Leituras e vivência mística de João Guimarães Rosa



Considerar Augusto Matraga como um herói análogo ao herói arquetípico do monomito implica considerá-lo como uma personagem que se inicia em uma jornada de provas e expiações, transfigurando-se em herói ao fim de sua trajetória, por ter conquistado seu galardão e distribuído os benefícios de sua conquista à comunidade. Ao heroísmo mítico, segundo o modelo do monomito proposto por Campbell, vinculamos o conceito de redenção implicado nas doutrinas espiritualistas que, possivelmente, teriam influenciado João Guimarães Rosa até 1946, ano da publicação do texto definitivo de Sagarana.

Nossa hipótese é que o escritor transpôs para o nível fabular a convicção metafísico-religiosa da possibilidade redentora que todos possuem, independente do mal que praticaram. Entendemos, por fim, que essa convicção não se baseia apenas na remissão dos pecados pela graça divina, mas sim pelo desenvolvimento do potencial divino por meio de lutas condutoras ao autoconhecimento. À origem dessa idéia, vinculamos a crença de Guimarães Rosa nos pressupostos espiritualistas do esoterismo, tais como a reencarnação, a escala evolutiva do espírito ao longo de suas reencarnações e a inexistência do acaso e do mal permanente.

Em trabalho inédito no campo dos estudos rosianos, a pesquisadora Suzi Frankl Sperber cotejou os temas metafísicos presentes em quase toda a obra de João Guimarães Rosa com os temas espirituais contidos na biblioteca do escritor, que foi vendida pela família ao IEB (Instituto de Estudos Brasileiros).

Dos 2477 livros encontrados na biblioteca do escritor, Sperber (1976) identificou 200 como sendo de leituras espirituais. Por este termo, a pesquisadora entende as leituras de caráter moral e religioso e não as filosóficas propriamente ditas. Definindo o
corpus de seu trabalho, a autora estabelece quatro etapas ou períodos de leituras:

1— Até 1946, ano da publicação do texto definitivo de
Sagarana;
2— de 1946 a 1956 — ano de publicação de Corpo de Baile e de Grande Sertão: Veredas;
3— de 1956 a 1961 — ano de publicação de Tutaméia;
4— de 1961 a 1967 — ano de publicação de Tutaméia e da morte de JGR. (SPERBER, 1976, p. 19)

Em razão de nosso
corpus ser um conto de Sagarana, ater-nos-emos às leituras da primeira fase, relacionadas aos princípios espirituais que postulamos estar na base da construção de um arquétipo heróico tal como o descrito pelo monomito. Dentre as obras analisadas, Sperber credita às do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento como, possivelmente, as mais antigas leituras de Guimarães Rosa. Os dois livros encontrados datam de 1917 a 1933, sendo a edição mais recente distanciada quatro anos da primeira versão de Sagarana e treze anos da versão definitiva, em 1946.

A autora destaca que os trechos sublinhados nessas duas obras “referem-se enfaticamente ao poder absoluto do indivíduo de espírito livre e independente, dominador do mundo material” (SPERBER, 1976, p. 23). Para comprovar essa assertiva, a autora cita um trecho da Primeira Série de Instruções em que se exorta o iniciado a cultivar a prece mental como fonte inexaurível de forças, a fim de vencer todos os obstáculos interpostos em sua trajetória rumo ao desenvolvimento espiritual.

Sperber ressalta que os contos de Sagarana receberam do esoterismo paulista a influência da crença de que a culpa não existe. Contrariamente, entretanto, segundo a autora, essa influência não se deu no último conto, pois a culpa existe e deve ser purgada. O tema da culpa, aqui, teria origem na influência das leituras dos Evangelhos, o que se comprovaria pela semelhança das personagens com o que ela identifica como “criatural cristão”. Em razão desse “criatural cristão”, juntamente com o conceito de destino, Sperber credita a inserção do
mythos na escritura rosiana:

Em “A Hora e Vez de Augusto Matraga” o destino está ligado à caminhada. E a caminhada de Matraga simboliza purificação e iniciação. Ora, estes temas não são apenas evangélicos, como também míticos. Verifica-se, a par do realismo ficcional, a introdução do mythos na obra roseana. Ora, sabemos que no mundo ocidental o
mythos foi absorvido pelo logos desde a antiguidade grega [...] Vimos a presença do logos em Sagarana. Este tanto poderia ser herança inconsciente, difusa, no mundo ocidental, como poderia ter seu sentido reforçado pelas leituras do esoterismo paulista. Foi o que tentamos mostrar. O esoterismo quer-se doutrina séria, o que é possível por seu caráter cultural de origem eclética. Os Evangelhos apresentam uma doutrina e uma filosofia, que, no entanto, para ser assimilada, aproveitou mitos mediterrâneos, conhecidos dos povos os quais se dirigiam os Evangelhos, primordialmente. A par disto, os Evangelhos procuravam ilustrar os ensinamentos através das parábolas. Para não serem confundidas com a filosofia, as parábolas reconhecem-se como relatos, narrativa. Ora, Guimarães Rosa apresenta em “A Hora e Vez de Augusto Matraga” a superposição de pelo menos estas duas influências. Podemos ponderar que tanto o sentido mítico deste relato, como sua consciência ficcional poderiam ter sido reforçados por uma leitura não literária: Os Evangelhos. Isto provaria que o interesse de Guimarães Rosa nas leituras espirituais respondia a duas necessidades: à pessoal e na busca da transcendência; à profissional, i.e., literária, na conversão das características doutrinárias em processos narrativos. (SPERBER, 1976, p.31-32).

Embora longa, essa citação é fundamental para nossa pesquisa por três razões: a oposição entre
logos e mythos que a autora credita às influências, respectivamente, do esoterismo e dos Evangelhos; a trajetória da personagem vista como mítica e iniciática e a dupla motivação de Guimarães Rosa ao dedicar-se a leituras espirituais.

Em linhas bem genéricas, o que a autora chama de realismo ficcional é a ausência de índices narrativos que sugiram ser as oito narrativas de Sagarana tratadas enquanto texto ficcional. Já em “A Hora e Vez de Augusto Matraga” tal não se dá. Em determinado momento do conto, o narrador afirma ser aquela narrativa inventada: “E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, não é um caso acontecido, não senhor.” (ROSA, 1969, p. 338)

A autora postula a tese de os oito contos de Sagarana terem sofrido maior influência das leituras dos livros do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, ou simplesmente, esoterismo paulista, em razão de o esoterismo “querer-se doutrina séria” e racionalista, além de não reconhecer a culpa e o pecado como são entendidos pelo Judaísmo e pelo Cristianismo. Não entraremos no mérito da questão, por fugir ao escopo de nossa pesquisa. No entanto, não deixamos de entender que o esoterismo também pode ter contribuído para a construção de uma personagem cuja trajetória fosse mítica e iniciática.

Em razão mesmo da crença na imortalidade da alma, o esoterismo, assim como o espiritismo kardecista, cujos preceitos mais adiante também relacionaremos ao ideário de Rosa, concebe a alma humana em uma trajetória rumo à evolução. Entretanto, esta trajetória não é retilínea, podendo ser interrompida em razão do mau uso do livre arbítrio de que o homem goza na escolha entre o bem e o mal. Diferentemente do Judaísmo e do Cristianismo, entretanto, mesmo que escolha a via do mal, a alma não está condenada à expiação eterna no inferno. O inferno é visto como a conseqüência de seus atos, podendo dissipar-se à medida que a alma aproveita outras encarnações, a fim de expiar suas faltas pela prática do bem.

Ainda que não haja nenhum indício da crença na imortalidade da alma, nos moldes preconizados pelo esoterismo ou pelo kardecismo, no conto em que pretendemos sondar as bases para a construção do herói mítico, tal como ocorre em Grande Sertão: Veredas, em que o compadre Quelemém do narrador Riobaldo é espírita kardecista, sendo recomendado por Zé-Bebelo como único capaz de dar um sentido às peripécias vivenciadas pelo ex-jagunço, o que não se pode negar é que há a presença da trajetória iniciática como forma de expurgo das imperfeições da personagem, ainda que seja nos moldes do “criatural cristão”.

Seja por meio da graça cristã ou da expiação ao longo das encarnações, o objeto de busca de Augusto Matraga é a redenção. E o caminho para esta redenção está eivado de provas expiatórias. Ainda que caracterizados segundo atributos cristãos, a história de Augusto Matraga revela os pressupostos espiritualistas sobre a possibilidade de a pior das criaturas tornar-se um ser de luz (para o esoterismo e o espiritismo), ou santo (para o Catolicismo).

No tocante à iniciação, este também é um aspecto ligado ao esoterismo. Tal como as demais sociedades secretas e religiões de mistérios, como o foram o Orfismo e os cultos egípcios a Ísis e a Serápis, o adepto do esoterismo é iniciado à doutrina secreta e ascende a graus de iniciação, segundo o nível de expansão de sua consciência e de sua moral, por meio de práticas litúrgicas e intelectuais de ascese. A esse respeito, são comprobatórias as palavras Antonio Olívio Rodrigues, patrono-fundador da ordem do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento:

Sendo o homem alguma coisa mais do que um simples animal que traja roupas, ele não é um simples joguete da casualidade, mas uma potência; é o criador e o destruidor da casualidade. Por meio de sua energia interior, o homem vencerá a indolência e entrará no Reino da Sabedoria. Então ele sentirá amor por tudo quanto vive e se constituirá num poder inexaurível para o bem de seu próximo. Oferecemos a ‘energia’ que liberta a mente da ignorância, do preconceito, do erro. Queremos incutir valor para que se busque a verdade por todos os modos; amor pelo socorro mútuo; a paz que somente chega à mente iluminada e ao coração aberto, e a consciência de uma vida imortal
(RODRIGUES, apud Círculo..., s.d, p. 11)

Se não podemos negar a influência do cristianismo na representação da trajetória de Augusto Matraga, também não podemos negar os aspectos que a aproximam dos ideais esotéricos. Seja Iluminação por mérito próprio, ou Salvação da alma, por meio da Graça Divina, Augusto Matraga salvou-se (reconheceu ser chegada a sua hora e vez), porque dirigiu seus esforços, segundo seu livre arbítrio, para o cumprimento de um plano de vida diametralmente diferente do seu velho
ethos de fazendeiro tirânico.

Em resumo, é um herói cuja trajetória está dividida nos três momentos constituintes do monomito: partida (quando decide abandonar sua velha vida e ir morar com seus pais adotivos no sítio do Tombador); iniciação (o herói trabalha para os outros, resiste às tentações da violência, abstém-se de bebida e de mulheres, participa de novenas) e retorno (quando salva a vida da família prestes a ser barbarizada por Bem-Bem e se preocupa com o destino da filha e da mulher, pedindo a seu primo que desse a bênção a Mimita, que se perdera na vida, e que tranqüilizasse Dionóra, dizendo a ela que estava tudo bem com a filha).

Platão e Plotino são outras fontes de reconhecida influência na obra de João Guimarães Rosa. O próprio autor, em carta a seu tradutor para o italiano, Edoardo Bizarri, datada de 25 de novembro de 1963, reconhece tal influência, embora ressalve só percebê-la
a posteriori:

Eu mesmo fiquei espantado de ver, a posteriori, como as novelas [de corpo de Baile], umas mais, outras menos, desenvolvem temas que poderiam filiar-se, de algum modo, aos “Diálogos”, remotamente, ou às “Eneadas”, ou ter nos velhos textos hindus qualquer raizinha de partida. Daí as epígrafes de Plotino e de Ruysbroeck
. (BIZZARRI, 1980, p. 57-58)

Em outra carta a Edoardo Bizarri, datada de quatro de dezembro de 1963, Guimarães Rosa deixa entrever nitidamente a doutrina de Platão ao descrever a maneira pela qual concebe suas obras:

[...] Eu quando escrevo um livro, vou fazendo como se estivesse “traduzindo”, de algum alto
original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das idéias”, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa “tradução”. Assim quando me “re”-traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara... [...] (BIZARRI, 1980, p.63-64)

Guimarães Rosa reconhecia que parte de sua criação provinha de origem misteriosa. Tal convicção, talvez, o tenha levado a ser tão generoso com seus tradutores, não fazendo questão de que se ativessem ao pé da letra e, até mesmo, auxiliando-os em um trabalho de “co-tradução”. Assim se deu especialmente com seus tradutores para o alemão e para o italiano, como atestam as inúmeras cartas trocadas e, posteriormente, editadas em livros. Mais adiante transcreveremos depoimentos do escritor sobre sua experiência com fenômenos sobrenaturais.

Obras como o
Fédon, o Fedro e A República, dentre outros livros de Platão, foram encontradas na biblioteca do escritor. As três primeiras contêm o pensamento do filósofo grego sobre a imortalidade da alma e da reencarnação. Sobretudo no livro décimo de A República, onde Sócrates conta a Glauco a história que ouvira do valoroso soldado Er, o Armênio, que tendo morrido em combate, após peregrinar pelo outro mundo, tem a permissão de voltar à vida e narrar aos homens o que vira, a fim de alertá-los a ter uma conduta virtuosa, para que fossem felizes, tanto no além, quanto em suas vidas futuras.

O conceito de reencarnação contido na
República muito se assemelha à reencarnação conforme concebe o kardecismo. A reencarnação, segundo a doutrina do espiritismo kardecista, é a condição para que a alma evolua por meio de sucessivas oportunidades de aprendizado do bem e de expurgo do mal, ao longo de vidas sucessivas. Enfatizamos que este conceito não deve ser comparado à metempsicose dos hindus e budistas e da própria doutrina de Platão. Na metempsicose, um ser humano pode reencarnar em corpos de animais como forma de purgar seus pecados. Cabe lembrar que, para o Budismo, a reencarnação é malvista, pois se associa a um ciclo interminável de sofrimento até que seja interrompido pelo nirvana. Isso implica que o estágio de iluminação não depende da escala progressiva de aprendizado e sofrimento ao longo das sucessivas vidas, mais sim da capacidade de o homem atingir o nirvana segundo técnicas especiais de meditação e autoconhecimento.

Segundo o kardecismo, o estágio evolutivo pode estacionar, mas regredir nunca. Assim, um ser humano não pode reencarnar em um animal. Os kardecistas esposam a crença na evolução não só do homem, como também de todos os reinos da natureza. A reencarnação não é encarada como um fadário, mas sim como uma demonstração da infinita bondade e equanimidade de Deus para com suas criaturas, ao permitir a todos a possibilidade de evolução segundo o mérito de cada um. Não há um inferno em que as almas purgam eternamente seus males. O mal é um estado transitório da alma.

De acordo com a pesquisadora Suzi Sperber Frankl, somos levados a crer que o contato de Guimarães Rosa com os conceitos de reencarnação, evolução espiritual, ascese, por meio de reza e meditação, se deu, primeiramente, por intermédio do esoterismo. Para nós, esse é um dado relevante, por ser de ordem cronológica. A propósito, foram encontrados na biblioteca do escritor
O Livro dos Espíritos, que deu origem ao kardecismo, além de dois livros do médium Francisco Cândido Xavier. A edição de O Livro dos Espíritos, encontrada na biblioteca do escritor, data de 1954, enquanto os dois livros de Francisco Candido Xavier não possuem data.

Pela edição de
O Livro dos Espíritos encontrado não podemos afirmar que Guimarães Rosa tivesse conhecimento do kardecismo por intermédio desta obra, pois a data desta edição é posterior à data de publicação de Sagarana, em 1946. Mas também não podemos afirmar o contrário, pois como ressalva Sperber (1976) não se pode afirmar que a biblioteca do escritor contivesse todos os livros que lera, uma vez que perdeu livros, deu outros e leu livros emprestados por amigos ou em bibliotecas. O que não se pode negar, porém, é o contato do escritor com a filosofia espírita bem antes da publicação de Sagarana.

Vilma Guimarães, filha do escritor, em biografia de seu pai, confirma nossa suspeita de que o escritor mineiro conhecesse o espiritismo antes mesmo da publicação de
Sagarana. A biógrafa relata a amizade que o escritor travara com o médium e raizeiro Manuel Carvalho, no tempo em que exercera a medicina na cidade de Itaguara:

Papai e Manoel Carvalho costumavam ter longas conversas sobre filosofia espiritualista. Muito se respeitavam, o médico e o raizeiro-receitador. Numa das cartas a ele endereçada, meu pai começa com uma saudação kardecista. Assina dr. Guimarães Rosa, porque, naquela época, era costume antepor o título de doutor ao nome nas assinaturas.
(ROSA, 2008, p. 402)

A filha do escritor cita, ainda, um trecho do ensaio intitulado Guimarães Rosa, o místico, de autoria do escritor mineiro David de Carvalho, que informa sobre a relação de amizade de Guimarães Rosa, o médico, e Manoel Carvalho, o raizeiro:

Até mesmo com raizeiros e receitadores, João Guimarães Rosa passa a conviver em harmonia, numa atmosfera de respeito e compreensão: então faz-se amigo de Manoel Carvalho, residente nos Gentios, e que receita. João Guimarães Rosa compreende-o e julga-o de utilidade a uma gente marginalizada, distante do médico, da farmácia, quanto mais que Manoel Carvalho é bem intencionado e possui uma biblioteca sadia, fato mais engrandecido se considerarmos a época e as circunstâncias. A par de compêndios de ensinamento médicos, se encontram também vários livros de inspiração espírita: A grande síntese, de Pietro Ubaldi, e Depois da Morte, de Leon Dénis
. (CARVALHO, apud ROSA, 2008, p. 402)

É bastante provável que o contato com a filosofia kardecista tenha se dado por intermédio da amizade do escritor com o amigo Manoel Carvalho. Em carta endereçada ao amigo espírita, datada de 1933, Guimarães Rosa expõe sua opinião sobre um livro espírita ofertado pelo amigo: “Tenho commigo o livro ‘Depois da Morte’, de Leon Dénis, que me offereceram. É o livro mais bello e consolador que já me veio às mãos” (ROSA, 2008, p. 405)

A apreciação do livro de Leon Dénis é significativa. Leon Dénis foi o sucessor de Allan Kardec. Em suas obras, o espírita francês expõe o princípio kardecista sobre a evolução do espírito. Criado simples e ignorante, o espírito, segundo seu livre arbítrio, percorre uma senda evolutiva ao longo das encarnações sucessivas, rumo à suprema evolução. Este princípio implica, a nosso ver, o princípio evolutivo que subjaz à trajetória do herói do monomito, o qual tem de percorrer uma trajetória iniciática até ser glorificado.

Porém, é o próprio Guimarães Rosa que surpreende críticos e leitores ao confessar a participação do sobrenatural na origem de sua arte, nas colunas do jornal “O Estado de Minas” (edição de 26 de novembro de 1967). Apesar de longa, em razão de seu conteúdo inusitado, vale a pena transcrevermos a entrevista de Guimarães Rosa, contida no livro de Rizzini (1992):

Tenho de segredar que embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. No plano da arte e da criação de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza decerto se propõem mais essas manifestações. Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir.
À Buriti (NOITES NO SERTÃO), por exemplo, quase inteira, “assisti”, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois (SAGARANA), recebia-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerava definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la” como se fosse uma bola vinda ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (MANUELZÃO E MIGUILIM) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de fato um conto, para o qual soubesse um menino morador à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatus; entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. O tema de O recado do Morro (NO URUBUQUAQUÁ, NO PINHÉM) se formou aos poucos, em 1950, no estrangeiro, avançando somente quando a saudade me obrigava, e talvez também sobre razoável ação de vinho ou conhaque. Quanto ao GRANDE SERTÃO: VEREDAS, forte coisa e comprida demais seria crer como foi ditado, sustentado e protegido — por forças ou correntes muito estranhas. Aqui, porém, o caso é um romance, que faz anos comecei e interrompi (Seu título: A Fazedora de Velas). Decorreria, em fins do século passado, em antiga cidade de Minas Gerais, e para ela fora já ajuntada e meditada à massa de elementos. O teor curtido na idéia, riscado o enredo em gráfico. Ia ter, principalmente, cenário interno, num sobrado, do qual — inventado fazendo realidade cheguei a conhecer todo canto e palmo. Contava-se na primeira pessoa, por um solitário, sofrido, vivido, ensinado. Mas foi acontecendo que a exposição se aprofundasse, triste, contra meu entusiasmo. A personagem, ainda enferma, falava de sua doença grave. Inconjurável, quase cósmica, ia-se essa tristeza passando para mim, me permeava. Tirei-me, de sério medo. Larguei essa ficção de lado. O que do livro havia, e o que a ele se referia, trouxe-se em gaveta. Mas as coisas impalpáveis andavam já em movimento. Daí a meses, ano e meio, ano — adoeci; e a doença imitava, ponto por ponto, a do Narrador! Então? Más coincidências destas calam-se com cuidado, em claro não se comentam. Outro tempo após, tive de ir, por acaso, a uma casa — onde a sala seria, sem toque ou retoque, a do romance sobrado, que da imaginação eu tirara e decorara, visualizado freqüentando-o por ofício. Sei quais foram, céus, meu choque e susto. Tudo isto é verdade. Dobremos de silêncio. (ROSA apud RIZZINI, 1992, p. 203-204)

Essa declaração de Guimarães Rosa é mais do que um mero dado biográfico. Entendemos que ela emblematiza a vivência mística do escritor. Curiosamente, os insólitos relatos de Rosa não têm recebido a atenção aprofundada dos críticos quando enfrentam o problema da gênese de sua obra. As declarações do escritor suscitam importantes revisões sobre sua intencionalidade ao conceber suas obras, bem como sobre a influência das crenças metafísicas e da vivência de fatos insólitos como elementos igualmente reveladores acerca da gênese de grande parte da produção artística de Guimarães Rosa.

Em que pese a existência de trabalhos como os de Suzi Sperber, acerca da influência de leituras espirituais no temário do escritor, bem como trabalhos que procuram identificar a simbologia dos conceitos alquímicos no enredo de obras como Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, as declarações do escritor, em si, ainda estão à espera de pesquisas que não se atenham simplesmente à descrição deste ou daquele aspecto esotérico ou religioso verificado nesta ou naquela obra, mas sim que aborde as declarações do autor segundo um método condizente com o enfrentamento do problema. Entretanto, este método envolveria áreas do conhecimento ainda muito malvistas pela tradição acadêmica da crítica literária.

Estas áreas, execradas pela exacerbação do cientificismo nos estudos literários, envolveriam conceitos da psicologia analítica e da parapsicologia, em consórcio com métodos provenientes da crítica genética e com o estudo aprofundado das declarações do autor sobre a sua própria obra, além do cotejo exaustivo da obra do autor com as doutrinas espiritualistas, que comungou ou simplesmente estudou.

O elo entre a arte e a religião é tão forte na produção literária de Guimarães Rosa, como atestam os dados biográficos, além das passagens flagrantes em muitos momentos de suas narrativas, que uma das maiores críticas de sua obra, Walnice Nogueira Galvão reconhece ser impossível analisar sua obra “prescindindo do auxílio dos estudos da religião” (GALVÃO, 2008, p.131). No que tange a nosso
corpus, a crítica afirma que, mais do que qualquer outra obra, a religião insinua-se como elemento plasmático do enredo:

Temos ali um conto cujo tema é a conversão, bem no sentido arquetípico em que o é, por exemplo, a conversão de São Paulo no caminho de Damasco. Esse arquétipo da conversão como epifania, ou iluminação súbita que como um relâmpago abre os olhos do pecador e o encaminha para a salvação, aparece invariavelmente ao longo dos séculos, em toda a hagiografia que o cristianismo nos habituou. As histórias maravilhosas de pessoas más que de repente, por milagre da graça de Deus, se tornam boas e se entregam à penitência por seus pecados, atravessa toda a crônica, assinalando as vidas de incontáveis mártires. A oportunidade de ir para o céu surgirá para o protagonista através do martírio: encerra-se a hagiografia, uma biografia exemplar de santo e mártir
(ROSA, 2008, p. 132).

Não o que se discutir sobre a analogia existente entre a história de Augusto Matraga e o martirológio cristão. Nem mesmo de se discutir as analogias com a Paixão de Cristo como demonstram os estudos de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1975), em artigo intitulado
A Vontade Santa.

Neste artigo, a estudiosa aproxima a trajetória do herói à trajetória de Cristo: “Guimarães Rosa faz a aventura do herói seguir o evangelho de Cristo em seus grandes tempos: Advento, Paixão e Ressurreição” (FRANCO, 2001, p. 96).

O Advento se quando o coronel arbitrário e violento é bruscamente despojado de suas posses e abandonado por sua família e por seus comandados, em decorrência de seus próprios atos, além de ser quase morto, no episódio da tortura que sofre de seus ex-capangas.

A partir daí começa a surgir um indivíduo em franca oposição ao coletivo. É contra as injunções da vida social, permeada pela arbitrariedade e pela violência extremas, no sertão brasileiro, que o herói irá entregar-se em acirrado combate, iniciando-se, assim, sua Paixão:

Do caos se inicia a criação do homem Nhô Augusto. No princípio; sua figura tem contornos dados pelo que houve antes e fora de si mesma. Nesse tempo, em sua longa espera, Matraga é
família e é propriedade. “É Estêves. Augusto Estêves, filho do coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco da Embira.” Apenas desse modo existe Matraga, por obra e graça de sua colocação no mundo e por este fato se distingue dos outros seres que também o habitam. Mas nada, essencialmente, diferencia cada indivíduo – nhô Augusto inclusive - o universo originário do arraial da Vigem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici. (FRANCO, 2001, p. 96).

Com o firme propósito de ir para o Céu, Nhô Augusto impõe-se uma vida dedicada aos outros. Trabalhando arduamente, ainda enfrenta o desprezo de quem o conhecera (no encontro com Tião da Thereza) antes de quase ser morto por seus capangas, e também a tentação de engajar-se no bando de Joãozinho Bem-Bem.

Resiste recorrer às atitudes violentas de outrora, despertadas pelo desejo de vingar a morte do leal servidor Quim Recadeiro, assassinado pelos capangas do Major Consilva ao tentar vingar a acreditada morte do patrão; e também pelo desejo de “lavar a honra da filha” que, ao fugir com um mascate, perde-se na vida. Além disso, Nhô Augusto assume a defesa de uma família que nem conhecia, em combate mortal com Joãozinho Bem-Bem.

Morto o opositor e gravemente ferido, após a sua morte, o protagonista torna-se o mito Matraga, o santo anacoreta que se imolou em combate mortal em favor dos fracos e oprimidos, mas ainda vivo na memória do povo. Esta parte corresponderia à Ressurreição.

As análises de Galvão (2008) e Franco (2001) não se opõem à idéia de uma trajetória heróica constituída por provas iniciáticas que modelarão o caráter mítico do herói. Seja considerado um santo ou uma “imitação de cristo”, o fato é que o herói, anteriormente mau, ascende a um
status compatível com o processo de evolução espiritual.

Preferimos, entretanto, desconfiar que a homologia existente entre a trajetória de Matraga e o “criatural cristão”, identificado por Sperber (1976), seja explicada de forma cabal pela influência haurida por Rosa nas leituras dos Evangelhos. Para nós, trata-se da idéia de possibilidade evolutiva que todos possuem, desde que queiram. Endentemos que o mito de Matraga esteja a serviço de um engajamento espiritual do escritor. Em outras palavras, cremos que a história de Augusto Matraga serve como uma metáfora sobre o potencial evolutivo da alma.

Nossa hipótese de um “engajamento espiritual”, consciente ou semi-consciente, reforça-se pela influência das crenças metafísicas de Guimarães Rosa. Estas crenças, como vimos, podem ser amplamente rastreadas tanto no depoimento dos amigos, quanto nos livros lidos contidos em sua biblioteca, quanto em suas entrevistas e declarações.

Em entrevista concedida em 1965, em Gênova, ao crítico alemão Günter Lorenz, por ocasião do Congresso dos Escritores Latino-americanos, Guimarães Rosa faz importantes revelações sobre a função de sua arte (justificando o que chamamos de engajamento espiritual), além de mencionar a influência da Alquimia em seu ideário.

Nessa entrevista, o escritor declara não gostar de política da forma como ela é concebida. Seu conceito de política é metafísico. Para Rosa, a missão do escritor é mais importante do que o engajamento político, pois seu foco deve concentrar-se no homem. Na seqüência da entrevista, o autor faz nova relação de suas convicções metafísicas, explicitando, desta vez, sua crença na reencarnação:

Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre novo pedaço de infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa
. (Lorenz, 1983, p. 72)

Falando sobre seu credo, o autor externa a crença na inexistência do mal absoluto, coerentemente com as doutrinas espiritualistas estudas por ele:

Apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é minha mística. [...] Provavelmente, eu seja como meu irmão Riobaldo. Pois o diabo pode ser vencido simplesmente, porque existe o homem, a travessia para a solidão, que equivale ao infinito.
(LORENZ, 1965, p. 73)

Notamos aqui a influência dos postulados espíritas e esotéricos que reconhecem o mal enquanto um estágio temporário, fruto da ignorância do homem que não despertou para o chamado da ascese espiritual. São as palavras do escritor que nos autorizam compreender o enredo de
A Hora e Vez de Augusto Matraga mais como uma metáfora de iluminação espiritual por meio da correção do caráter, do que, simplesmente, um arquétipo de conversão nos moldes de hagiografia medieval. Vale lembrar que, a despeito de Nhô Augusto ter se sacrificado em prol do próximo, ele também matou com satisfação:

E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos — Ô gostosura de fim-de-mundo!... E garrou a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência, e que havia muitos anos não proferia [...]
(ROSA, 1969, p. 362)

A atitude da personagem em nada se assemelha à atitude esperada de um santo! Cremos ser este um detalhe relevante. É preciso que se ressalve a importância que Guimarães Rosa dava aos mínimos detalhes na concepção de sua obra. Outro fator relevante para o crítico é a atitude do escritor em não revelar com facilidade o significado de seus livros.

Em carta a João Condé, além de manifestar essa postura, o escritor se recusa a dar qualquer explicação sobre o conteúdo de
A Hora e Vez de Augusto Matraga: “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir” (ROSA, 2008, p.445)

O que o autor entendia por conteúdo? E como seriam essa “síntese” e “chave” que o último conto representa para todos os demais? A recusa do autor em falar sobre o conteúdo do conto, dando apenas indicações sobre a forma, enquanto a realização de um estilo almejado, força-nos à ilação de essa chave de leitura constituir-se na mensagem sobre a possibilidade de o homem atingir o máximo de sua perfeição, com a conseqüente destruição do mal em decorrência de uma longa travessia em constante e heróico combate existencial contras as forças involutivas do ego, como o medo, a violência, o egoísmo, a luxúria etc.

Mas essa ilação implicaria a pressuposição de uma intencionalidade do autor; pressuposição esta muito fácil de comprovar, pois o próprio autor a declara na entrevista com Lorenz:

[...] cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem ou chegam a fazê-lo, quando é demasiado tarde. Por isso tudo é muito simples para mim e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas
[...] (LORENZ, 1983, p.73-74)

Este trecho revela-nos que Guimarães Rosa tinha uma concepção teleológica da vida. E essa teleologia se espraia por sua obra ao considerá-la como o cumprimento de sua tarefa. Aqui o autor também declara a inexistência de fronteiras entre sua vida e sua obra, implicando que, para o conhecimento de sua ficção, é imprescindível o conhecimento de sua vida. Essa declaração causa arrepios e provoca a ira de qualquer crítico imanentista!

Mais adiante, o autor explicita a natureza de sua missão, ao atribuir-se o dever de corrigir a natureza com sua arte. Daí postularmos que o termo engajamento deve ser concebido, no caso de Rosa, segundo uma perspectiva ontológica, espiritual:

Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que assim se coloca o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós os cientistas e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra ele se descobre a si mesmo. Com isso repete o ato da criação. Disseram-me que isto era blasfemo, ma eu sustento contrário. Sim! A língua ao escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem. A impiedade e a desumanidade podem ser reconhecidas na língua. Quem se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal.
(LORENZ, 1983, p. 84)

As palavras de Rosa são esclarecedoras sobre o sentido que a literatura tinha para ele. Também são esclarecedoras para o crítico que se defronta com o problema do engajamento do escritor, além de lançar luzes sobre a compreensão de seu regionalismo, tão repetidamente categorizado com a rubrica de universal, mas tão escassamente cotejado com as convicções do escritor sobre o mundo e sobre sua arte. Para nós, estas palavras são eloqüentes indícios comprobatórios de nossa hipótese de ser o arquétipo mítico de Augusto Matraga originário da compreensão que o escritor tinha acerca da natureza do homem: um ser imortal em busca da iluminação, travando combate com as imperfeições que lhe obstam o caminho.

Cabe ainda analisarmos o impacto dos conhecimentos alquímicos sobre a criação do arquétipo heróico, conforme já definimos. Na mesma entrevista a Lorenz, ao explicar o que entendia por “chocar” suas obras, Guimarães Rosa alude textualmente à Alquimia:

Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. Naturalmente, pode explodir no ar. A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. Não estão certos, quando me comparam com Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração, é preciso provir do sertão
(LORENZ, 1983, p. 85)

Como dissemos, os estudos de Utéza (1994), Albergaria (1977), Sperber (1976) e Vilhena (1996) apontam inúmeras correlações entre a Alquimia, a Cabala e o Hermetismo com a ficção rosiana. Além desses estudos, na biblioteca de Guimarães Rosa havia obras de importantes autores alquimistas e hermetistas, como demonstra a relação dos livros da biblioteca do autor em anexo ao trabalho de Sperber (1976).

Em carta ao amigo Paulo Dantas, Guimarães Rosa refere-se explicitamente a seu interesse pela doutrina secreta da Alquimia, além de reafirmar sua crença na reencarnação:

Acredito que Krishnamurti seja a segunda encarnação de Cristo. Estudo muito as doutrinas. A sabedoria oriental me fascina. Não foi à toa aquelas epígrafes de Plotino ou de Ruysbroeck, o Admirável para meu
Corpo de Baile. São um complemento da minha obra. Sou um contemplativo fascinado pelo Grande Mistério, pelo Anel ou a Pedra Brilhante. (DANTAS, 1975, p.26)

A idéia norteadora da alquimia é a conquista da Pedra Filosofal, capaz de transmutar o vil metal em ouro e de produzir o Elixir da Longa Vida. Entretanto, a Pedra Filosofal era uma metáfora da transmutação do alquimista. Ao longo de seus experimentos e meditações, a alma do operante elevava-se em conhecimento e moralidade crescentes até atingir a plenitude da iluminação (a transmutação em ouro); ao menos este era o conceito daqueles que a consideravam uma ciência acima dos interesses materiais do ouro e da longevidade. Em essência, o simbolismo alquímico implica a idéia de ascese espiritual, como constatamos em Cirlot (2005):

[...] Substancialmente, era um processo simbólico, no qual se buscava a produção de ouro, como símbolo da iluminação e da salvação. As fases essenciais eram assinaladas por quatro cores, assumidas pela ‘matéria-prima’ (símbolo da alma em seu estado original): negro (culpa, origem, forças latentes); branco (magistério menor, primeira transformação, mercúrio); vermelho (enxofre, paixão); às quais sucedia o aparecimento do ouro. [...] a evolução alquímica se resume, pois, na fórmula
Solve et Coagula (analisa tudo o que és, dissolve todo o inferior que em ti, mesmo que te arrebentes ao fazê-lo; coagula-te com a força adquirida na operação anterior. À parte de seu simbolismo específico, a alquimia se nos apresenta como paradigma de todo trabalho. Mostra que em todo o labor, mesmo no mais humilde, as virtudes se exercitam, o ânimo se tempera, o ser evolui. (CIRLOT, 2005, p. 72-73)

O trabalho, como via da transformação íntima, é a idéia contida no conselho que o padre ao moribundo Nhô Augusto a fim de que este mude de vida e alcance a salvação (iluminação):

Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele...
(ROSA, 1969, p. 336)

A Alquimia filosófica é compatível com o simbolismo contido no modelo arquetípico do herói mítico descrito pelo monomito. O afastamento do herói de seu mundo comum e as provas por que tem de passar possuem função análoga à função das etapas previstas para a obtenção da Pedra Filosofal que, no caso, corresponde à glorificação do herói e seu conseqüente reconhecimento.

Acreditamos que a influência do simbolismo alquímico também tenha contribuído para a criação do
status mítico de Augusto Matraga, em razão da idéia da ascese por meio do esforço e não da Graça gratuita. Ressaltamos, inclusive, que entre as obras alquimistas encontradas na biblioteca de Rosa “não existe nenhuma destas obras de alquimia operatória [...] que poderiam deixar entender que Rosa se entregava a outra alquimia além da verbal” (UTÉZA, 1994, p.37).

Há mais um dado biográfico de Rosa que nos faz pensar sobre a influência da concepção das possibilidades evolutivas do homem à medida que burila seu espírito sob o influxo de provas iniciáticas. Este dado é a provável filiação maçônica do escritor. Utéza (1994), inclusive, credita seu interesse sobre metafísica a sua filiação à Maçonaria:

O interesse que Guimarães Rosa dava á metafísica é comprovado, em primeiro lugar, pelo seu engajamento maçônico, que remonta provavelmente à sua estada em Barbacena em 1934, como deixa entrever a alusão feita no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras — ‘Barbacena, o nosso lugar geométrico’
(UTÉZA, 1994, p. 27) .

Como outras sociedades de mistério, tais como a Teosofia e a Rosa-Cruz, a Maçonaria é uma sociedade iniciática e filosófica. Não é correto considerá-la uma religião, ou seita, embora a condição de ateísmo do candidato seja realmente impeditiva de sua filiação à Ordem. Além disso, a filosofia maçônica é eclética, bebendo nas águas da Cabala judaica, nas Religiões de Mistério egípcio-greco-romanas e no Hermetismo alquímico medieval e renascentista.

Em linhas generalíssimas, o propósito da Maçonaria é a transformação do caráter humano por meio de iniciações. Os graus maçônicos (trinta e três graus no Rito Escocês Antigo e Aceito) correspondem, analogicamente, a degraus em direção à evolução contínua. O princípio evolutivo é representado pela escada de Jacó, que também pode ser associada à máxima alquímica da espiritualização da matéria e da materialização do espírito.

O objetivo da ascese maçônica é atingir a felicidade, garantida quando os homens estiverem aptos a promover a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Parece ser este o significado que a evolução espiritual possui para Rosa:

O ensino central do Cristo, a meu ver (o do “Reino do Céu” dentro de nós) é: 1) o domínio da natureza, a começar pela natureza humana de cada um — pela fé, que é a forma mais alta e sutil de energia, à qual o universo é plástico; 2) o amor, possibilitando a coexistência, sem o mínimo sinal de atrito, conflito, desarmonia, destruição ou desperdício. Sobre esta plataforma, o Céu, as possibilidades infinitas de um
sempre-evoluir, em plenitude, prazer, alegria ininterrupta; cada um invulnerável. (DANTAS, 1975, p. 9).

Outro simbolismo maçônico que, a nosso ver, pode ser associado à trajetória do herói mítico é a metáfora da pedra bruta e da pedra polida. A pedra bruta representa as imperfeições humanas que devem ser buriladas pelo indivíduo que deseja aperfeiçoar-se. Após trabalho árduo e constante, a pedra bruta converte-se pedra polida ou talhada, representação daquele que atingiu o estado de perfeição.

Este simbolismo corresponde à necessidade de o homem ter de ser lapidado através das provas iniciáticas, a fim de revelar seu esplendor. Este parece ser o caso de Augusto Matraga que, a princípio, era um malfeitor, responsável por atos altamente condenáveis, mas acaba por se transformar em herói, por meio do autodomínio, com o conseqüente aperfeiçoamento de seu caráter. A idéia da passagem da pedra bruta à pedra polida tem analogia com o princípio esotérico da reencarnação, princípio este, como vimos, esposado por Guimarães Rosa.

A biografia de Guimarães Rosa prova, à exaustão, o interesse que o escritor tinha pelas religiões e pelo esoterismo, bem como sua crença na participação do sobrenatural em sua arte. Suas declarações revelam uma concepção existencial regida pelo mistério, cuja única certeza consiste na imortalidade do espírito e em sua possibilidade de evolução contínua ao longo de inumeráveis experiências."

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Fonte:
ALEXANDRE GONÇALVES PEREIRA: “A arquitetura mítica da narrativa rosiana: as raízes do monomito na travessia heróica de Augusto Matraga”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Segolin). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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