A Relíquia — Romance neopicaresco no século XIX



O objetivo do Realismo: a “bengalada do homem de bem”

Sabendo que o gênero picaresco, como já foi falado, estava restrito ao contexto histórico espanhol do Século de Ouro, é preciso pensar sobre obras posteriores que apresentam traços da picaresca original. Se o pícaro é uma forma de reproduzir tipos sociais existentes, o que podemos dizer de um anti-herói realista que também se mostra como uma ficção que se pretende realidade?

Este é o caso de Teodorico Raposo, personagem de A Relíquia, de Eça de Queirós, romance muito contíguo ao Lazarilho de Tormes. Vamos então refletir sobre os objetivos da literatura realista, para compreendermos o que a torna, em certos pontos, semelhante à picaresca.

Em junho de 1871, ao criticar a “literatura de boulevard” na conferência O Realismo como nova expressão da arte, Eça de Queirós nega a produção romântica, que seria desvinculada de ideais sociais. Para o autor, a nova literatura, o Realismo, deveria objetivar a “anatomia do carácter”, cujo objetivo maior é “corrigir e ensinar”.

Eça encerra a discussão sobre a obscenidade das obras realistas — vistas por muitos críticos como uma desculpa para a divulgação da pornografia e como péssima influência para a formação moral dos leitores — quando liga a literatura à justiça e à ciência. Ele acredita que, ditando a moral em suas obras (ainda que esta apareça como conclusão final, após uma série de cenas consideradas impróprias na época), ajudará a propagar a idéia de justiça; criticando os costumes, auxiliará a ciência e a consciência (
mais uma vez o alvo da pregação da moral), e assim formará uma obra “bela, justa e verdadeira”.

Justamente por isso, Eça passou a ser considerado um discípulo de Zola. Cerca de sete anos após a Conferência, Machado de Assis iria aproximar a obra do autor português do que acreditava ser um realismo vulgar. Falando sobre O Primo Basílio, explicita sua opinião sobre o “realismo sem condescendência” de Eça de Queirós:

Os que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas.
(...)
Com tais preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue no extremo de correr o reposteiro conjugal (ASSIS, 1943).

É certo que a obra de Eça não se limita a cenas eróticas como base de pensamentos morais. Tampouco a de Machado revela o romantismo ingênuo de O Guarani, aclamado pelo brasileiro na mesma crítica. Devemos, é claro, ser condescendentes com o autor das Memórias Póstumas, visto que o brasileiro ainda não havia escrito sua obra da chamada fase madura, e ainda via com excessivo rigor o movimento realista, no qual, posteriormente, também buscou inspiração.

Interessante, no entanto, é atentar para a contradição entre o que seriam os romances românticos e os realistas. Ao se imbuir do dever de difundir a moral, mostrando os vícios e as degenerações da sociedade portuguesa para contribuir com a formação ética do leitor, Eça volta aos princípios do romance romântico. Estabelece, assim como no estilo anterior, uma “tese”: “serão castigados todos aqueles que infringem determinadas regras da moral”; e apresenta punições severas para esses personagens.

Talvez seja possível afirmar que não há muitas modificações, no que diz respeito aos propósitos da literatura, nas produções do século XIX. Até porque, apesar de absolutamente diferente do século anterior, a sociedade vitoriana era por demais específica (e de lentas transformações internas) para que mudanças no contexto social chegassem a alterar totalmente a temática literária. Portanto, intenção moralizante no Romantismo, intenção idêntica no Realismo, apenas com abordagens distintas.

A respeito disso, podemos lembrar a carta de Eça de Queirós a Teófilo Braga, em 1878. Comentando sobre O Primo Basílio, afirma:

A sociedade que cerca esses personagens — o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturarinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo e o tédio da profissão (Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade: atacai-as é um dever.
(...)
merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem. (QUEIRÓS, 1946: 43).

Eça explicita a homogeneidade da formação da sociedade lisboeta, destacando a raridade que é encontrar alguém ético como o Sebastião do segundo romance do autor. E, tal qual em um espelho, segundo suas próprias afirmações, deseja reproduzir essa sociedade para criticá-la. Mais uma vez, pode-se constatar que o intuito é realista, mas o resultado, romântico. Eça de Queirós, verdadeiro “homem de bem”, considera-se, enquanto autor, figura primordial para a reconstrução da moral e da ética na sociedade, pois será ele quem dará a “bengalada do homem de bem”, apesar de não ser romântico, visto que preza o moralismo, mas também deixa aparecer o que o moralismo não pretende mostrar.

É dessa forma que se irá construir a obra de Eça, através das teses segundo as quais a sociedade é formada, extraímos as lições de moral, sempre após a constatação de que o mundo (e o autor) já desferiu sua bengalada.

Essa lição de moral está, é claro, presente n’ A Relíquia, obra que trata de hipocrisia relacionada ao trabalho e à religião, temas tão caros ao século XIX.

A Relíquia
e a recepção da crítica

Essa obra foi, por muitos anos, desmerecida pela crítica. Apesar disso, e do descrédito da crítica luso-brasileira, em outros países o romance foi exaltado pela mistura de “sátira aristofanesca, poesia bíblica e romance” (DA CAL, 1970: 7), tanto assim que esse é o livro de Eça com maior número de edições e traduções.

Queirós, em carta a Ramalho Ortigão, diz que inscreverá o livro no concurso da Academia das Ciências de Lisboa “não porque haja sequer a sombra fugitiva d’uma probabilidade mais magra do que eu, de que me seja dado o conto” mas porque deseja “gozar a atitude da Academia diante de D. Raposo!” (QUEIRÓS, 1946: 136). Possuindo uma cadeira na Academia, o autor sente-se moral e socialmente impelido a participar com uma obra sua, concorrendo ao prêmio de um conto então oferecido. Eça, entretanto, sabia que a Academia não estava preparada para o recebimento de uma nova proposta de narrativa como é a d’ A Relíquia.

O autor estava certo. Pinheiro Chagas refutou a obra baseado em uma pretensa “inverossimilhança do sonho de Raposão”. No verbete sobre A Relíquia, do Dicionário de Eça de Queirós, Campos Matos reproduz a crítica do próprio Pinheiro Chagas,

Quer dizer: “Um pateta moderno, um devasso reles, vicioso e beato, mantido por uma tia no culto piegas de Nossa Senhora da Conceição e no sagrado horror de saias e fazendo às furtadelas as suas incursões pelo campo do amor barato” não podia alçar-se às alturas do sonho da crucificação de Cristo tal como Eça o descreve, devia era dar “um Evangelho burlesco”, isso é que seria verossímil.
(MATOS, 1988: 553).

Pinheiro Chagas, assim como o restante da Academia, acreditava que um personagem baixo, sem grandes nuances psicológicas, não seria digno da grande Revelação da religião que ocorre durante o sonho. Segundo sua visão, autor e personagem fundem-se no romance, como se isso fosse obra apenas de um descuido de Eça. Já de acordo com o autor d’ A Relíquia, a obra nunca poderia ser verdadeiramente analisada naquele ambiente.

A RELÍQUIA é certamente um livro malfeito. Às suas proporções falta harmonia, elegância e solidez; certos personagens, apenas recortados e não modelados, oferecem uma notação uniforme e esfumada; a forma não tem suficiente fluidez e ductilidade, antes por vezes encaroça e empasta, e por querer ser grave parece hirta como sucede aos grandes homens da província, etc., etc.,... Mas estes defeitos, que só podem ser sentidos por um gosto muito afinado na perene convivência das coisas de Arte, nunca poderiam provocar a condenação dum livro numa Academia que não está povoada de artistas
(QUEIRÓS, sd: v.2, 1456).

O lançamento do livro torna-se uma verdadeira contenda entre o autor e os críticos. Mariano Pina escreve, em 20 de julho de 1887, uma crítica para a revista A Ilustração sobre o novo romance, “incoerente mas sempre superior” (PINA, 1887: 210). Assim como Pinheiro Chagas, afirma que o problema do livro, passível de ser corrigido em uma segunda edição,

É a questão do eu, o ser o livro a conversa na primeira pessoa dum personagem bastante medíocre e bastante ignorante, recebendo durante sua viagem de Lisboa a Jerusalém impressões e sensações como só as recebe um espírito superior, e vendo aspectos e indivíduos através dum prisma como só pode possuir e manobrar um artista maravilhosamente dotado, como o Sr. Eça de Queiroz
(PINA, 1887: 210).

Como ressalva, Pina afirma que o terceiro capítulo é uma “obra-prima da arte escrita” e que a obra “não deixa (...) de ser o precioso invólucro que encerra dentro de si todas as notáveis e variadas qualidades do talento dum grande artista... E por isso ela é digna do nosso respeito e da nossa admiração” (PINA, 1887: 211).

Como resposta ao artigo de Mariano Pina, Eça envia-lhe uma carta, publicada posteriormente em Notas Contemporâneas sob o título A Academia e a Literatura. Afirma que as razões de Pinheiro Chagas para não aceitar o livro são “comezinhas e miudinhas, rasteiras e grosseiras, como se, em lugar de falar numa Academia, se achasse conversando num botequim diante de homens incultos, incapazes de compreender tudo o que é elevado ou profundo!” (QUEIRÓS, sd: v.2, 1459). Eça de Queirós não concorda com a escolha do vencedor entre obras extremamente heterogêneas e com o desejo da Academia de receber um Jesus mais burlesco e um Teodorico mais sério, — mas regozija-se, ainda que ironicamente, por ter sido recusado, já que toda recusa, para ele representa a inovação que a tradição representada pela Academia precisa para evoluir (QUEIRÓS, sd: v.2, 1458).

Ao ler a carta a Mariano Pina, Pinheiro Chagas levanta-se contra Eça em um artigo que é replicado em outra carta, que receberia mais tarde o nome Ainda sobre a Academia. Nela, Eça resume-se a mais uma vez explicar os argumentos da carta a Mariano Pina, uma vez que Pinheiro Chagas não os havia contestado, mas apenas concluído que a tese de Eça de Queirós estava cheia de despeito, pois “Tudo isso é ferro por não teres apanhado o conto!” (QUEIRÓS, sd: v.3, 921).

Logo após o lançamento do livro, em carta a Luís de Magalhães (QUEIRÓS, 1946: 139), Eça de Queirós também havia afirmado não gostar de seu resultado final, por faltar-lhe “um sopro naturalista d’ironia forte que daria unidade a todo o livro” e diz que seu único valor é o “realismo fantástico da Farsa”. Porém, a crítica não conseguiu perceber durante muito tempo o significado das cartas em que, ao concordar com o julgamento do concurso, Eça estava ironizando o valor dado a uma instituição incapaz de reconhecer um novo estilo narrativo. Eça era a inovação que a tradição não conseguia enxergar. Segundo Pedro Luzes, no verbete (A) Relíquia: do realismo/naturalismo a uma “estética da imperfeição”, do Suplemento ao Dicionário de Eça de Queirós,

o constante vaivém entre autor e personagem, assim como as variações de tom e estilo, não resultam da falta de atenção de um autor caquético, mas sim de uma deliberada subversão de uma forma narrativa precisa, a Realista/Naturalista, que imitava e controlava o conteúdo e a maneira do que poderia ser escrito. Por outras palavras, Eça libertava-se dos constrangimentos de uma estética literária prévia que definia, como é apanágio de todos os programas, o que devia ser escrito e como
. (LUZES, 2000: 565)

Essa subversão justifica a difícil classificação da obra, que transita admiravelmente pela farsa, sátira, literatura fantástica e picaresca. De acordo com ROSA (1963: 337), Eça era conhecedor da picaresca clássica, leitor d’ O Lazarilho de Tormes e do Gil Blas, picaresca francesa. Ainda que nada tenha dito no imbróglio do concurso, reconhecia-se como o primeiro autor de picaresca portuguesa. Se isto procede, a narrativa medieval portuguesa analisada anteriormente seria uma sua precursora.

Outros críticos também acreditam que “Eça compreendeu a estrutura picaresca espanhola muito antes da crítica” da época (FONTES, 1976:40). Todavia, apesar de ser clara a influência da picaresca na obra, talvez não seja possível afirmar tão categoricamente que Eça estivesse pensando em seguir essa linha quando escreveu o romance. Se assim fosse, em alguns de seus escritos encontraríamos menções à picaresca ou à classificação d’ A Relíquia. Ainda seguindo essa linha de raciocínio, e considerando como séria a carta a Luís de Magalhães, Eça não hesitaria em acentuar os traços naturalistas, uma vez que estes são inerentes ao pícaro, cuja trajetória aventuresca é muito mais interessante que sua origem ou sua relação com o meio. Até mesmo o episódio do sonho, causador de tantas controvérsias na crítica, seria melhor explicado pelo autor se fosse apresentado como picaresco, uma vez que é através dele que a aventura máxima de Raposão — a camisa de Miss Mary — se realiza e também porque, para o pícaro, personagem baixo, é comum que acontecimentos inexplicáveis para seu próprio proveito (como é o caso da Revelação) ocorram.

Contra a classificação da obra como narrativa picaresca, há a crítica de Carlos Reis, que, em Estatuto e Perspectivas do narrador na Ficção de Eça de Queirós, afirma que “só abusivamente esta obra pode ser identificada com um tipo de narrativa que se gerou motivada por condicionalismos socioculturais bem específicos." (1986: 203). Também falando sobre a relação entre A Relíquia e a narrativa picaresca, Maria João Simões (1996:542) cita a pesquisadora Alison Weber, que acredita não ser a picaresca um conceito classificatório, uma vez que obedece a “un sistema de posibilidades, una constelación de estructuras”. É óbvio que o contexto em que a picaresca original estava inserido não se reproduzirá igualmente em outras épocas e situações para que haja um perfeito “encaixe” de uma obra nesse gênero. É por isso que a crítica portuguesa Maria João Simões opta por classificar A Relíquia como uma paródia da picaresca, porque apresenta apenas uma parte das características do paradigma original e transforma outras.

No entanto, preferimos aqui a definição do pesquisador brasileiro Mario González: “propomos o termo neopicaresca — já utilizado por outros críticos — para a literatura produzida nos séculos XIX e XX e que pode ser lida à luz do modelo clássico espanhol, mesmo sem guardar uma relação direta com o mesmo” (GONZÁLEZ, 1988: 41).

Compartilhamos de sua visão, ao alegar que sempre que há uma “resposta semelhante” do pícaro a determinadas situações (também semelhantes às originais) e que, por isso, a denominação neopicaresca abarca o conceito de paródia do herói clássico, cavaleiro, e não paródia do próprio gênero.

Consciente ou não do gênero que representava, Eça escreveu, de toda forma, o primeiro romance “picaresco” português, representação digna da sociedade que elegia d. Patrocínio como um padrão de moral."

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Fonte:
Ana Leticia Pereira Marques Ferreira: "A RELÍQUIA — ROMANCE NEOPICARESCO VITORIANO". (Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares Maleval). Rio de Janeiro, 2005.

Nota
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Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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