Poesia e religião



A série "Fundo do Baú - Literatura" traz mais uma vez um texto do grande poeta brasileiro Carlos Drummond, desta vez versando acerca da influência da religião na poesia. O texto foi escrito em 1926 no periódico literário "A Revista", que o belíssimo site da Biblioteca Brasiliana - USP disponibiliza gratuitamente em formato digital na Internet.
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Poesia e religião
Por: CARLOS DRUMMOND

"O espírito religioso vai readquirindo os seus direitos no campo da poesias. Esta afirmação talvez provoque protestos, mas estou certo que também encontrará apoiados (Muito bem! Muito bem!). Não é difícil prová-la. Provo. Não tenho sobre o assunto nenhum ponto de vista sectário. Isto é o essencial. Constato apenas. Confesso que a religião não faz parte de minhas preocupações habituais. Ainda não cheguei à idade de crer pela segunda e última vez, isto é, definitivamente. Os moços não têm tempo de ser religiosos; poderão sentir no máximo pressentimentos religiosos. Sua missão natural é destruir os mitos da infância, para reconstruí-los mais tarde, na idade madura. Na idade madura o homem regressa à religião. Não tem outra ciosa a fazer. Faz bem. É um crente desiludido, mas é um bom crente. Falo dos espíritos indagadores. Os outros nunca duvidaram... E sem dúvida não pode haver convicção generosa. A duvida é a semente de tudo. A negação, esta eu não compreendo. Mas como dizia...

Como dizia, encontro na poesia moderna a influencia frisante da religião. Entendamo-nos. Absolutamente não foi minha intenção afirmar que os poetas modernos são uns carolas ou uns savanarolas. Indiquei uma influência. Esta influência existe, verifica-se, mas não domina exclusivamente. Poderia acrescentar que ela ó um produto dos dias feios da guerra que o mundo inteiro viveu, porém acho isso mais discutível. A guerra não foi um fenômeno à parte, gerador de outros fenômenos igualmente positivos e catalogáveis. Foi uma conseqüência, como conseqüência tem sido tudo que depois vem sucedendo. Só uma longa e intensa fermentação espiritual poderia dar em resultado a dolorosa tolice dos exércitos que se espatifaram e dos povos que brigaram por um ideal muito bonito mas que afinal de contas... pilhérias! Tudo isso vem de longe e é bem possível que a guerra não tenha acabado. Mudou de piano ou de cenários. São imprevisíveis os destinos do mundo dito civilizado, num raio de 100 anos apenas. Prefiro silenciar sobre este ponto e lembrar somente que a revivescência do espírito religioso, não nas massas porém nas elites, tem sua origem em fatores complexos que muito antes da guerra já se faziam sentir e que se resumem todos numa pavorosa desorganização dos valores morais e intelectuais. Irra que ninguém mais se entendia! Paulo Valery em seu saboroso “Varieté” procura descrever o que era a Europa de 1914: “Cada cérebro duma certa classe era uma encruzilhada para todas as espécies de opinião; cada pensador, uma exposição universal de pensamentos. Havia obras do espírito cuja riqueza em contrastes e impulsões contraditórias faziam pensar na iluminação desesperada das capitais naquele tempo; os olhos pegavam fogo e aborreciam-se...” Tudo isto somado multiplicado levado ao infinito provocou reação fulminante que se esboçou com a guerra e irá Deus é quem sabe onde. Deixemo-la ir e fixemos o papel do espírito religioso na poesia moderna.

No Brasil há evidentemente um equívoco a respeito da natureza das ralações entre estas duas palavras: poesia e religião. Li há pouco um artigo do estimável Sr. Jackson de Figueiredo (um bom espírito; um espírito com quem se pode contar) e pude ver até onde leva esse equívoco. Leva ao ponto de confundirmos poetas religiosos com religiosos poetas; os primeiros são raros; os segundos proliferam e dão mostra quase sempre de estreiteza de vistas, cantando por extenso a obra da criação, com louvores particulares a cada «florinha mimosa» e a cada “colibri adejante” e esquecendo... a mulher. Lamentável esquecimento! Mas isso é lá com eles. O fato é que não tivemos até agora nenhum poeta religioso.

—E Alphonsus de Guimarães?

Alphonsus de Guimarães foi admirável poeta lírico, de inspiração melancólica e mesmo fúnebre; escreveu “Kiriale”, “Dona Mística”, “Septenario”, mas não se pode dizer que o dominasse nenhuma das grandes preocupações de caráter religioso que tornam inconfundível a produção dum Paulo Claudel, por exemplo. Em que passo de sua obra o poeta se prepõe como tema a finalidade do homem ou os grandes trabalhos espirituais exigidos para sua purificação ou o sentido místico das coisas ou qualquer outra questão da mesma ordem? O que o seduzia na religião ou melhor no catolicismo era a liturgia a pampa do cerimonial o aparelhamento suntuoso com que a Igreja cativa até os mais libertinos, convidando-os á maior das volúpias, que é a da libertinagem estética. Compre notar ainda que ele se alistou numa escola onde Verlaine dava o tom cantando “O mon Dieu, vous m'avez blessé d'amour” e que assim, compondo louvores á Virgem, obedecia muito menos ao temperamento que á moda. Não vou ao extremo de negar a religiosidade de Alphonsus. Mas era a de todos nós que recebemos infalivelmente a educação cristã. Tenho meditado sobre sua obra. E cada vez me convenço mais que Alphonsus foi um grande lírico vindo antes do tempo. Não achou a sua expressão. Dessem-lhe o material de que dispõe o poeta moderno, dotado de recursos críticos incomparáveis, terrivelmente bem informado sobre a menor de suas impulsões e ao mesmo tempo respeitando o elã primitivo dessas impulsões e... os senhores veriam.

Conversemos. O responsável por toda a poesia moderna em França e nos países que lhe sofrem a influencia é o malogrado Sr. João Nicolau-Arthur Rimbaud. Deste jovem se dizem coisas admirabilíssimas, inclusive a de que foi a inteligência mais diabolicamente livre que já penetrou na poesia francesa. Tenho muito medo de medalhões, credo! Mas impossível negar. Cocteau irônico fala no “pecado original de Adão-Rimbaud e Eva-Mallarmé”. Como todo pecado, principalmente o original, fecundíssimo. Rimbaud projetou-se violentamente em nossos dias. Sua garra aparece em tudo. Mario de Andrade: “Não imitamos Rimbaud. Nós desenvolvemos Rimbaud. ESTUDAMOS A LIÇÃO RIMBAUD”. Esta advertência é útil.

Parecia absurdo senão impossível tirar da obra desse “danado”, como a si próprio se chamava ele, a menor semente de misticismo. Paulo Claudel tirou: “Arthur Rimbaud foi um místico “em estado selvagem”, fonte perdida brotando dum solo saturado”. E humildemente se confessa seu discípulo e converte-se ao catolicismo dominado por sua influencia. Atentando em Claudel podemos observar bem o caráter religioso da nova poesia, onde o criador de “Tête d'Or” tem lugar representativo de primeira ordem. Há um espiritualismo difuso, tendendo para o ideal católico no citado Claudel, em Max Jacob e tantos outros; para um misticismo vago sub-reptício envolvente, que nos reserva surpresas, e nos aparece de sopetão nas páginas de muito profano desabusado; e para movimentos de sentido social fortemente vincados de espírito religioso. Este ultimo é o caso do unanimismo, com que Romains, Duhamel, Vildrac, etc., nos propõem um fortalecimento da solidariedade humana, pela criação duma “consciência coletiva” agindo sobre cada indivíduo e o impelindo a comungar no todo. Aspiração religiosa iniludível. Sinal dos tempos.

A' Ia fin tu es Ias de ce monde ancien.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
La relígion seule est restée toute neuve Ia religion
Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation
Seul en Europe tu n'es pas antiqne ô Christianisme
L'Europeén le plus moderne c'est vous Pape Pie X”

exclamava Apolinaire um pouquinho antes da guerra E a idéia deste poeta católico é retomada e desenvolvida pela gente de depois da guerra, ansiosa de explorar as riquezas dum espiritualismo latente e generalizado. Max Jacob: “Tudo que é essencial sobre o coração humano já foi ditos nos Evangelhos.” Etc. Etc. Os poetas de origem judaica trazem a esse movimento uma contribuição tanto mais intensa quanto excitada pelo temperamento mesmo da raça. Edmundo Fleg e André Spire entoam hinos furiosos a Israel Não esquecer que grande parte da literatura francesa é escrita pelos judeus.

Renascença religiosa? Advento duma nova interpretação do cristianismo, ainda em período de larva? É bem possível. É mesmo muito possível. Não serei eu quem trate do assunto grande. O meu é particular.

Ao lado das duas tradições, perfeitamente legitimas: clássica e romântica, em refluxo continuo e rítmico, haverá talvez duas outras: religiosa e profana (ou racionalista), que também se sucedem e não se destroem. Tendemos para o classicismo.de que adquirimos uma concepção mais depurada e fecunda; não será demais que simultaneamente se esboce uma volta à religião, e no mundo ocidental quem diz religião diz cristianismo. Nossos filhos verão.

Seguramente, o grande problema da atualidade em poesia é conciliar o espírito critico, cada vez mais absorvente e dominador, com as imposições e imperativos do espírito religioso. Dizem que a fé exige a virgindade do cérebro. Ora, virgindade do cérebro = imbecilidade total. Não sei bem si é assim. Então a fé é privilégio dos carneiros? Meu Deus! Não foi para respondera esta pergunta que escrevi este artigo...

P. S.—No Brasil, onde só há pouco se esboçou a reação modernista os poetas ainda têm vergonha de confessar a sua fé. Mario de Andrade é corajoso e em 1922, na “Paulicéia desvairada”, livro de lirismo um pouco, turvo porque de combate, tem uma escapada soberba no poema “Religião”: “Deus! Creio em ti! Creio na tua Bíblia!”

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Fonte:
CARLOS DRUMMOND: “Poesia e Religião”: “A Revista”, Ano 1, nº. 3 – Belo Horizonte, janeiro de 1926, disponível digitalmente no site da biblioteca: Brasiliana - USP

Nota:
Para melhor compreensão do texto, a ortografia utilizada foi atualizada para os padrões atuais.
A imagem inserida no texto, do poeta Murilo Mendes, o qual nutria de um espírito religioso, não se inclui no referido texto.

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