

“Considerar Augusto Matraga como um herói análogo ao herói arquetípico do monomito  implica  considerá-lo  como  uma  personagem  que  se  inicia  em  uma  jornada de provas e expiações, transfigurando-se em herói ao fim de sua trajetória,  por  ter  conquistado  seu  galardão  e  distribuído  os  benefícios  de  sua  conquista  à  comunidade.    Ao  heroísmo  mítico,  segundo  o  modelo  do  monomito  proposto  por  Campbell,  vinculamos  o  conceito  de  redenção  implicado  nas  doutrinas espiritualistas  que,  possivelmente,  teriam  influenciado  João  Guimarães  Rosa  até 1946, ano  da publicação do texto definitivo de  Sagarana.
Nossa  hipótese  é  que  o  escritor  transpôs  para  o  nível  fabular  a  convicção  metafísico-religiosa  da  possibilidade  redentora  que  todos  possuem,  independente  do  mal  que  praticaram.  Entendemos,  por  fim,  que  essa  convicção  não  se  baseia  apenas na remissão dos pecados pela graça divina, mas sim pelo desenvolvimento  do  potencial  divino  por  meio  de  lutas  condutoras  ao  autoconhecimento.  À  origem  dessa  idéia,  vinculamos  a  crença  de  Guimarães  Rosa  nos  pressupostos  espiritualistas  do  esoterismo,  tais  como  a  reencarnação,  a  escala  evolutiva  do  espírito  ao  longo  de  suas  reencarnações  e  a  inexistência  do  acaso  e  do  mal  permanente.
Em  trabalho  inédito  no  campo  dos  estudos  rosianos,  a  pesquisadora  Suzi  Frankl Sperber cotejou os temas metafísicos presentes em quase toda a obra de  João  Guimarães  Rosa  com  os  temas  espirituais  contidos  na  biblioteca  do  escritor,  que foi vendida pela família ao IEB (Instituto de Estudos Brasileiros).
Dos  2477  livros  encontrados  na  biblioteca  do  escritor,  Sperber  (1976)  identificou  200  como sendo  de  leituras  espirituais.  Por  este  termo,  a  pesquisadora  entende  as  leituras  de  caráter  moral  e  religioso  e  não  as  filosóficas  propriamente  ditas.  Definindo  o  corpus  de  seu  trabalho,  a  autora  estabelece  quatro  etapas  ou  períodos de leituras:
1— Até 1946, ano da publicação do texto definitivo de Sagarana;
2— de 
3— de 
4— de 
Em  razão  de  nosso  corpus  ser  um  conto  de  Sagarana,  ater-nos-emos  às  leituras  da  primeira  fase,  relacionadas  aos  princípios  espirituais  que  postulamos  estar  na  base  da  construção  de  um  arquétipo  heróico  tal  como  o  descrito  pelo  monomito. Dentre as obras analisadas, Sperber credita às do Círculo Esotérico da  Comunhão  do  Pensamento  como,  possivelmente,  as  mais  antigas  leituras  de  Guimarães  Rosa.  Os  dois  livros  encontrados  datam  de  1917  a  1933,  sendo  a  edição  mais  recente  distanciada  quatro  anos  da  primeira  versão  de  Sagarana  e  treze anos da versão definitiva, em 1946. 
A autora destaca que os trechos sublinhados nessas duas obras “referem-se  enfaticamente  ao  poder  absoluto  do  indivíduo  de  espírito  livre  e  independente,  dominador  do  mundo  material”  (SPERBER,  1976,  p.  23).  Para  comprovar  essa  assertiva, a autora cita um trecho da Primeira Série de Instruções em que se exorta  o  iniciado  a  cultivar  a  prece  mental  como  fonte  inexaurível  de  forças,  a  fim  de  vencer  todos os obstáculos interpostos em sua trajetória rumo ao desenvolvimento  espiritual.
Sperber  ressalta  que  os  contos  de  Sagarana  receberam  do  esoterismo  paulista  a  influência  da  crença  de  que  a  culpa  não  existe.  Contrariamente,  entretanto,  segundo  a  autora,  essa  influência  não  se  deu  no  último  conto,  pois  a  culpa existe e deve ser purgada. O tema da culpa, aqui, teria origem na influência  das  leituras  dos  Evangelhos,  o  que  se  comprovaria  pela  semelhança  das personagens  com  o  que  ela  identifica  como  “criatural  cristão”.  Em  razão  desse “criatural cristão”, juntamente com o conceito de destino, Sperber credita a inserção do mythos na escritura rosiana: 
Em  “A  Hora  e  Vez  de  Augusto  Matraga”  o  destino  está  ligado  à  caminhada.  E  a  caminhada  de  Matraga  simboliza  purificação  e  iniciação.  Ora,  estes  temas  não  são  apenas  evangélicos,  como  também  míticos.  Verifica-se,  a  par  do  realismo  ficcional,  a  introdução  do  mythos  na  obra roseana.  Ora,  sabemos    que  no  mundo  ocidental  o  mythos  foi  absorvido pelo  logos desde a antiguidade grega [...]  Vimos a presença do logos 
Embora  longa,  essa  citação  é  fundamental  para  nossa  pesquisa  por  três  razões:  a  oposição  entre  logos  e  mythos  que  a  autora  credita  às  influências,  respectivamente, do esoterismo e dos Evangelhos; a trajetória da personagem vista  como mítica e iniciática e a  dupla motivação de Guimarães Rosa ao dedicar-se a  leituras espirituais.
 Em  linhas  bem  genéricas,  o  que  a  autora  chama  de  realismo  ficcional  é  a  ausência  de  índices  narrativos  que  sugiram  ser  as  oito  narrativas  de  Sagarana  tratadas enquanto texto ficcional. Já em “A Hora e Vez de Augusto Matraga” tal não  se  dá.  Em  determinado  momento do  conto, o  narrador  afirma  ser aquela  narrativa  inventada:  “E  assim  se  passaram  pelo  menos  seis  ou  seis  anos  e  meio,  direitinho  deste  jeito,  sem  tirar  nem  pôr,  sem  mentira  nenhuma,  porque  esta  aqui  é  uma estória inventada, não é um caso acontecido, não senhor.” (ROSA, 1969, p. 338)
A  autora  postula  a  tese  de  os  oito  contos  de  Sagarana  terem  sofrido  maior  influência  das  leituras  dos  livros  do  Círculo  Esotérico  da  Comunhão  do  Pensamento,  ou  simplesmente,  esoterismo  paulista,  em  razão  de  o  esoterismo   “querer-se  doutrina  séria”  e  racionalista,  além  de  não  reconhecer  a  culpa  e  o  pecado  como  são  entendidos  pelo  Judaísmo  e  pelo  Cristianismo.  Não  entraremos  no  mérito  da  questão,  por  fugir  ao  escopo  de  nossa  pesquisa.  No  entanto,  não  deixamos  de  entender  que  o  esoterismo  também  pode  ter  contribuído  para  a  construção de uma personagem cuja trajetória fosse mítica e iniciática.
Em  razão  mesmo  da  crença  na  imortalidade  da  alma,  o  esoterismo,  assim  como o espiritismo kardecista, cujos preceitos mais adiante também relacionaremos  ao  ideário  de  Rosa,  concebe  a  alma  humana  em  uma  trajetória  rumo  à  evolução.  Entretanto,  esta  trajetória  não  é  retilínea,  podendo  ser  interrompida  em  razão  do  mau  uso  do  livre  arbítrio  de  que  o  homem  goza  na  escolha  entre  o  bem  e  o  mal.  Diferentemente  do  Judaísmo  e  do  Cristianismo,  entretanto,  mesmo  que  escolha  a via  do  mal,  a  alma não  está  condenada  à  expiação  eterna no  inferno.  O  inferno  é visto como a conseqüência de seus atos, podendo dissipar-se à medida que a alma aproveita outras encarnações, a fim de expiar suas faltas pela prática do bem.
Ainda que não haja nenhum indício da crença na imortalidade da alma, nos  moldes  preconizados  pelo  esoterismo  ou  pelo  kardecismo,  no  conto  em  que  pretendemos  sondar  as  bases  para  a  construção  do  herói  mítico,  tal  como  ocorre  
Seja  por  meio da  graça  cristã  ou  da  expiação  ao  longo  das  encarnações,  o objeto de busca de Augusto Matraga é a redenção. E o caminho para esta redenção está  eivado  de  provas  expiatórias.  Ainda  que  caracterizados  segundo  atributos cristãos, a história de Augusto Matraga revela os pressupostos espiritualistas sobre a possibilidade de a pior das criaturas tornar-se um ser de luz (para o esoterismo e o espiritismo), ou santo (para o Catolicismo).
No tocante à iniciação, este também é um aspecto ligado ao esoterismo. Tal como  as  demais  sociedades  secretas  e  religiões  de  mistérios,  como  o  foram  o Orfismo e os cultos egípcios a Ísis e a Serápis, o adepto do esoterismo é iniciado à doutrina secreta e ascende a graus de iniciação, segundo o nível  de expansão de sua  consciência  e  de  sua  moral,  por  meio  de  práticas  litúrgicas  e  intelectuais  de ascese. A esse respeito, são comprobatórias as palavras Antonio Olívio Rodrigues, patrono-fundador da ordem do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento:
Sendo  o  homem  alguma  coisa  mais  do  que  um  simples  animal  que  traja roupas, ele não é um simples joguete da casualidade, mas uma potência; é o criador e o destruidor da casualidade. Por meio de sua energia interior, o homem vencerá a indolência e entrará no Reino da Sabedoria. Então ele sentirá  amor  por  tudo  quanto  vive  e  se  constituirá  num  poder  inexaurível para o bem de seu  próximo. Oferecemos  a ‘energia’ que  liberta a mente da ignorância, do preconceito, do erro. Queremos incutir valor para que se busque  a  verdade  por  todos  os  modos;  amor  pelo  socorro  mútuo;  a  paz que  somente  chega  à  mente  iluminada  e  ao  coração  aberto,  e  a consciência de uma vida imortal (RODRIGUES, apud Círculo..., s.d, p. 11)
Se  não  podemos  negar  a  influência  do  cristianismo  na  representação  da trajetória  de  Augusto  Matraga,  também  não  podemos  negar  os  aspectos  que  a aproximam dos  ideais  esotéricos. Seja  Iluminação  por mérito  próprio,  ou  Salvação da  alma,  por  meio  da  Graça  Divina,  Augusto  Matraga  salvou-se  (reconheceu  ser chegada a sua hora e vez),  porque dirigiu seus esforços, segundo seu livre arbítrio, para  o  cumprimento  de  um  plano  de  vida  diametralmente  diferente  do  seu  velho  ethos de fazendeiro tirânico.
Em  resumo,  é  um  herói  cuja  trajetória  está  dividida  nos  três  momentos  constituintes  do  monomito:  partida  (quando  decide  abandonar  sua  velha  vida  e  ir  morar  com  seus  pais  adotivos  no  sítio  do  Tombador);  iniciação  (o  herói  trabalha  para  os  outros,  resiste  às  tentações  da  violência,  abstém-se  de  bebida  e  de  mulheres, participa de novenas) e retorno (quando salva a vida da família prestes a  ser  barbarizada  por  Bem-Bem  e  se  preocupa  com  o  destino  da  filha  e  da  mulher,  pedindo a seu primo que desse a bênção a Mimita, que se perdera na vida, e que  tranqüilizasse Dionóra, dizendo a ela que estava tudo bem com a filha).
Platão e Plotino são outras fontes de reconhecida influência na obra de João  Guimarães Rosa. O próprio autor, em carta a seu tradutor para o italiano, Edoardo   Bizarri,    datada  de  25  de  novembro  de  1963,  reconhece    tal  influência,  embora  ressalve só percebê-la a posteriori:
Eu  mesmo  fiquei  espantado  de  ver,  a  posteriori,  como  as  novelas  [de  corpo  de  Baile],  umas  mais,  outras  menos,  desenvolvem  temas  que  poderiam  filiar-se,  de  algum  modo,  aos  “Diálogos”,  remotamente,  ou  às  “Eneadas”,  ou  ter  nos  velhos  textos  hindus  qualquer  raizinha  de  partida. Daí as epígrafes de Plotino e de Ruysbroeck. (BIZZARRI, 1980, p. 57-58)
Em  outra  carta  a  Edoardo  Bizarri,  datada  de  quatro  de  dezembro  de  1963,  Guimarães  Rosa  deixa  entrever  nitidamente  a  doutrina  de  Platão  ao  descrever  a  maneira pela qual concebe suas obras:
[...]  Eu  quando  escrevo  um  livro,  vou  fazendo  como  se  estivesse  “traduzindo”, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou  no  “plano  das  idéias”,  dos  arquétipos,  por  exemplo.  Nunca  sei  se  estou  acertando ou falhando, nessa “tradução”. Assim quando me “re”-traduzem  para  outro  idioma,  nunca  sei,  também,  em  casos  de  divergência,  se  não foi  o  Tradutor  quem,  de  fato,  acertou,  restabelecendo  a  verdade  do “original ideal”, que eu desvirtuara... [...] (BIZARRI, 1980, p.63-64)
Guimarães  Rosa  reconhecia  que  parte  de  sua  criação  provinha  de  origem  misteriosa.  Tal  convicção,  talvez,  o  tenha  levado  a    ser  tão  generoso  com  seus  tradutores, não fazendo questão de que se ativessem ao pé da letra e, até mesmo,  auxiliando-os  em  um  trabalho  de  “co-tradução”.  Assim  se  deu  especialmente  com  seus tradutores para o alemão e para o italiano, como atestam as inúmeras cartas  trocadas  e,  posteriormente,  editadas  
Obras como o Fédon, o Fedro e A República, dentre outros livros de Platão, foram encontradas na biblioteca do escritor. As três primeiras contêm o pensamento do  filósofo  grego  sobre  a  imortalidade  da  alma  e  da  reencarnação.  Sobretudo  no livro décimo de A República, onde Sócrates conta a Glauco a história que ouvira do valoroso  soldado  Er,  o  Armênio,  que  tendo  morrido  em  combate,  após  peregrinar pelo outro mundo, tem a permissão de voltar à vida e narrar aos homens o que vira, a  fim  de  alertá-los  a  ter  uma  conduta  virtuosa,  para  que  fossem  felizes,  tanto  no  além, quanto em suas vidas futuras.
O  conceito  de  reencarnação  contido  na  República  muito  se  assemelha  à  reencarnação  conforme  concebe  o  kardecismo.  A  reencarnação,  segundo  a  doutrina do espiritismo kardecista, é a condição para que a alma evolua por meio  de sucessivas oportunidades de aprendizado do bem e de expurgo do mal, ao longo  de  vidas  sucessivas.  Enfatizamos  que  este  conceito  não  deve  ser  comparado  à metempsicose  dos  hindus  e  budistas  e  da  própria  doutrina  de  Platão.  Na  metempsicose, um ser humano pode reencarnar em corpos de animais como forma  de  purgar  seus  pecados.  Cabe  lembrar  que,  para  o  Budismo,  a  reencarnação  é  malvista,  pois  se  associa  a  um  ciclo  interminável  de  sofrimento  até  que  seja  interrompido pelo nirvana. Isso implica que o estágio de iluminação não depende da  escala  progressiva  de  aprendizado  e  sofrimento  ao  longo  das  sucessivas  vidas,  mais sim da capacidade de o homem atingir o nirvana segundo técnicas especiais  de meditação e autoconhecimento.
Segundo  o  kardecismo,  o  estágio  evolutivo  pode  estacionar,  mas  regredir  nunca. Assim, um ser humano não pode reencarnar em um animal. Os kardecistas esposam a crença na evolução não só do homem, como também de todos os reinos da natureza. A reencarnação não é encarada como um fadário, mas sim como uma demonstração  da  infinita  bondade  e  equanimidade  de  Deus  para  com  suas criaturas, ao permitir a todos a possibilidade de evolução segundo o mérito de cada um. Não há um inferno em que as almas purgam eternamente seus males. O mal é um estado transitório da alma.
De  acordo  com  a  pesquisadora  Suzi  Sperber  Frankl,  somos  levados  a  crer  que  o  contato  de  Guimarães  Rosa  com  os  conceitos  de  reencarnação,  evolução  espiritual,  ascese,  por  meio  de  reza  e  meditação,  se  deu,  primeiramente,  por  intermédio  do  esoterismo.  Para  nós,  esse  é  um  dado  relevante,  por  ser  de  ordem  cronológica.  A  propósito,  foram  encontrados  na  biblioteca  do  escritor  O  Livro  dos  Espíritos, que deu origem ao kardecismo, além de dois livros do médium Francisco Cândido Xavier. A edição de  O Livro dos Espíritos, encontrada na biblioteca do  escritor,  data  de  1954,  enquanto  os  dois  livros  de  Francisco  Candido  Xavier  não  possuem data.
 Pela edição de O Livro dos Espíritos encontrado não podemos afirmar que  Guimarães  Rosa  tivesse  conhecimento  do  kardecismo  por  intermédio  desta  obra,  pois a data desta edição é posterior à data de publicação de Sagarana, em 1946.  Mas também não podemos afirmar o contrário, pois como ressalva Sperber (1976)  não se pode afirmar que a biblioteca do escritor contivesse todos os livros que lera,  uma vez que perdeu livros, deu outros e leu livros emprestados por amigos ou 
Vilma  Guimarães,  filha  do  escritor,  em  biografia  de  seu  pai,  confirma  nossa  suspeita  de  que  o  escritor  mineiro  já  conhecesse  o  espiritismo  antes  mesmo  da  publicação de  Sagarana. A biógrafa relata a amizade que o escritor travara com o  médium  e  raizeiro  Manuel  Carvalho,  no  tempo  em  que  exercera  a  medicina  na  cidade de Itaguara:
Papai e Manoel Carvalho costumavam ter longas conversas sobre filosofia  espiritualista.  Muito  se  respeitavam,  o  médico  e  o  raizeiro-receitador.  Numa das cartas a ele endereçada, meu pai começa com uma saudação  kardecista.  Assina  dr.  Guimarães  Rosa,  porque,  naquela  época,  era costume  antepor  o  título  de  doutor  ao  nome  nas  assinaturas.  (ROSA, 2008, p. 402)
A filha do escritor cita, ainda, um trecho do ensaio intitulado Guimarães Rosa,  o  místico,  de  autoria  do  escritor  mineiro  David  de  Carvalho,  que  informa  sobre  a  relação de amizade de Guimarães Rosa, o médico, e Manoel Carvalho, o raizeiro:
Até  mesmo  com  raizeiros  e  receitadores,  João  Guimarães  Rosa  passa  a  conviver em harmonia, numa atmosfera de respeito e compreensão: então  faz-se  amigo  de  Manoel    Carvalho,  residente  nos  Gentios,  e  que  receita.  João  Guimarães  Rosa  compreende-o  e  julga-o  de  utilidade  a  uma  gente  marginalizada,  distante  do  médico,  da  farmácia,  quanto  mais  que  Manoel  Carvalho  é  bem  intencionado  e  possui  uma  biblioteca  sadia,  fato  mais  engrandecido  se  considerarmos  a  época  e  as  circunstâncias.  A  par  de  compêndios  de  ensinamento  médicos,  lá  se  encontram  também  vários  livros de inspiração espírita: A grande síntese, de  Pietro Ubaldi, e Depois  da Morte, de Leon Dénis. (CARVALHO, apud ROSA, 2008, p. 402)
É  bastante  provável  que  o  contato  com  a filosofia  kardecista  tenha  se  dado  por  intermédio  da  amizade  do  escritor  com  o  amigo  Manoel  Carvalho.  Em  carta  endereçada ao amigo espírita, datada de 1933, Guimarães Rosa expõe sua opinião  sobre  um  livro  espírita  ofertado  pelo  amigo:  “Tenho  commigo  o  livro  ‘Depois  da  Morte’, de Leon Dénis, que me offereceram. É o livro mais bello e consolador que já  me veio às mãos” (ROSA, 2008, p. 405)
A apreciação do livro de Leon Dénis é significativa. Leon Dénis foi o sucessor  de  Allan  Kardec.  Em  suas  obras,  o  espírita  francês  expõe  o  princípio  kardecista  sobre  a  evolução  do  espírito.  Criado  simples  e  ignorante,  o  espírito,  segundo  seu  livre  arbítrio,  percorre  uma  senda  evolutiva  ao  longo  das  encarnações  sucessivas,  rumo à suprema evolução. Este princípio implica, a nosso ver, o princípio evolutivo  que subjaz à trajetória do herói do monomito, o qual tem de percorrer uma trajetória iniciática até ser glorificado.
Porém,  é  o  próprio  Guimarães  Rosa  que  surpreende  críticos  e  leitores  ao  confessar  a  participação  do  sobrenatural  na  origem  de  sua  arte,  nas  colunas  do  jornal “O Estado de Minas” (edição de 26 de novembro de 1967). Apesar de longa,  em  razão  de  seu  conteúdo  inusitado,  vale  a  pena  transcrevermos  a  entrevista  de  Guimarães Rosa, contida no livro de Rizzini (1992):
Tenho  de  segredar  que  —  embora  por  formação  ou  índole  oponha  escrúpulo  crítico  a  fenômenos  paranormais  e  em  princípio  rechace  a  experimentação  metapsíquica  —  minha  vida  sempre  e  cedo  se  teceu  de  sutil  gênero  de  fatos.  Sonhos  premonitórios,  telepatia,  intuições,  séries  encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. No plano  da  arte  e  da  criação  —  já  de  si  em  boa  parte  subliminar  ou  supraconsciente,  entremeando-se  nos  bojos  do  mistério  e  equivalente  às vezes  quase    à  reza  —  decerto  se  propõem  mais  essas  manifestações. Talvez  seja  correto  eu  confessar  como  tem  sido  que  as  estórias  que apanho  diferem  entre  si  no  modo  de  surgir.   À  Buriti  (NOITES  NO SERTÃO), por exemplo, quase inteira, “assisti”, em 1948, num sonho duas noites  repetido.        Conversa  de  Bois  (SAGARANA),  recebia-a,  em amanhecer  de  sábado,  substituindo-se  a  penosa  versão  diversa,  apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerava definitiva ao ir  dormir  na  sexta.  A  Terceira  Margem  do  Rio  (PRIMEIRAS  ESTÓRIAS) veio-me,  na  rua,  em  inspiração  pronta  e  brusca,  tão  “de  fora”,  que instintivamente levantei as mãos para  “pegá-la” como se fosse uma bola vinda ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (MANUELZÃO E MIGUILIM) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e  receio  de  começar  de  fato  um  conto,  para  o  qual  só  soubesse  um menino morador à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatus; entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. O tema de O recado do Morro (NO URUBUQUAQUÁ,  NO  PINHÉM)  se  formou  aos  poucos,  em  1950,  no estrangeiro, avançando somente quando a saudade me obrigava, e talvez também sobre razoável ação de vinho ou conhaque. Quanto ao GRANDE SERTÃO:  VEREDAS,  forte  coisa  e  comprida  demais  seria  crer  como  foi ditado, sustentado e protegido — por forças ou correntes muito estranhas.  Aqui,  porém,  o  caso  é  um  romance,  que  faz  anos  comecei  e  interrompi (Seu título: A Fazedora de Velas). Decorreria, em fins do século passado, em antiga cidade de Minas Gerais, e para ela fora já ajuntada e meditada à  massa  de  elementos.  O  teor  curtido  na  idéia,  riscado  o  enredo  
Essa  declaração  de  Guimarães  Rosa  é  mais  do  que  um  mero  dado biográfico.  Entendemos  que  ela  emblematiza  a  vivência  mística  do  escritor. Curiosamente,  os  insólitos  relatos  de  Rosa  não  têm  recebido  a  atenção aprofundada dos críticos quando enfrentam o problema da gênese de sua obra. As declarações  do  escritor  suscitam  importantes  revisões  sobre  sua  intencionalidade ao conceber suas obras, bem como sobre a influência das crenças metafísicas e da vivência  de  fatos  insólitos  como  elementos  igualmente  reveladores  acerca  da gênese de grande parte da produção artística de Guimarães Rosa.
Em que pese a existência de trabalhos como os de Suzi Sperber, acerca da influência  de  leituras  espirituais  no  temário  do  escritor,  bem  como  trabalhos  que procuram  identificar  a  simbologia  dos  conceitos  alquímicos  no  enredo  de  obras como Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, as declarações do escritor, em si, ainda estão à espera de pesquisas que não se atenham simplesmente à descrição deste  ou  daquele  aspecto  esotérico  ou  religioso  verificado  nesta  ou  naquela  obra, mas sim que aborde as declarações do autor segundo um método condizente com o  enfrentamento  do  problema.  Entretanto,  este  método  envolveria  áreas  do conhecimento ainda muito malvistas pela tradição acadêmica da crítica literária.
Estas  áreas,  execradas  pela  exacerbação  do  cientificismo  nos  estudos literários,  envolveriam  conceitos  da  psicologia  analítica  e  da  parapsicologia,  em consórcio  com  métodos  provenientes  da  crítica  genética  e  com  o  estudo aprofundado  das  declarações  do  autor  sobre  a  sua  própria  obra,  além  do  cotejo exaustivo  da  obra  do  autor  com  as  doutrinas  espiritualistas,  que  comungou  ou simplesmente estudou.
O elo entre a arte e a religião é tão forte na produção literária de Guimarães Rosa,  como  atestam  os  dados  biográficos,  além  das  passagens  flagrantes  em muitos  momentos  de  suas  narrativas,  que  uma  das  maiores  críticas  de  sua  obra, Walnice Nogueira Galvão reconhece ser impossível analisar sua obra “prescindindo do auxílio dos estudos da religião” (GALVÃO, 2008, p.131). No que tange a nosso corpus, a crítica afirma que, mais do que qualquer outra obra, a religião insinua-se como elemento plasmático do enredo:
Temos ali um conto cujo tema é a conversão, bem no sentido arquetípico em  que  o  é,  por  exemplo,  a  conversão  de  São  Paulo  no  caminho  de Damasco.  Esse  arquétipo  da  conversão  como  epifania,  ou  iluminação súbita que como um relâmpago abre os olhos do pecador e o encaminha para a salvação, aparece invariavelmente ao longo dos séculos, em toda a hagiografia que o cristianismo nos habituou. As histórias maravilhosas de pessoas  más  que  de  repente,  por  milagre  da  graça  de  Deus,  se  tornam boas  e  se  entregam  à  penitência  por  seus  pecados,  atravessa  toda  a crônica, assinalando as vidas de incontáveis mártires. A oportunidade de ir para  o  céu  surgirá  para  o  protagonista  através  do  martírio:  encerra-se  a hagiografia,  uma  biografia  exemplar  de  santo  e  mártir  (ROSA,  2008,    p. 132).
Não  há  o  que  se  discutir  sobre  a  analogia  existente  entre  a  história  de  Augusto  Matraga  e  o  martirológio  cristão.  Nem  mesmo  há  de  se  discutir  as analogias com a Paixão de Cristo como demonstram os estudos de Maria Sylvia de  Carvalho Franco (1975), em artigo intitulado A Vontade Santa.
Neste artigo, a estudiosa  aproxima a trajetória do herói à trajetória de Cristo:   “Guimarães  Rosa  faz  a  aventura  do  herói  seguir  o  evangelho  de  Cristo  em  seus  grandes tempos: Advento, Paixão e Ressurreição” (FRANCO, 2001, p. 96).
O  Advento  se  dá  quando  o  coronel  arbitrário  e  violento  é  bruscamente despojado  de  suas posses  e  abandonado  por  sua família  e  por  seus  comandados, em  decorrência  de  seus  próprios  atos,  além  de  ser  quase  morto,  no  episódio  da tortura que sofre de seus ex-capangas.
A  partir daí  começa  a  surgir  um  indivíduo  em franca oposição  ao coletivo.  É contra  as  injunções  da  vida  social,  permeada  pela  arbitrariedade  e  pela  violência extremas,  no  sertão  brasileiro,  que  o  herói  irá  entregar-se  em  acirrado  combate, iniciando-se, assim, sua Paixão:
Do  caos  se  inicia  a  criação  do  homem  –  Nhô  Augusto.  No  princípio;  sua figura tem contornos dados pelo que houve antes e fora de si mesma. Nesse tempo, em sua longa espera, Matraga é família e é propriedade. “É Estêves. Augusto Estêves, filho do coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco da  Embira.”  Apenas  desse  modo  existe  Matraga,  por  obra  e  graça  de  sua colocação  no  mundo  e  por  este  fato  se  distingue  dos  outros  seres  que também  o  habitam.  Mas  nada,  essencialmente,  diferencia  cada  indivíduo  – nhô  Augusto  inclusive  -  o    universo  originário  do  arraial  da  Vigem  Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici. (FRANCO, 2001, p. 96).
Com  o  firme  propósito  de  ir  para  o  Céu,  Nhô  Augusto  impõe-se  uma  vida dedicada aos outros. Trabalhando arduamente, ainda enfrenta o desprezo de quem o conhecera (no encontro com Tião da Thereza)  antes de quase ser morto por seus capangas, e também a tentação de engajar-se no bando de Joãozinho Bem-Bem.
Resiste recorrer às atitudes violentas de outrora, despertadas pelo desejo de vingar  a  morte  do  leal  servidor  Quim  Recadeiro,  assassinado  pelos  capangas  do  Major Consilva ao tentar vingar a acreditada morte do patrão; e também pelo desejo de  “lavar  a  honra  da  filha”  que,  ao  fugir  com  um  mascate,  perde-se  na  vida.  Além disso,    Nhô  Augusto  assume  a  defesa  de  uma  família  que  nem  conhecia,    em combate mortal  com Joãozinho Bem-Bem.
Morto o opositor e gravemente ferido, após a sua morte, o protagonista torna-se  o  mito  Matraga,  o  santo  anacoreta  que  se  imolou  em  combate  mortal  em  favor dos  fracos  e  oprimidos,  mas  ainda  vivo  na  memória  do  povo.  Esta  parte corresponderia à Ressurreição.
As análises de Galvão (2008) e Franco (2001) não se opõem à idéia de uma trajetória heróica constituída por provas iniciáticas que modelarão o caráter mítico do herói. Seja considerado um santo ou uma “imitação de cristo”, o fato é que o herói, anteriormente  mau,  ascende  a  um  status  compatível  com  o  processo  de  evolução espiritual.
Preferimos, entretanto, desconfiar que a homologia existente entre a trajetória de Matraga e o “criatural cristão”, identificado por Sperber (1976), seja explicada de forma cabal pela influência haurida por Rosa nas leituras dos Evangelhos. Para nós, trata-se da idéia de possibilidade evolutiva que todos possuem,  desde que queiram. Endentemos  que  o  mito  de  Matraga  esteja a  serviço  de  um  engajamento  espiritual do  escritor.  Em  outras  palavras,  cremos  que  a  história  de  Augusto  Matraga  serve como uma metáfora sobre o potencial evolutivo da alma.
Nossa  hipótese  de  um  “engajamento  espiritual”,  consciente  ou  semi-consciente, reforça-se pela influência das crenças metafísicas de Guimarães Rosa.  Estas crenças, como vimos, podem ser amplamente rastreadas tanto no depoimento dos  amigos,  quanto  nos  livros  lidos  contidos  em  sua  biblioteca,  quanto  em  suas entrevistas e declarações.
Em  entrevista  concedida  em  1965,  em  Gênova,  ao  crítico  alemão  Günter Lorenz,  por  ocasião  do  Congresso  dos  Escritores  Latino-americanos,  Guimarães Rosa  faz  importantes  revelações  sobre  a  função  de  sua  arte  (justificando  o  que chamamos de engajamento espiritual), além de mencionar a influência da Alquimia em seu ideário.
Nessa entrevista, o escritor declara não gostar de política da forma como ela é concebida. Seu conceito de política é metafísico. Para Rosa, a missão do escritor é mais importante do que o engajamento político, pois seu foco deve concentrar-se  no homem. Na seqüência da entrevista, o autor faz nova relação de suas convicções  metafísicas, explicitando, desta vez, sua crença na reencarnação:
Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais  dados  numéricos.  Minha  biografia,  sobretudo  minha  biografia  literária,  não  deveria  ser  crucificada  
Falando  sobre  seu  credo,  o  autor  externa  a  crença  na  inexistência  do  mal absoluto, coerentemente com as doutrinas espiritualistas estudas por ele:
Apenas  na  solidão  pode-se  descobrir  que  o  diabo  não  existe.  E  isto significa  o  infinito  da  felicidade.  Esta  é  minha  mística.  [...]  Provavelmente, eu  seja  como  meu  irmão  Riobaldo.  Pois  o  diabo  pode  ser  vencido simplesmente,  porque  existe  o  homem,  a  travessia  para  a  solidão,  que equivale ao infinito. (LORENZ, 1965, p. 73)
Notamos  aqui  a  influência  dos  postulados  espíritas  e  esotéricos  que  reconhecem o mal enquanto um estágio temporário, fruto da ignorância do homem  que não despertou para o chamado da ascese espiritual. São as palavras do escritor  que  nos  autorizam  compreender  o  enredo  de  A  Hora  e  Vez  de  Augusto  Matraga mais como uma metáfora de iluminação espiritual por meio da correção do caráter, do  que,  simplesmente,  um  arquétipo  de  conversão  nos  moldes  de  hagiografia medieval. Vale lembrar que, a despeito de Nhô Augusto ter se sacrificado em prol do próximo, ele também matou com satisfação:
E  a  casa  matraqueou  que  nem  panela  de  assar  pipocas,  escurecida  à fumaça  dos  tiros,  com  os  cabras  saltando  e  miando  de  maracajás,  e  Nhô Augusto  gritando  qual  um  demônio  preso  e  pulando  como  dez  demônios soltos — Ô gostosura de fim-de-mundo!... E garrou a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua farta existência,  e  que havia muitos anos não proferia [...] (ROSA, 1969, p. 362)
A  atitude  da  personagem  em  nada  se  assemelha  à  atitude  esperada  de  um santo!  Cremos  ser  este  um  detalhe  relevante.  É  preciso  que  se  ressalve  a importância que Guimarães Rosa dava  aos mínimos detalhes na concepção de sua  obra. Outro fator relevante para o crítico é a atitude do escritor em não revelar com facilidade o significado de seus livros.
 Em  carta  a  João  Condé,  além  de  manifestar  essa  postura,  o  escritor  se recusa  a  dar  qualquer  explicação  sobre  o  conteúdo  de    A  Hora  e  Vez  de  Augusto Matraga:    “História  mais  séria,  de  certo  modo  síntese  e  chave  de  todas  as  outras, não  falarei  sobre  o  seu  conteúdo.  Quanto  à  forma,  representa  para  mim  vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir” (ROSA, 2008, p.445)
O  que  o  autor  entendia  por  conteúdo?  E  como  seriam  essa  “síntese”  e “chave” que o último conto representa para todos os demais? A recusa do autor em falar sobre o conteúdo do conto, dando apenas indicações sobre a forma, enquanto a  realização  de  um  estilo  almejado,  força-nos  à  ilação  de  essa    chave  de  leitura constituir-se  na  mensagem  sobre  a  possibilidade  de  o  homem  atingir  o  máximo  de sua perfeição, com a conseqüente destruição do mal em decorrência de uma  longa travessia  em  constante  e  heróico  combate  existencial  contras  as  forças  involutivas do ego, como o medo, a violência, o egoísmo, a luxúria etc.
Mas essa ilação implicaria a pressuposição de uma intencionalidade do autor; pressuposição  esta  muito  fácil  de    comprovar,  pois  o  próprio  autor  a  declara  na entrevista com Lorenz:
[...] cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar  e minha  tarefa; muitos  homens  não  conhecem ou  chegam  a fazê-lo, quando  é  demasiado  tarde.  Por  isso  tudo  é  muito  simples  para  mim  e  só espero  fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como meu credo é simples.  Mas  quero  ainda  ressaltar  que  credo  e  poética  são  uma  mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é  apenas  uma  maldita  invenção  dos  cientistas,  que  querem  fazer  deles duas pessoas totalmente distintas [...] (LORENZ, 1983, p.73-74)
Este trecho revela-nos que Guimarães Rosa tinha uma concepção teleológica da  vida.  E  essa  teleologia  se  espraia  por  sua  obra  ao  considerá-la  como  o cumprimento de sua tarefa. Aqui o autor também declara a inexistência de fronteiras entre  sua  vida  e  sua  obra,  implicando  que,  para  o  conhecimento  de  sua  ficção,  é imprescindível  o  conhecimento  de  sua  vida.  Essa  declaração  causa  arrepios  e provoca a ira de qualquer crítico imanentista!
Mais  adiante,  o  autor  explicita  a  natureza  de  sua  missão,  ao  atribuir-se  o dever  de  corrigir  a  natureza  com    sua  arte.  Daí  postularmos  que  o  termo engajamento  deve  ser  concebido,  no  caso  de  Rosa,  segundo  uma  perspectiva ontológica, espiritual:
Isto  provém  do  que  eu  denomino  a  metafísica    de  minha  linguagem,  pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que  assim se coloca o  homem no papel de amo da  criação. O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade  da  criação.  Eu  procedo  assim,  como  um  cientista  que  também não  avança  simplesmente  com  a  fé  e  com  pensamentos  agradáveis  a Deus.  Nós  os  cientistas  e  eu,  devemos  encarar  a  Deus  e  o  infinito,  pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento  do  soro  contra  a  varíola  e  as  picadas  de  cobras,  mas também  depende  de  que  ele  devolva  à  palavra  seu  sentido  original. Meditando sobre a palavra ele se descobre a si mesmo. Com isso repete o ato  da  criação.  Disseram-me  que  isto  era  blasfemo,  ma  eu  sustento contrário.  Sim!  A  língua  dá  ao  escritor  a  possibilidade  de  servir  a  Deus corrigindo-o,  de  servir  ao  homem  e  de  vencer  o  diabo,  inimigo  de  Deus  e do  homem.  A  impiedade  e  a  desumanidade  podem  ser  reconhecidas  na língua. Quem se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal. (LORENZ, 1983, p. 84)
As palavras de Rosa são esclarecedoras sobre o sentido que a literatura tinha para  ele.  Também  são  esclarecedoras  para  o  crítico  que  se  defronta  com  o problema do engajamento do escritor, além de lançar luzes sobre a compreensão de seu  regionalismo,  tão  repetidamente  categorizado  com  a  rubrica  de  universal,  mas tão  escassamente  cotejado  com  as  convicções  do  escritor  sobre  o  mundo  e  sobre sua arte. Para nós, estas palavras são eloqüentes indícios comprobatórios de nossa hipótese  de  ser  o  arquétipo  mítico  de  Augusto  Matraga  originário  da  compreensão que  o  escritor  tinha  acerca  da  natureza  do  homem:  um  ser  imortal  em  busca  da iluminação, travando combate com as  imperfeições que lhe obstam o caminho.
Cabe  ainda  analisarmos  o  impacto  dos  conhecimentos  alquímicos  sobre  a criação do arquétipo heróico, conforme já definimos. Na mesma entrevista a Lorenz, ao  explicar  o  que  entendia  por  “chocar”  suas  obras,  Guimarães  Rosa  alude textualmente à Alquimia:
Escrever  é  um  processo  químico;  o  escritor  deve  ser  um  alquimista. Naturalmente,  pode  explodir  no  ar.  A  alquimia  do  escrever  precisa  de sangue  do  coração.  Não  estão  certos,  quando  me  comparam  com  Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração, é preciso provir do sertão (LORENZ, 1983, p. 85)
Como  dissemos,  os  estudos  de  Utéza  (1994),  Albergaria  (1977),  Sperber (1976) e Vilhena (1996) apontam inúmeras  correlações  entre a Alquimia, a Cabala e  o  Hermetismo  com  a  ficção  rosiana.  Além  desses  estudos,  na  biblioteca  de Guimarães  Rosa  havia  obras  de  importantes  autores  alquimistas  e  hermetistas, como demonstra a relação dos livros da biblioteca do autor em anexo ao trabalho de Sperber (1976).
Em carta ao amigo Paulo Dantas, Guimarães Rosa refere-se explicitamente a seu interesse pela doutrina secreta da Alquimia, além de reafirmar sua crença na reencarnação:
Acredito  que  Krishnamurti  seja  a  segunda  encarnação  de  Cristo.  Estudo muito as doutrinas. A sabedoria oriental me fascina. Não foi à toa aquelas epígrafes  de  Plotino  ou  de  Ruysbroeck,  o  Admirável  para  meu  Corpo  de Baile.  São  um  complemento  da  minha  obra.  Sou  um  contemplativo fascinado pelo Grande Mistério, pelo Anel ou a Pedra Brilhante. (DANTAS, 1975, p.26)
A  idéia  norteadora  da  alquimia  é  a  conquista  da  Pedra  Filosofal,  capaz  de transmutar  o  vil  metal  em  ouro  e  de  produzir  o  Elixir  da  Longa  Vida.  Entretanto,  a Pedra Filosofal era uma metáfora da transmutação do alquimista. Ao longo de seus experimentos  e  meditações,  a  alma  do  operante  elevava-se  em  conhecimento  e moralidade  crescentes  até  atingir  a  plenitude  da  iluminação  (a  transmutação  em ouro);  ao  menos  este  era  o  conceito  daqueles  que  a  consideravam  uma  ciência acima  dos  interesses  materiais  do  ouro  e  da  longevidade.  Em  essência,  o simbolismo  alquímico  implica  a  idéia  de  ascese  espiritual,  como  constatamos  em Cirlot (2005):
[...]  Substancialmente,  era  um  processo  simbólico,  no  qual  se  buscava  a produção  de  ouro,  como  símbolo  da  iluminação  e  da  salvação.  As  fases essenciais  eram  assinaladas  por  quatro  cores,  assumidas  pela  ‘matéria-prima’  (símbolo  da  alma  em  seu  estado  original):  negro  (culpa,  origem, forças  latentes);  branco  (magistério  menor,  primeira  transformação, mercúrio); vermelho (enxofre, paixão); às quais sucedia o aparecimento do ouro.  [...]  a  evolução  alquímica  se  resume,  pois,  na  fórmula  Solve  et Coagula  (analisa  tudo  o  que  és,  dissolve  todo  o  inferior  que  há  em  ti, mesmo  que  te  arrebentes  ao  fazê-lo;  coagula-te  com  a  força  adquirida  na operação anterior. À parte de seu simbolismo específico, a alquimia se nos apresenta  como paradigma de todo  trabalho. Mostra que em todo o labor, mesmo no mais humilde, as virtudes se exercitam, o ânimo se tempera, o ser evolui. (CIRLOT, 2005, p. 72-73)       
O trabalho, como via da transformação íntima, é a idéia contida no conselho que  o  padre  dá  ao  moribundo  Nhô  Augusto  a  fim  de  que  este  mude  de  vida  e alcance a salvação (iluminação):
—  Você  nunca  trabalhou,  não  é?  Pois,  agora,  por  diante,  cada  dia  de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele... (ROSA, 1969, p. 336)
A  Alquimia  filosófica  é  compatível  com  o  simbolismo  contido  no  modelo  arquetípico do herói mítico descrito pelo monomito. O afastamento do herói de seu  mundo  comum  e  as  provas  por  que  tem  de  passar  possuem  função  análoga  à  função  das  etapas  previstas  para  a  obtenção  da  Pedra  Filosofal  que,  no  caso,  corresponde à glorificação do herói e seu conseqüente reconhecimento.
Acreditamos  que  a  influência  do  simbolismo  alquímico  também  tenha  contribuído para a criação do status mítico de Augusto Matraga, em razão da idéia da ascese por meio do esforço e não da Graça gratuita. Ressaltamos, inclusive, que entre as obras alquimistas encontradas na biblioteca de Rosa “não existe nenhuma destas obras de alquimia operatória [...] que poderiam deixar entender que Rosa se entregava a outra alquimia além da verbal” (UTÉZA, 1994, p.37).
Há mais um dado biográfico de Rosa que nos faz pensar sobre a influência da  concepção  das  possibilidades  evolutivas  do  homem  à  medida  que  burila  seu espírito sob o influxo de provas iniciáticas. Este dado é a provável filiação maçônica do  escritor.  Utéza  (1994),  inclusive,  credita  seu  interesse  sobre  metafísica  a  sua filiação à Maçonaria:
O  interesse  que  Guimarães  Rosa  dava  á  metafísica  é  comprovado,  em primeiro  lugar,  pelo  seu  engajamento  maçônico,  que  remonta provavelmente à sua estada em Barbacena em 1934, como deixa entrever a  alusão  feita  no  discurso  de  posse  na  Academia  Brasileira  de  Letras  — ‘Barbacena, o nosso lugar geométrico’ (UTÉZA, 1994, p. 27) .
Como outras sociedades de mistério, tais como a Teosofia e a Rosa-Cruz, a Maçonaria  é  uma  sociedade  iniciática  e  filosófica.  Não  é  correto  considerá-la  uma religião,  ou  seita,  embora  a  condição  de  ateísmo  do  candidato  seja  realmente impeditiva  de  sua  filiação  à  Ordem.  Além  disso,  a  filosofia  maçônica  é  eclética, bebendo  nas  águas  da  Cabala  judaica,  nas  Religiões  de  Mistério  egípcio-greco-romanas e no Hermetismo alquímico medieval e renascentista.
Em  linhas  generalíssimas,  o  propósito  da  Maçonaria  é  a  transformação  do caráter humano por meio de iniciações. Os graus maçônicos (trinta e três graus no  Rito  Escocês  Antigo  e  Aceito)  correspondem,  analogicamente,  a  degraus  em direção  à  evolução  contínua.  O  princípio  evolutivo  é  representado  pela  escada  de Jacó,  que  também  pode  ser  associada  à  máxima  alquímica  da  espiritualização  da matéria e da materialização do espírito.
O  objetivo  da  ascese  maçônica  é  atingir  a  felicidade,  garantida  quando  os homens  estiverem  aptos  a  promover  a  liberdade,  a  igualdade  e  a  fraternidade. Parece ser este o significado que a evolução espiritual possui para Rosa:
O ensino central do Cristo, a meu ver (o do “Reino do Céu” dentro de nós) é: 1) o domínio da natureza, a começar pela natureza humana de cada um — pela fé, que é a forma mais alta e sutil de energia, à qual o universo é plástico;  2)  o  amor,  possibilitando  a  coexistência,  sem  o  mínimo  sinal  de atrito,  conflito,  desarmonia,  destruição  ou  desperdício.  Sobre  esta plataforma,  o  Céu,  as  possibilidades  infinitas  de  um  sempre-evoluir,  em plenitude,  prazer,  alegria  ininterrupta;  cada  um  invulnerável.  (DANTAS, 1975, p. 9).
Outro simbolismo maçônico que, a nosso ver, pode ser associado à trajetória do  herói  mítico  é  a  metáfora  da  pedra  bruta  e  da  pedra  polida.  A  pedra  bruta representa  as  imperfeições  humanas  que  devem  ser  buriladas  pelo  indivíduo  que deseja aperfeiçoar-se. Após trabalho árduo e constante, a pedra bruta converte-se pedra  polida  ou  talhada,  representação  daquele  que  atingiu  o  estado  de perfeição.
 Este simbolismo corresponde à necessidade de o homem ter de ser lapidado através  das  provas  iniciáticas,  a  fim  de  revelar  seu  esplendor.  Este  parece  ser  o caso  de  Augusto  Matraga  que,  a  princípio,  era  um  malfeitor,  responsável  por  atos altamente  condenáveis,  mas  acaba  por  se  transformar  em  herói,  por  meio  do autodomínio,  com  o  conseqüente  aperfeiçoamento  de  seu  caráter.    A  idéia  da passagem da pedra bruta à pedra polida tem analogia com o princípio esotérico da reencarnação, princípio este,  como vimos, esposado por Guimarães Rosa.
A biografia de Guimarães Rosa prova, à exaustão, o interesse que o escritor tinha  pelas  religiões  e  pelo  esoterismo,  bem  como  sua  crença  na  participação  do sobrenatural  em  sua  arte.  Suas  declarações  revelam  uma  concepção  existencial regida  pelo  mistério,  cuja  única  certeza  consiste  na  imortalidade  do  espírito  e  em sua possibilidade de evolução contínua ao longo de inumeráveis experiências."
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Fonte:
ALEXANDRE GONÇALVES PEREIRA: “A arquitetura mítica da narrativa rosiana: as raízes do monomito na travessia heróica de Augusto Matraga”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora  da  Pontifícia  Universidade  Católica  de  São  Paulo,  como  exigência  parcial  para obtenção do título de Mestre  em  Literatura  e  Crítica  Literária  sob  a  orientação  do  Prof.  Dr. Fernando Segolin). São Paulo,  2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público 
 
 
 
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