. Esse método é menos expressivo, mas por isso mais sutil porque ele representa o que quer expressar através de um plano intermediário que só deve ser identificado e interpretado pelo observador.

Através desses exemplos, foi possível verificar mais precisamente como o tráfego alterou a perspectiva e as formas de ver da população nas grandes cidades e como já se une essencialmente à experiência cinematográfica ao oferecer imagens em movimento para um observador sentado em sua poltrona, bem como esses elementos estão presentes em Kafka. Mesmo considerando que o espectador viajando em um trem é quem está em movimento e a vista parada, em essência a experiência não possui grandes mudanças em comparação àquela oferecida ao espectador do cinema que é quem se encontra estático, enquanto as imagens à sua frente é que se movimentam.

Um aparelho que mudou consideravelmente os meios de transportes, bem como ampliou consideravelmente sua velocidade e ainda ofereceu novos pontos de vista foi o avião, que também não deixou de ter a atenção de Kafka como se pode deduzir de sua experiência em um show aéreo realizado em Bréscia na Itália em 1909, quando o novo invento ainda se encontrava em tenra idade."

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Fonte:
THIAGO BENITES DOS SANTOS: "TECNOLOGIA E MEDIA ÓTICOS EM FRANZ KAFKA". (issertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras na área de Literatura Comparada: Teorias Literárias e Interdisciplinaridade. Orientador: Prof. Dr. Michael Korfmann). Porto Alegre, 2010.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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