Lima Barreto e o meio carioca



“Conjunção pior não poderia ter acontecido que a ocorrida entre a sociedade carioca da Belle Époque, de gosto frívolo e prática excludente, e o escritor Lima Barreto. Este, é bom que se deixe patente, pois tudo, nessa relação, se desenrolará pelo prisma da cor, ao menos segundo sua ótica, mulato, de extração social pobre, aliava inteligência perspicaz à uma consciência aguda e reivindicatória, desconcertando a elite carioca que ousasse ouvi-lo. Sim, porque a maioria não lhe dava crédito. Seja pela sua agressividade verbal, muitas vezes, expressa pela crítica ácida, pela ironia desvelada, ou pelo sarcasmo caricatural puro e simples; seja pelo arrivismo da sociedade que considerando o lugar donde ele falava (do subúrbio), não o considerava; seja ainda porque nem sempre bem-nascer coincide com inteligência, tampouco poder econômico com cultura erudita.

Verdade é que muitos não o acompanhavam no raciocínio intelectual. Daí aumentar o cerceamento a ele causado pela inveja. Ora, se entrar em descompasso com a sociedade e ser por ela perseguido pode ocorrer a qualquer mortal, o que não aconteceria a um mulato, de extração humilde, sem graduação, e com potencial intelectual, que de fato o tinha e falava o que lhe vinha à têmpora? Deveria causar um ódio mortal às classes dominantes da capital federal de então. Pensa-se aqui que Lima Barreto representou para a sociedade brasileira, das duas primeiras décadas do séc. XX, o mesmo que Nietzsche representou para a sociedade alemã do séc. XIX ou Sartre, para a francesa do séc. XX, guardando as devidas proporções, é claro. Inteligência percuciente, consciência aguda, crítica pertinente e impiedosa. Mas talvez, pelo viver desastroso, fosse melhor substituir o último por um Rousseau, que viveu ao léu na opulenta sociedade francesa do séc. XVIII, tendo por algoz mor o sádico Voltaire. Enquanto contra Lima havia toda uma sociedade tacanha, corrupta e de exígua inteligência, para quem inteligência e cultura nada valiam in terra brasilis. O que contava mesmo era “esperteza” e “puxa-saquismo” para a “cavação”. Por essa incompatibilidade de valores, a sociedade o esnobava com a fria indiferença; ele por sua vez nunca a perdoou, e criticava-a destilando toda sua frustração, culpabilizando-a pelo desastre da cultura nacional, pelo amadorismo vicioso da política, pela miséria da população, também pelo seu bovarismo.

Ainda no que respeita a sua relação com a sociedade, vale fazer um rápido paralelo com outro autor do seu tempo, João do Rio. Se em talento e independência não se deve comparar a Lima Barreto, em termos de polêmica não fica muito atrás. No entanto, este, como visto, era execrado socialmente, ao passo que aquele estava no seio social. Que razão jaz sob esta interface humano-social? Há quem se aproveita desse fato para, como de costume neste país, advogar que não há racismo nesta terra de Santa Cruz. Com as teorias mais “estapafúrdias” possíveis. Antes que se adiante qualquer julgamento sobre um ou outro, é justo proceder uma certa compreensão da personalidade e práxis social de João do Rio e de Lima Barreto à medida do possível, uma vez que o último é o objeto do presente estudo.

A princípio vale ressaltar que João do Rio era figura controversa por demais. Monteiro Lobato chega a afirmar em carta a Lima Barreto: Cá entre nós: não sou literato, nem quero ser, porque João do Rio o é (CRII,1956:55). Mais adiante Lima Barreto torpedeia-o nestes termos.

Embora o João do Rio se diga literato, eu me honro com o título e dediquei toda a minha vida para merecê-lo. (...) Por falar em semelhante paquiderme... eu tenho notícias de que ele já não se tem na conta de homem de letras, senão para arranjar propinas com os ministros e presidentes de Estado ou senão para receber sorrisos das moças brancas botafoganas daqui – muitas das quais, como ele, escondem a mãe ou o pai
(Idem:56-7)

A crítica ainda prossegue com outras considerações lítero-humano-intelectual. Logo depois é a vez de Monteiro Lobato voltar à carga desabonando o indivíduo em questão. Lima. (...) Não podes entrar para a academia por causa da “desordem da tua vida urbana”; no entanto, ela admite a frescura dum J. do R. (sic) (Idem:70). Ainda é cedo para fazer conclusões, pois são apenas duas pessoas, na troca de correspondência, tecendo comentários sobre uma terceira; contudo, os indícios de que o comentado e seus protetores baseavam seus contatos no relativismo utilitarista são fortes. O tom da conversa não parece fazer parte da “Candinha”, está mais para a citação no comentário de uma situação envolta de injustiça.

Se se toma o crítico literário A. Bosi, encontra-se sobre João do Rio: Cronista atraente da vida carioca (...) deve ser considerado o melhor jornalista da República Velha. (...) como contista, abafa-o de todo a mundanidade sofisticada em que dispersava a própria existência (1973:144-5). Este, contudo, lhe é muito favorável.

Não é o mesmo que se encontra em M. Moisés, este é categórico: um escritor típico art nouveau, introdutor da crônica social mundana entre nós (1999:234). Sua produção é variegada abrangendo ensaios jornalísticos, crônica, artigos e contos com incursões no teatro. Alguns de seus contos gravitam sempre ao redor da degenerescência, sadismos, morbidezas, notadamente sexuais (Idem:235). E continua. Nele, tudo transpira “arte”, pose, dandismo, como se as personagens, enfartadas de esnobismo e luxúria, habitassem “paraísos artificiais”, reverenciassem esteticamente as perversões, o “horrível e macabro”, o “horror das coisas inacreditáveis”: é o mundo da “nevrose”, dos desequilíbrios patológicos (Idem). Há outros qualificativos de sua obra todos na linha dos expostos acima.

Curioso é como um homem com este histórico de vida que se reflete na literatura, conforme o que se leu; numa sociedade tradicionalista ser tido como personagem chave, muito levado em conta, a ponto de nas batidas policiais e incursões de outras autoridades agregarem-no ao grupo (Sevcenko,1983:56ss), devia prevalecer-se do título de jornalista, também. Uma cadeira na Academia Brasileira de Letras foi o castigo que recebera pela vida frívola e mundana. Quando o que se alegava contra Lima Barreto era exatamente o desregramento de vida.

Admira que tal panteão não admita Lima Barreto que por mais “esbodegado” que fosse (MG,1956:85) não seria menos constrangedor que o jornalista em questão. Salvo se ela buscasse dandis em lugar de homens de letra, o que parece plausível. Ainda segundo o mesmo Lima, ela buscava generais e médicos afreguesados (VU,1956:118) para suas fileiras. Como Monteiro Lobato sugere: os imortais, a contar de Júpiter, sempre viram com indulgência os Ganimedes... (CRII,1956:70). Literariamente, a obra de Lima sobreviveu, não a de João do Rio.

Os outros textos pesquisados só corroboraram o conteúdo das epístolas entre Lima Barreto e Monteiro Lobato. Diante desse quadro uma questão se impõe; sendo ele mulato, de vida mundana, de origem não aristocrata, por que gozava desse privilégio na sociedade carioca, ao passo que Lima era ignorado? Só o alcoolismo deste não explica satisfatoriamente. Tudo leva a crer que a verdade é mais profunda, gira em torno de atitudes e posições de um e outro diante da sociedade. Lima Barreto era independente, escrevia o que julgava justo, defendendo pontos de vista próprios não raros polêmicos, com intuito de fazer arte de qualidade e de pô-la a serviço da sociedade defendendo os sem-voz: pobres, negros, suburbanos; carregando nas tintas terminava por escandalizar a sociedade de práticas tartufas.

João do Rio, por outro lado era o típico jornalista mimético que se adaptava ao gosto do leitor, fazendo a imprensa-marron, bajulando os figurões políticos, os fornecedores de sinecuras, os homens-chaves da sociedade, as senhoras elitizadas, as ociosas moçoilas casadoiras. Fofoqueiro de plantão, conhecia os deslizes da sociedade da Rua do Ouvidor à Avenida Central, bem como os segredos de alcova, de forma que, “linguarudo” e ferino, exercia influência na impressa carioca e, assim, trazia, na mão, a gente “importante” e leviana de sua época. Oferecendo assim risco com sua pena indiscreta arruinar situações mundanas. A gente que para não perder suas graças o cumulava de elogios e poderes e ele, por sua vez, os retribuía com elogios e subserviências interesseiras na imprensa, coisas que para Lima eram impensáveis. Diz este: os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos (IL,1956:191). Ou seja, souberam manter a ética e a independência. Com isso se explica porque numa mesma situação dois indivíduos com profissão idêntica, etnia e origem semelhantes têm tratamento oposto pela sociedade. O grave: esta opta pelo relativista airado."

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Fonte:
PAULO ALVES: “A FARPA E A LIRA: Uma análise socioliterária a partir de Cruz e Sousa e Lima Barreto". (Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, como parte dos pré-requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria da Literatura. ORIENTADOR: Prof. Dr.: LOURIVAL HOLANDA). Recife, 2009.

Nota
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