Guimarães Rosa: “tudo novo e lindo e diferente”



Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. /.../ O senhor tinha retirado dele os óculos e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. João Guimarães Rosa

“Campo Geral” abre o conjunto de novelas reunidas em Corpo de baile (1956). Nele, sete narrativas reúnem e dispersam no sertão mineiro, em época não especificada, personagens que transitam por diferentes fazendas de pecuária extensiva, aparecendo e desaparecendo numa história para reaparecer em outra. Exemplo disso, Miguilim adulto, volta à cena na última peça do ciclo, agora como o veterinário Miguel, em “Buriti”: “Depois de saudades e tempo, Miguel voltava àquele lugar, à fazenda do Buriti Bom, alheia, longe. Dos de lá, desde ano, nunca tivera notícia; agora entanto, desejava que de coração o acolhessem”.

Esta estratégia de composição tanto reafirma o valor de conjunto quanto enriquece cada narrativa, que pode ser interpretada como possibilidades das quais decorre uma visada múltipla e empática sobre um universo complexo, multifário e fascinante. Este procedimento narrativo contribui para revigorar e sofisticar a representação regionalista, convencionalmente talhada por uma abordagem esquemática e hierarquizante. Isolada, cada novela ganha força de recorte em profundidade da vida sertaneja. Lidas no conjunto, as histórias conformam um caleidoscópio de contradições, (in)certezas e interditos de uma conjuntura marcada pela instabilidade:

Mesmo evitando ler a obra como reflexo da realidade extraliterária, pode-se compreendê-la como uma travessia rio acima do curso fluente, mas acidentado, do discurso otimista do desenvolvimentismo, que emolduro u ideologicamente o projeto político e econômico que o país vivia. /.../ Nestas narrativas se percebe que este projeto não se impôs sobre o sertão para corrigir as graves distorções que condenam esta área a continuar como reduto de miséria impossível de superar; ao contrário, cavou ainda mais fundo o fosso que separa proprietários e trabalhadores da terra.

Considerando a assimilação do fato biográfico pela forma romanesca adotada em “Campo Geral”, vale destacar que, em vez da formalização artística de uma fase da existência do autor, como fez Graciliano, Rosa escolhe um episódio emblemático de sua meninice, cuja importância advém de dois aspectos complementares. O primeiro singulariza o escritor como alguém que teve uma oportunidade única, e pôde aproveitá- la para alavancar seu destino. O outro aspecto o inscreve na trajetória comum aos muitos escritores que, oriundos de lugares distantes dos grandes centros culturais, ainda meninos viveram a experiência do afastamento da casa paterna, para estudar.

Quando [Miguilim] voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora. Miguilim não sabia. Todos eram maiores que ele, as coisas reviravam sempre de um modo tão diferente, eram grandes demais.
- Pra onde ele foi?
- A foi p’ra Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele volta, de manhã, antes de ir s’embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele junto te leva... - O doutor era homem muito bom, levava o Miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. - Você mesmo quer ir?
Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até ao fundo se esfriava. Mas Mãe disse:
- Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim de ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se encontram. (p. 101-102)

Na articulação do individual com o coletivo, levando em conta a conjuntura da produção e publicação da obra, “Campo Geral” também faz referência indireta à própria História. Revendo sua infância sob as luzes do desenvolvimentismo que marcou o governo de Juscelino Kubitschek, Guimarães Rosa evidencia uma das marcas do atraso do país (a carência de escolarização infantil regular) e constrói uma metáfora dos ideais vigentes na época: a viagem para estudar na cidade torna-se busca da “luz dos olhos”. No destaque a esta circunstância biográfica, a narrativa reproduz a crença de base iluminista na educação formal como meio de estender os valores citadinos e universais aos habitantes do sertão.

Para representar os “vastos espaços” do Brasil rural, Guimarães Rosa se vale de progressiva aproximação e gradativa definição do foco, já a partir do título da novela. “Campo Geral” conota uma visão panorâmica, que, no interior do próprio texto, se fechará, por fim, sobre a situação específica que lhe importa destacar. Este princípio da composição narrativa foi revelado a seu tradutor alemão:

As seriações é que deveriam ser exatamente estas. Que acha? O importante, a meu ver, é que, em qualquer caso, o Primeiro Volume se inicie com a novela “CAMPO GERAL”, por ser a de um menino, a mais abrangedora de aspectos revelando logo melhor a região e compendiando a temática profunda do livro, de certo modo.

No interior do texto, Rosa reitera esta abrangência adotando um movimento de zum que submeterá a percepção dos leitores aos olhos míopes de Miguilim, conduzindo-os à descoberta emocionante do mundo que o menino “conhecia, pouco entendendo,” e à abertura de oportunidades, por meio da viagem para a cidade. Para isto, logo no início da narrativa, um acúmulo de índices de indefinição tempo-espacial conota a perspectiva do narrador em grande angular, distanciada, porém difusa: “Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água, e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto no Mutúm.”

Os termos grifados afastam a ação narrada do universo empírico conhecido pelo leitor, diluindo seu teor referencial, e fazem ecoar no relato narrativas lendárias, cujos fatos aconteciam “muito longe daqui, em um reino distante”, estando, portanto, imersos num tempo mítico, perdido no tempo e no espaço. A coexistência de indeterminações produz no leitor um campo de lembranças e sentimentos que atualiza narrativas ouvidas na infância, abertas pela expressão “era uma vez...”. Produzindo estas semelhanças, Guimarães Rosa constrói seu texto como paráfrase e paródia das histórias de encantamento. Mantendo um horizonte de leitura que deve ser revisto como réplica - cópia e contestação do modelo -, Rosa reinventa a infância num duplo gesto de endosso e desmanche, tanto da liberdade imaginativa da ficção destinada às crianças, quanto da prisão factual da prosa autobiográfica, apreciada pelos adultos.

Reforçando o peso da ficcionalização, e reduzindo a referencialidade biográfica, Guimarães Rosa se descola do protagonista de “Campo Geral”, ao nomeá- lo Miguilim, e deste modo coloca em pauta o problema da identidade. Esta, em lugar de ser uma característica intrínseca do que assinala, constrói uma relação inextricável entre uma imagem e um nome próprio, como assinalou Philippe Lejeune. Pois, esta construção precária e interminável, em permanente tensão constitutiva com a alteridade, como adverte Pierre Bourdieu, “assegura aos in divíduos designados, para além de todas as flutuações biológicas e sociais, a constância nominal, a identidade no sentido de identidade consigo mesmo.”

Na releitura do passado Guimarães Rosa refaz sua história de vida, inspirado pelas histórias de encantamento. Desde o princípio da narrativa, esta analogia já se faz presente, de certo modo preparando as expectativas dos leitores para o desenlace, que recupera ficcionalmente, um fato mágico e decisivo em sua história de vida. Assim, na sua infância, tanto quanto no reino da existência mágica, o destino das criaturas pode mudar abruptamente, mediante a intervenção de um forasteiro que utiliza um objeto dotado de poderes excepcionais. Guardadas as devidas proporções, a figura arquetípica da fada-madrinha poderia ser atualizada no Doutor José Lourenço, cujos óculos têm o condão de permitir ao menino perceber sua deficiência, e logo antes de afastar-se dali, enxergar com nitidez os detalhes da realidade circundante, e a beleza do Mutúm, tanto quanto para o escritor Cordisburgo era “só quase lugar, mas tão de repente bonito”.

Miguilim espremia os olhos. Drelina e Chica riam. Tomèzinho tinha ido se esconder.
- Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito, - Olha, agora!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, meu Deus, tanta coisa, tudo... (p. 101)

A magia, perfeitamente possível nas histórias de faz-de-conta, constrói uma lógica que superou a âncora realista que tanto prendia aquela narrativa ao paradigma teórico-crítico da literatura regionalista quanto garantia seu teor de verdade biográfica. Tanto que a “vida real” transposta para a ficção não convenceu como literatura, pois fez Willi Bölle criticar, no episódio ficcionalizado, uma solução narrativa que apela para um deus ex machina, o que falsearia a verossimilhança. Bölle censurou o desfecho da novela, vendo- o como “um ato individual, de patente paternalismo”; que “curto-circuita a sua posição anterior [sustentada e Sagarana], a apresentação crítica de sintomas de subdesenvolvimento.”

Para Bölle, a coerência interna da narrativa e o descortino de uma dura realidade exigiam o tratamento verista, a prumada documental e a recusa de soluções fantasiosas, de modo a garantir a verossimilhança típica da narrativa realista. No entanto, como bem afirmou Graciliano Ramos a propósito de suas memórias do cárcere, “essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis”.

Na história “inventada no feliz” que contém um acontecimento comprovável, ressalta a interseção entre o ficcional e o biográfico. Com este procedimento, o escritor parece reafirmar sua condição de homem que guarda dentro de si “muitas, muitíssimas histórias”. Este recurso criador despista a autobiografia, cujo modelo canônico se escreve em primeira pessoa (reduto da subjetividade). Mas, principalmente, o afastamento entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado dramatiza a impossibilidade de superar a defasagem entre o eu que narra e o eu narrado. A distância revela que o menino do passado, personagem do menino crescido que escreve, está afastado deste, a ponto de se converter em um ele. E, de certo modo, caracteriza a personagem da literatura como o outro da pessoa.

Tais interpretações refletem em jogos de espelhos a capacidade interpretativa dos leitores. Com isto, conjuram o mistério da verdade histórica existente na novela, evocando um enigma relativo à origem da personagem ou da própria narrativa, que ilumina a origem da carreira do escritor. A fruição que a obra estabelece reve la como a arte, mais do que dar a conhecer uma realidade, constitui uma maneira de configurar o conhecimento, instaurando uma mobilidade de perspectivas. A história urde imaginação e lembrança, numa uma rede de acontecimentos que nada tem de linear, uma vez que a rotina de “miúdas obrigações” será transformada, de modo a revelar “tudo novo e lindo e diferente”. Esta metáfora da mudança na percepção da criança representa, no nível do enunciado, a nova percepção dos leitores, só neste momento capazes de entender as dificuldades de Miguilim em ver com clareza a realidade objetiva, ao mesmo tempo em que se abandona a um mergulho cada vez mais ensimesmado. No plano da textualização autobiográfica, Guimarães Rosa parece demonstrar que a escrita de si de um romancista sempre comporta graus mais concentrados de ficcionalização, e por este motivo, o vivido, ao ser narrado, resulta inédito. Em lugar de deixar evidente a distância entre a realidade e sua representação literária, por meio do desvelamento desta descontinuidade, como feito por Graciliano, Rosa admite e brinca com os limites entre estes constituintes da escrita autobiográfica, incorporando à novela a memória de infância, para deixar clara a inevitável elaboração imaginária da matéria biográfica ao ser narrada.

A apropriação das memórias de infância conforme efetuada por Graciliano Ramos e Guimarães Rosa absorve sentidos bastante diferentes, considerando-se as relações que cada um entretém com seu acervo pessoal de lembranças; o primeiro encaminhou-se para o relato autobiográfico inspirado pela necessidade de denunciar a força da opressão que permeia a sociedade brasileira, o segundo dedicou-se a reinventar fatos vividos e incorporá- los à ficção, guiado pelo interesse em mostrar a permanência da matéria biográfica na literatura de ficção. Neste aspecto, ambos convergem na reelaboração estética do vivido, seja deixando visíveis as marcas que fragmentam o relato, seja demonstrando que a história de vida sofre um processo de seleção e exclusão e, por isso, dela só aparecem fatos esparsos, semeados na ficção.

Em Infância, a fragmentação dá forma literária ao hiato existente entre o vivido e o recordado, entre o lembrado e o narrado, entre o escritor e o menino, enfim, entre vida e obra. No plano do assunto, o rompimento da linearidade capta formalmente a fragmentação do mundo familiar dominado pelo truncamento das relações interpessoais. Aí se manifestam os aspectos mais traumáticos da repressão, dos interditos, do silêncio imposto, das ameaças e castigos. Para ressaltar o isolamento do menino desterrado numa realidade alheia a sua necessidade de construir sentidos, tecer relações lógicas, e formular explicações, a memória aparece como depositária de cenas que reforçam, de preferência aqueles que servem para revelar os piores ângulos da “bárbara educação nordestina”. Mais do que mimetizar a lembrança isolada, o relato de memórias assim produzido deixa ver sua carpintaria, mostrando o avesso de uma tradição de escrita retrospectiva de si modelada pelo costume - hábito e disfarce - romanesco. Os espaços em branco, assim como outras marcas de interrupções no fluxo contínuo do relato constituem as cesuras. Estas imprimem forma estética à hesitação do narrador, para guardar a distância entre verdade factual e invenção ficcional, demonstrando consciência ética e estética sobre o processo de escrita. Visíveis na organização episódica do narrado e percebidas nos cortes metalingüísticos que suspendem a ação narrada, as cesuras impedem a aderência sentimental do leitor à matéria narrada.

Guimarães Rosa recorta um fato biográfico de sua infância, radicalizando ao extremo a fragmentação de sua história de vida, numa evidência do caráter de objeto discursivo de toda narrativa, seja ou não biografia. Seu texto sublinha a rememoração como resgate interessado de imagens do passado, reduzindo com isto o travo confessional que as narrativas do eu pretendiam simular. Em lugar de cesuras, ele constrói com evidentes recursos de ficcionalização, a linha de continuidade entre situações, mostrando que, como afirmou a G. Lorenz: “Toda lógica contém uma boa dose de mistificação.”

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Fonte:
DEISE DANTAS LIMA: "ARTES DA MEMÓRIA: ficcionalização da matéria biográfica e representações do intelectual, em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Literatura Comparada). Niterói, 2006.

Nota
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