“Outra Beira” do narrar em A Terceira Margem do Rio



"Partindo do pressuposto, tratado anteriormente, de que haveria nos contos de Primeiras estórias um elemento agregador que, de alguma forma, os perpassa, o presente trabalho tratará, neste ponto, do conto “A terceira margem do rio”, à maneira de se evidenciar alguns aspectos que parecem aproximá-lo de “Sorôco, sua mãe, sua filha”, em uma mesma direção de leitura. Chamaremos de “elemento inusitado”, o primeiro aspecto sobre o qual desejamos tratar no tocante à aproximação dos contos. Se, na narrativa de “Sorôco”, deparamo-nos com um narrador que se questiona surpreso, no final da narrativa - “quem ia fazer siso naquilo?” (PE, p. 16) -, referindo-se à cantoria inesperada e “sem razão” que irrompe pela voz de Sorôco, em “A terceira margem do rio”, o insólito é dado a conhecer bem no início da narrativa, quando o “filho-narrador”, após rápida descrição do caráter e comportamento do pai, dá conta da decisão inusitada do mesmo em “fazer para si uma canoa” (PE, p. 27). Eis o trecho:

NOSSO PAI era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. (...) Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. (...) Era a sério
. (ROSA, 1977, p. 16) (grifos meus).

Perceba-se, pois, pelo trecho acima transcrito, que o narrador, reportando-se ao tempo passado, ou seja, narrando algo que se deu algum tempo, ao relatar as características do pai - “homem cumpridor, ordeiro, positivo” -, o faz para evidenciar que a decisão do mesmo de construir “para si uma canoa” foi algo inesperado que surpreendeu não a ele, narrador, mas a toda a família. O “inusitado” manifesta-se, assim, quando o “filho-narrador” conclui que “era a sério” (p.27) a decisão do pai. Se, no conto anterior, o narrador se apossa da forma pronominal “a gente” para colar-se ao narrado e a repete, por treze vezes, ao longo da narrativa, na “terceira margem do rio”, encontramos um narrador que recorre ao possessivo “nosso”, reiterado, também, por treze vezes, ao longo do texto. Poderíamos, aqui, rastrear alguns outros elementos que figuram em ambos os textos, como, por exemplo, o uso de palavras um tanto significativas naquele contexto como “oco”, “beira”; a figura silenciosa tanto de “Sorôco”, de “voz quase pouca” (p. 14) e do “pai” que era “só quieto” (p.27). Mas o que se quer, de fato, é insistir no ponto de vista, na figura do narrador que, assim como aquele de Sorôco, narra, tendo em vista um “lá”, no caso da terceira margem, o lugar do pai, que não permitia ao narrador recobrar sua paz e livrar-se de uma culpa, conforme ele mesmo ressalta:

De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?
(...) Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse-se as coisas fossem outras. (ROSA, 1977, p. 31).

Um dos aspectos da complexidade, atestada pela crítica, em torno de “A terceira margem do rio”, advém, a meu ver, da dificuldade em se delimitar a fonte geradora do conflito no enredo, se assim me é permitido exprimir. Afinal, quem é o protagonista? O pai que manda construir “para si a canoa especial, de pau vinhático, pequena”, “para caber justo o remador”? (p.27). O filho que não sabe de onde vem a culpa que carrega e o atormenta? O rio que é “individuado como símbolo”, conforme o próprio Rosa o atesta em correspondência? O autor, na carta a Meyer Clason, de 14 de agosto de 1967, sugere que o título do conto fosse mudado, tendo em vista a necessidade de evidenciar a figura do rio.

É a respeito do título da estória “A Terceira Margem do Rio”. Vejo que a tradução foi: “Das Dritte Flussufer”. Acho, porém, que, se possível, o preferível seria: “DAS DRITTE UFER DES FLUSSES”. (Porque o “rio”, ali, é individuado como símbolo, e deve ser destacado fortemente. Aliás, lembro-me, assim foi que o Dr. Witsch, em conversa, o traduziu.) Caso haja maneira, peço-lhe, pois, mudar. E ficarei contente e gratíssimo
. (ROSA, 2003, p.406).

Pois bem, essa delimitação da origem do conflito parece estar diretamente associada à duplicidade temporal sobre a qual o conto se constrói. Temos, ali, dois tempos sendo representados: o tempo em que o pai decide abandonar-se no rio, dentro de uma canoa, e aquele em que o filho, já com “uns primeiros cabelos brancos”, sofrendo “o começo de velhice” (p. 31) retrocede no tempo e tenta, no presente da enunciação, recapitular os fatos, para si, em um processo de auto-reflexão, ao mesmo tempo que, para os leitores, ele busca se entender e entender a sua culpa no episódio que marcara sua vida: a questão do pai.

Frise-se que é a “presença-ausência” desse pai, já que o mesmo “não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe” (p.30), antes, permanecia “naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa” (p.28), que se impõe ao espírito do filho e o obriga a narrar, a fim de se chegar ao “esclarecimento”. Essa “presença-ausência” nos faz pensar, ainda, no mito do pai primevo. Na horda primitiva, um pai que guardava para si todas as fêmeas e expulsava os filhos à medida que cresciam, faz com que esses mesmos filhos passem a odiá-lo, tramando, assim, sua morte, seguida pela sua devoração, num ato de identificação com ele. Entretanto, o assassinato teria como consequência o remorso e, assim, segundo Freud, “o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo”. (FREUD, 1974, p.171). Em “A terceira margem do rio”, a culpa que o filho sente pela “ausência” do pai se impõe, de maneira tão intensa ao seu espírito, que o pai “permanece como efígie invisível” , sempre “perto e longe” (p.28). Ainda sobre essa “presença-ausência”, é interessante notar a mudança na maneira como o filho se refere ao pai ao longo da narrativa. Quando o narrador se refere aos eventos já passados, como a decisão do pai em fazer a canoa e partir, encontramos o filho a designá-lo de “Nosso pai”. No presente da enunciação, no entanto, o encontramos a chamá-lo de “Meu pai”. Repare-se, pois, que há, aí, uma individuação do pai, e isso se deve, entre outras razões, pelo fato de que todos esposa, filhos, sobrinha, àquela altura, já abandonaram a casa, o rio e o patriarca.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na vagação, no rio no ermo – sem dar razão de seu feito
.(ROSA, 1977, p.30-31.).

Esse processo de individuação coincide, também, com a chegada dos “primeiros cabelos brancos” do filho. É exatamente quando ele atinge a velhice, quando a “vida era o demoramento” (p. 31), que a culpa, “de dor em aberto”, impõe-se-lhe ao espírito e começa a verdadeira busca do esclarecimento, conforme Adorno e Horkheimer. Esse reconhecimento se materializa, textualmente, na expressão do narrador: “E fui tomando idéia.” (p. 31). A esse respeito, é bastante elucidativa a Dialética do Esclarecimento dos filósofos, à medida que ambos entendem o mito como um esclarecimento, uma vez que é da sua natureza querer relatar, explicar, denominar, enfim, dizer a origem.

Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito. A resposta de Édipo ao enigma da esfinge: “É o homem!” é a informação estereotipada invariavelmente repetida pelo esclarecimento, não importa se este se confronta com uma parte de um sentido objetivo, ou esboço de uma ordem, o medo de potências maléficas ou a esperança da redenção.

Morais (1998), valendo-se desse conceito, analisa a travessia de Riobaldo, em Grande Sertão:Veredas, onde, segundo ela, a travessia do mito ao esclarecimento se pela representação do diálogo entre Riobaldo e o seu interlocutor, em que aquele se pergunta pelo sentido mesmo da vida. Vejamos:

De modo mais específico, vai-nos interessar aqui acentuar a travessia do mito ao esclarecimento, por via dessa encenação dramática. Ela seria capaz de garantir que a matéria mítica, de um modo primitivo, dos primórdios, que emana do narrador da experiência, por via da “memória épica”, passe, pela rememoração, como matéria transformada pelo crivo do eu, ao narrador da existência, ávido de reencontrar o sentido da vida e do destino, uma sempre indagação. Nesse “palco dramático” (....), é que então se assistiria à volta do mito, retomado por um sujeito solitário, singular e individuado que, interpretando-o, a ele retorna, para responder aos enigmas de sua própria vida.”(
MORAIS, 1998, p. 51).

Percebe-se, assim, a atualização e a importância do mito, uma vez que o sujeito, diante da impossibilidade de conhecer o mistério do mundo e a precariedade da vida, tenta buscar a si próprio, questionando-se, voltando à origem, das coisas e dos fatos.

A narrativa do “filho”, em “A Terceira Margem do Rio”, não é outro senão o mesmo trabalho a que se prestava a matéria mítica nas sociedades ditas primitivas, por exemplo. O mito é forma e, como tal, organiza o caos, levando o sujeito a se lembrar daquilo a que chamamos conteúdo - nas palavras de Antônio Candido, “o conteúdo atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar, devido à coerência mental que pressupõe e que sugere”. (CANDIDO, 2004, p. 178). Narrando, o filho dá forma à sua angústia e procura entender a culpa que sente. Culpa que parece manifestar-se em dois momentos do narrar. Primeiro, quando o pai resolve fazer a canoa e lançar-se ao rio, mas, antes, faz um gesto que o convida [o filho] a ir junto. Contudo, o convite é “denegado” mais por medo da mãe do que propriamente pelo desejo.

Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim e me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: -“Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa? Ele retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás
. (ROSA, 1977, p. 27-28).

O segundo momento é quando o filho, já mais velho, estando no seu perfeito “sentido” e sendo o único que restara daquela casa que “no tempo, ainda era mais próxima do rio” (p. 27), resolve tomar o lugar do “Pai”, na canoa, avocando-o: “Esperei. Ao por fim, ele apareceu, e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali de grito.” (p.31).. Todavia, ao ver o pai que figurava vir “da parte do além”, acenando concordar com a proposta feita pelo filho, este foge, desesperado, recusando, assim, o convite para ocupar o lugar na canoa, pela segunda vez.

-“Pai, o senhor está velho, fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades,eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...”
E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou de pé. Manejou remo n’ água, proava para concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado (...) Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar a vida, nos rasos do mundo. (ROSA, 1977, p. 32). (negritos do autor).

Note-se, pois, que o recolher dos fatos passados, via rememoração, não aplaca a culpa do narrador que se pergunta “Sou homem depois daquele falimento? (p.32), depois daquilo que “não foi”, isto é, de não ter ocupado o lugar do pai. À pergunta do “filho” ecoa aquela feita por Riobaldo ao seu interlocutor no final de sua narrativa “-O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!”(ROSA, 1980, p.460). E a palavra final, fechando a estória, retoma o presente da narração “Sei que agora é tarde” (p. 32) e confirma a vitória da culpa sobre o homem. Rememorando, o narrador volta à origem e de lá, esclarecido, reconhece de onde vem a sua culpa, mas não consegue vencê-la, pedindo, por último, que o depositem, depois de morto, “numa canoinha de nada, nessa água”. (p. 32). Resta-nos lembrar, com Vernant (VERNANT, 2001, p.239), que as águas doces são revestidas de valor primordial, para muitas civilizações, além dos gregos, devido ao seu caráter duplo: fluidez e ausência de forma que simbolizam o estado original do mundo, onde tudo estava uniformemente diluído e confundido em uma mesma massa homogênea, mas que também guarda o princípio das gerações sucessivas, devido ao seu caráter úmido. Assim sendo, não poderia ser outro o desejo do filho: que o depositem “nessa água, (atente-se para a fluidez do rio: “e o rio-rio-rio, o rio pondo perpétuo”, plasticamente representada pelo espelhamento da palavra. Da direita para a esquerda ou vice- versa, o rio encontra com a letra anterior e forma um só, “pondo perpétuo”), que não pára” (p.32)."

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Fonte:
Maria do Rosário Figueiredo: “DA TRAGÉDIA AO MITO – UM CAMINHO DE VOLTA NA LEITURA DE PRIMEIRAS ESTÓRIAS”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação da Profª. Drª. Márcia Marques de Morais). Belo Horizonte, Minas Gerais, 2009.

Nota
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