Johann Wolfgang Goethe e a obra Fausto

Fausto

Goethe, o Olímpico, (...) disse que Mozart era o único músico capaz de compreender Fausto e de sentir Margarida. (Eça de Queirós)

Para comentários e análises do
Fausto I, utilizamos o livro traduzido por Jenny Klabin Segall, que está editado na versão bilíngüe: português e alemão. Escolhemos esta versão por ser uma das melhores e conter notas do professor Marcus Vinicíus Mazzari e nas análises de Fausto II, utilizamos a versão em português, traduzida também por Jenny Klabin Segall (editora Vila Rica), e a versão alemã da editora Ernest Klett.

Neste estudo, daremos um panorama geral da obra
Fausto e faremos recortes do texto em questão, que serão relevantes para mostrar a intertextualidade com os textos de Eça de Queirós.

Começamos a nossa análise pela cena “Prólogo no céu”, pois nesta cena temos as linhas gerais da tragédia e a visão sobre a humanidade e o mundo dada pelos Arcanjos, por Deus e por Mefistófeles. O prólogo se mostra fundamental como premonição para o desenlace de toda a tragédia, à medida que se pode observar nesta cena a insinuação da redenção de Fausto, que ocorrerá na segunda parte da peça. Tal redenção já é antevista pelo Senhor ou Altíssimo:

Wenn er mir jetzt auch nur verworren dient,
So werd’ich ihn bald in die Klarheit führen.
Se em confusão me serve ainda agora,
Daqui em breve o levarei à luz.
(GOETHE, 2004:53)

Nesta cena temos, também, um diálogo intertextual com o mito bíblico de Jó, no qual o Diabo tem a permissão divina para “tentar” o servo de Deus. No
Livro de Jó, o diabo apresenta-se ao Senhor, junto com os filhos de Deus, e desafia a fé que Jó tem em Deus. O diabo diz para o Senhor que se ele perdesse tudo, com certeza amaldiçoaria Deus. Então, Deus dá permissão ao diabo para provar a fé de Jó e este tira a riqueza deste e o deixa doente. Depois disso, o diabo acredita na fé do servo de Deus e diz a este que mesmo nesta terrível situação, Jó nunca amaldiçoou Deus.

No livro de Jó, o diabo é chamado como sendo um dos filhos de Deus e no
Fausto de Goethe temos Mefistófeles presente na convocação promovida por Deus, no prólogo.

Podemos perceber o diálogo que a obra de Goethe faz com a tradição bíblica, no fato de que em ambos os textos o diabo é recebido sem qualquer antagonismo. E em ambas as histórias o diabo recebe permissão divina para colocar os servos de Deus à prova.

A cena “Prólogo no céu” de
Fausto começa com três dos Arcanjos: Miguel, Gabriel e Rafael curvando-se ante o Senhor. Eles estão cantando a música das esferas, em adoração a Deus. E Goethe, apresenta o Arcanjo Gabriel dizendo:

Und schnell und unbegreiflich schnelle
Dreht sich umher der Erde Pracht;
Es wechselt Paradieseshelle
Mit tiefer, schauervoller Nacht;
E em ronda arrebatada e eterna
Gira o esplendor do térreo mundo;
Radiante luz do céu se alterna
Com mantos de negror profundo;
(...)
(GOETHE, 2004:49)

Nestas palavras de Gabriel, vemos a noção de polaridade – luz e escuridão - fazendo parte de uma unidade, isto é, são forças complementares, que produzem o movimento da criação. Podemos notar nestas palavras de Gabriel que, para os Arcanjos, o mundo feito por Deus é composto de forças polares opostas, mas em perfeita harmonia. Depois do canto individual de cada um dos três Arcanjos, temos a opinião conjunta dos três, afirmando que desde o primeiro dia, a obra divina se movimenta em perfeita harmonia.

Em seguida à opinião dada pelos Arcanjos sobre a criação, temos a visão de Mefistófeles sobre o homem:

Von Sonn’ und Welten Weiss ich nichts zu zagen,
(…)
Ein wenig besser würd’ er leben,
Hättst du ihm nicht den Schein des Himmelslichts
gegeben;
Er nennt’s Vernunft und braucht’s allein,
Nur tierischer als jedes Tier zu sein.
Er scheint mir, mit Verlaub von Euer Gnaden,
Wie eine der langbeinigen Zikaden,
Die immer fliegt und fliegend springt
Und gleich im Gras ihr altes Liedchen singt;
Und läg’ er nur noch immer in dem Grase!
In jeden Quark begräbt er seine Nase.
De mundo, sóis, não tenho o que dizer,
(...)
Viveria ele algo melhor, se da celeste
Luz não tivesse o raio que lhe deste;
De razão dá-lhe o nome, e a usa, afinal,
Pra ser feroz que todo animal.
Parece, se o permite Vossa Graça,
Um pernilongo ganhafão que esvoaça
Saltando e vai saltando à toa
E na erva a velha cantarola entoa;
E se jazesse ainda na erva o tempo inteiro!
Mas seu nariz enterra em qualquer atoleiro.
(GOETHE, 2004:51)

Vemos nesta formulação, a opinião de Mefistófeles, que se contrapõe a dos Arcanjos. Ele não tem comentário a fazer sobre o mundo “de mundo sóis não tenho o que dizer”, mas percebe como o homem, “o pequeno Deus da terra” se atormenta desde o primeiro dia. A raiz desse tormento está no fato de o homem ter recebido a razão como dádiva do Senhor. Segundo Mefisto, a luz divina, chamada pelo homem de razão (“de razão dá-lhe o nome”), em lugar de ser um benefício, faz com que fique cada vez mais animalesco: “e a usa, afinal,/ Para ser feroz mais que todo animal”. Assim, movido pela razão, o homem anseia pelo infinito (“gafanhão que esvoaça/Saltando e vai saltando à toa”) para, infeliz, terminar por enterrar o nariz na terra, a única dimensão destinada ao ser humano. Diante de tantas críticas sobre a organização do mundo, Deus pergunta se Mefistófeles não acha nada direito na terra, ao que ele responde:

Nein, Herr! Ich find’es dort, wie immer, herzlich
schlecht.
Die Menschen dauern mich in ihren Jammertragen,
Ich mag sogar die armen selbst nicht plagen.

Não mestre! Acho-o tão ruim quão sempre; vendo-o
assim
Coitados! Em seu transe de homens já lamento,
Eu próprio, até, sem gosto os atormento.
(GOETHE, 2004:53)

Mefistófeles demonstra sentir pena dos mortais, pois não crê na harmonia da criação, já que os homens, apesar de ansiarem pelo infinito, estão presos ao mundo finito e por isso, segundo ele, em desarmonia com o mundo criado por Deus.

Para se contrapor a Mefisto, o Senhor “põe em jogo” Fausto, a quem chama de seu servo “Meinen Knecht!/ Meu servo, sim!” (GOETHE, 2004:53) . Podemos ver, pelo argumento do Senhor, que a divindade lança mão de um representante de seu mundo, “seu servo” Fausto, para provar a perfeição da criação. Assim, Fausto personifica, nesta tragédia, toda a humanidade. Mefistófeles, conhecendo e reconhecendo Fausto, descreve a personalidade do “servo” do Senhor através das forças antagônicas e extremas que caracterizam sua alma:

Fürwahr! Er dient Euch auf besondere Weise.
Nicht irdisch ist des Torentrank noch Speise.
Ihn treibt die Gärung in die Ferne,
Er ist sich seiner Tollheit halb bewusst;
Vom Himmel fordert er die schönsten Sterne
Und von der Erde jede höchste lust,
Und alle Näh’und alle Ferne
Befriedigt nicht die tiefbewegte Brust.

De forma estranha ele vos serve, Mestre!
Não é do louco, a nutrição terrestre.
Fermento o impele ao infinito,
Semiconsciente é de seu vão conceito;
Do céu exige o âmbito irrestrito
Como da terra o gozo mais perfeito,
E o que lhe é perto, bem como o infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito.
(GOETHE, 2004:53)

Mefisto, mais uma vez, contesta e ironiza a escolha do Senhor, mostrando que o “servo” tem uma maneira muito peculiar de honrar a divindade; “De forma estranha ele vos serve, Mestre!”. Segundo Mefistófeles, O homem (Fausto) quer o infinito, mas também todas as coisas boas da terra. Nada o contenta, fazendo com que sua alma permaneça em conflito.

O Senhor, quase que resignado, tem que admitir que o homem erra, mas que, na luta e procura durante toda a existência, na sua aspiração infinita, acaba caminhando instintivamente para a luz:

Wenn er mir jetzt auch nur verworren dient,
So werd’ich ihn bald in die Klarheit führen.
Weiss doch der Gärtner, wenn das Bäuchen grunt,
Dass Blüt’ und Frucht die künft’gen Jahre zieren.

Se em confusão me serve ainda agora,
Daqui em breve o levarei à luz.
Quando verdeja o arbusto, o cultor não ignora
Que no futuro fruto e flor produz.
(GOETHE, 2004:53)

Eis aqui o indício de que Fausto, como representante da humanidade, será salvo. O Senhor está ciente de que Fausto o serve de maneira confusa, admite os erros cometidos pelo homem, mas assegura a Mefistófeles que levará o homem para a Luz. “Daqui em breve o levarei à luz.”

Mefistófeles, então, para provar seus argumentos, pede para conduzir Fausto pelo seu caminho e propõe a aposta para Deus:

Was wetter Ihr? Den sollt noch verlieren,
Wenn Ihr mir die Erlaubnis gebt,
Ihnmeine Strasse sacht zu führen!

Que apostais? Perdereis o camarada;
Se o permitirdes, tenho em mira
Levá-lo pela minha estrada!
(GOETHE, 2004:55)

Deus, convicto de que o ser humano o serve, mesmo que por caminhos tortuosos, aceita a aposta e esclarece a causa dos erros do homem:

Ein guter Mensch in seinem dunklen Drange
Ist sich des rechten Weges wohl bewusst.
Que o homem de bem, na aspiração que, obscura, o
anima,
Da trilha certa se acha sempre par.
(GOETHE, 2004:55)

O Senhor vê a sua obra como perfeita, pois o homem erra porque anseia por “algo”, e esses erros fazem parte do aprendizado, contudo, está consciente do caminho certo: “Da trilha certa se acha sempre par”. Portanto, o Senhor permite que Mefisto conduza o homem por seus caminhos e que o desvie da sua “fonte inata”, na certeza de que homem, mesmo no seu “ímpeto obscuro”, é “bom”.

A cena “Prólogo no céu” termina com a fala de Mefistófeles:

Es ist gar hübsch von einem grossen Herrn,
So menschlich mit dem Teufel selbst zu sprechen.
É de um grande Senhor, louvável proceder
Mostrar-se tão humano até para com o demônio.
(GOETHE, 2004:57)

Nestas palavras de Mefisto, vemos a originalidade de Goethe, que mostra um relacionamento amigável entre Deus e o demônio, o que é lógico dentro da obra, já que o Senhor criou tudo e crê que toda a sua obra está em harmonia. Então, não poderia proceder de outra forma com Mefisto, que é parte de sua criação. A primeira aposta da tragédia está feita, e o demônio tem a permissão divina para tentar Fausto.

A segunda aposta da tragédia de Goethe acontece na cena “Quarto de Trabalho”. Agora a aposta se realiza entre Fausto e Mefisto. O diabo irá tentar satisfazer o homem, à medida que o conduz por seus caminhos. Nos termos dessa nova aposta, Mefistófeles será declarado vencedor se Fausto, em meio a sua busca titânica, encontrar um momento de satisfação, um momento tão pleno que ele não queira passar para o momento seguinte, como mostra o diálogo entre Fausto e Mefistófeles:

Faust: Werd’ich beruhigt je mich auf ein Faulbert legen,
So sei es gleich um mich getan!
Kannst du mich schmeicheld je belügen,
Dass ich mir selbst gefallen mag,
Kannst du mich mit genuss betrügen,
Das sei für mich der letzte Tag!
Die Wette biet’ich!
Mephistopheles: Topp!

Fausto: Se eu me estirar jamais num leito de lazer,
Acabe-se comigo, já!
Se me lograres com deleite
E adulação falsa e sonora,
Para que o próprio Eu preze e aceite,
Seja-me aquela a última hora!
Aposto! E tu?
Mefistófeles: Topo!
(GOETHE, 2004:169)

Segundo Eloá Heise, “o cerne da aposta com o diabo reside no desafio de conseguir que Fausto, satisfeito, diga ao momento ‘permaneça tão belo que és’ e deite-se, assim, numa ‘cama de preguiça’, ou seja, interrompa sua ação, paralise-se através da inércia.” (HEISE, 2001: 53)

A mesma interpretação é dada por Jaeger (2004)13:

A criação genial de Goethe consiste numa variação do velho assunto fáustico, que ele configura como caricatura do ideal moderno de progresso e dinamismo. Fausto obriga-se pelo pacto a um movimento incessante, vertiginoso, e, se ele parar por um instante, se conceder a si mesmo um momento de reflexão, terá perdido a própria aposta e a própria vida. Não cansamos de admirar a exatidão “simográfica”, as qualidades clarividentes do texto goethiano.

Desta forma, segundo Heise, acordados os termos da aposta, Fausto, conduzido pelo diabo, irá procurar plenitude através de experiências do “pequeno mundo” (Fausto I) e do “grande mundo” (Fausto II), sem encontrar satisfação. Poder, riqueza, realizações, fama, sexo, etc. nada, contudo, nunca o satisfaz.

No fim da primeira parte da tragédia, Fausto está com o espírito quebrantado pela desgraça que, por sua causa, abateu-se sobre Margarida, sua infeliz amante. A personagem, involuntariamente, mata a mãe e, enlouquecida por ter sido abandonada por Fausto, torna-se também assassina do próprio filho e é condenada à morte, mas entrega sua alma ao Senhor obtendo a sua salvação:

Dein bin ich, Vater! Rette mich!
Ihr Engel! Ihr heiligen Scharen,
Lagert euch umher, mich zu bewahren!
Sou tua, Pai no eterno trono!
Salva-me! Anjos, vós hoste sublime,
Baixai ao meu redor, cobri-me!
(GOETHE, 2004:521)

Nos episódios que compõem o Fausto II, (após a morte e salvação da Margarida em Fausto I), Mefisto continua em sua tarefa de tentar satisfazer a Fausto. Tenta-o, inicialmente, com poder e fama. Fausto torna-se conselheiro do imperador. Mas, também, isso não o satisfaz. Atendendo ao desejo do imperador, Fausto consegue materializar, por meio da magia, as figuras de Paris e Helena, como representantes da beleza. Sente-se arrebatado pela beleza de Helena e anseia por possuí-la, mas essa miragem mágica desaparece ao seu toque. Sua fantasia conseguira ultrapassar as fronteiras da realidade e criara, na arte, uma realidade supra-real, na figura de Helena. O ponto central do Fausto II é o casamento de Fausto com Helena. Nessa relação estaria simbolizada a união do mundo da fantasia a da beleza (Helena) com o homem moderno, na sua procura incessante de conhecimento e de ação (Fausto). Mas o mundo da fantasia é o mundo do sonho, um mundo aparente, do qual Fausto irá despertar. Assim fama e beleza não o conduzirão ao conhecimento absoluto. Com o tempo Fausto vai ficando paulatinamente mais amadurecido percebendo que, como homem, não está fadado a penetrar na mais profunda compreensão da existência.

No fim da vida, já velho, invoca as forças diabólicas sob seu comando para criar uma região, emergi-la do mar e fazer uma Nova Terra. Ele sonha com uma utopia, pretendendo que este seja um lugar de um povo livre que habite esta terra em fraternidade, esforçando-se conjuntamente para conquistar esta liberdade. Quando, por fim, tem a miragem do objetivo a ser alcançado, está cego, velho e desiludido.

E ao se dedicar a um projeto que visa trazer liberdade e fraternidade para milhões de pessoas, enche-se de alegria. Convence-se, finalmente, que isso poderia ser o vislumbre de um ideal. E com a vontade de ver o resultado de suas obras, ele quer reter a visão até que tudo esteja completado e seu ideal convertido em realidade. Diante da visão da terra surgindo do mar e o povo vivendo em fraternidade, ele parece proferir as palavras emblemáticas do seu pacto com Mefistófeles:

Nur der verdient sich Freiheit wie das Leben,
Der täglich sie erobern muss.
Und so verbringt, umrungen von Gefahr,
Hier Kindheit, Mann und Greis sein tüchtig Jahr.
Solch ein Gewimmel möcht’ ich sehn,
Auf freiem Grund mit freiem Volke stehn
Zum Augenblick dürft’ ich sagen: (grifo nosso)
Verweile doch, du bist schön!
Es kann die Spur von meinem Erdetagen
Nicht in Äonen untergehn. –
Im Vorgefühl von solchem hohen Glück
Geniess’ ich jetzt den höchsten Augenblick.
(GOETHE, 1981:220)
À liberdade e à vida só faz jus
Quem tem de conquistá-las diariamente.
E assim, passam em luta e destemor,
Criança, adulto e ancião, seus anos de labor.
Quisera eu ver tal povoamento novo,
E em solo livre ver-me em meio a um livre povo.
Sim, ao momento então diria:
Oh! pára enfim – és tão formoso!
Jamais perecerá de minha térrea via,
Este vestígio portentoso! –
Na ima presciência desse altíssimo contento,
Vivo ora o máximo, único momento.
(GOETHE, 1991: 436)

Pelos termos da aposta, quando Fausto proferisse estas palavras, teria dado a vitória a Mefistófeles. Contudo, há uma pequena nuança semântica no dístico emblemático, Fausto usa o verbo no condicional, isto é, este momento era tão maravilhoso que ele “diria: / Oh! pára enfim – és tão formoso!”. Em alemão, o uso da forma verbal no conjuntivo II “Dürft’ ich sagen” expressa, mais claramente, essa idéia de possibilidade, mas de irrealidade, algo não concretizado. Portanto, esse momento pleno existe no plano do irreal. Sob este aspecto, Mefisto não vence a aposta; Fausto não será condenado à danação dos infernos.

Um outro fator importante de sua redenção é que Fausto não desejaria deter a marcha do tempo com o objetivo de desfrutar os prazeres sensuais, nem de satisfazer desejos apenas pessoais, como foi combinado anteriormente na aposta. Ele desejaria deter a hora que passava para a realização de um ideal altruístico. Por conseguinte, está realmente livre de Mefistófeles. Em seguida, uma batalha entre as forças angélicas e as forças demoníacas termina finalmente com o triunfo das primeiras, que conduzem a alma de Fausto: Chorus Mysticus:

Alles Vergängliche
Ist nur ein Gleichnis;
Das Unzulängliche,
Hier wird’s Ereignis;
Das Unbeschreibliche,
Hier ist’s getan;
Das Ewig-Weibliche
Zieht uns hinan.

(GOETHE, 1982:236)
Tudo o que é efêmero é somente
Preexistência;
O Humano-Térreo-Insuficiente
Aqui é essência;
O Transcendente-Indefinível
É fato aqui;
O Feminil-Imperecível
Nos ala a si.
(GOETHE, 1991:451-2)

Nesta estrofe o Chorus Mysticus diz que “Tudo o que é efêmero é somente / Preexistência”. Quer dizer, as formas materiais que estão sujeitas à morte são apenas uma ilusão. “O Transcendente-Indefinível/ É fato aqui”, isto é, o que pareceu impossível na Terra é consumado no céu.

A tragédia que começa no céu, onde foi dada permissão a Mefistófeles para tentar Fausto, também termina no céu, com a redenção do personagem, nos remetendo à idéia de unidade.

Em seu artigo “Goethe: Unidade e Multiplicidade”, Anatol Rosenfeld tenta explicar as crenças de Goethe sobre esta unidade:

“(...) a idéia é o princípio ordenador e unificante e os fenômenos individuais e singulares formam a multiplicidade caótica deste nosso mundo de cores, formas passageiras, aromas e sons. Percebemos um pouco surpreendidos, ao referirmo-nos a este dualismo, que pisamos em terreno platônico. Mas Goethe não era monista, adepto de Spinosa? Sim até certo ponto. Contudo, Spinosa viu as coisas individuais, os modi, dentro da unidade de deus; Goethe viu Deus dentro da multiplicidade das coisas individuais.” Aquele parte da unidade divina e todos os fenômenos singulares nada são senão ondas passageiras no mar do infinito; este parte do fenômeno singular e descobre nele a essência divina” (ROSENFELD, 1993:261)

O legado deixado por Goethe e por seu Fausto, pode ser visto na representação da figura do Diabo, aquele que, sendo integrante de uma unidade dual, tem sempre uma visão crítica e cínica do mundo. O próprio Goethe, em suas conversas com seu secretário Eckermann, chega a admitir que Fausto e Mefisto representam a mesma pessoa na divisão de papéis ficcionais; por outro lado, o autor também vê em si características dessas duas personagens, afirmando que as duas personagens são interpretações dialéticas da personalidade do poeta. Um diabo que não é apenas mau, também é apresentado em uma das obras em evidente diálogo intertextual com o Fausto de Goethe, e que analisaremos adiante. Que se veja, por exemplo, este trecho de O Senhor Diabo: “em certos momentos da história, O Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a lei.” (QUEIRÓS,1951b:169)

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Fonte:
Roberta Rosa de Araújo: "O LEGADO DE FAUSTO NA OBRA DE EÇA DE QUEIRÓS". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do Título de Mestre em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Aparecida de Fátima Bueno). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

Um comentário:

  1. Excelente texto, parabéns! Tive saudade do livro empoeirado na minha estante, vou reler!

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