A adaptação, o romance, o sertão e a trilogia



A ADAPTAÇÃO, O ROMANCE, O SERTÃO E A TRILOGIA

A questão da adaptação
“O problema da adaptação cinematográfica de uma obra literária foi tratado pela primeira vez sistematicamente por George Bluestone, no livro Novels into Film: The Metamorphosis of Fiction into Cinema (1957). Desde então, inúmeros teóricos e pesquisadores tentaram estabelecer paradigmas ou, ao menos, apontar direções para um modo de analisar o problema da adaptação. Uma das vertentes mais freqüentes é a abordagem que se centra na especificidade da mídia, onde se assume que cada mídia tem qualidades específicas que a privilegiam ou desprivilegiam, e que a tornam mais ou menos apta a contar um ou outro tipo de história (Stam, In: Naremore, 2000). Pauline Kael, por exemplo, falando das diferenças entre cinema e literatura, diz:

“Filmes são bons em ação; eles não são bons em pensamentos reflexivos ou conceituais. (...) As próprias técnicas cinematográficas parecem ficar no caminho do desenvolvimento da curiosidade. Filmes não nos ajudam a desenvolver independência intelectual.”

Este tipo de pensamento vem de uma certa tendência - existente mesmo entre os confessos cinéfilos - em estudar casos hollywoodianos, que tendem a facilitar ou concentrar a matéria literária transposta para suas adaptações, e tomá-los como modelo de deturpação cinematográfica da obra literária. Assim, o fato de filmes terem uma maior exposição comercial, contato com um maior público, de serem infinitamente mais caros de se produzir e de serem obrigados a ter uma duração comercialmente viável é um dos pontos nos quais certos teóricos se apóiam quando tocam o tema da adaptação. Outros sublinham que o filme não tem tempos definidos (a imagem em movimento está sempre no momento presente) ou não possui pontos de vista estritos (o recurso da câmera subjetiva, por exemplo, pode ser visto tanto como o uso narrativo da primeira pessoa quanto da segunda pessoa, já que o olhar do espectador, nesse caso, se confunde com o olhar do personagem).

Para o crítico e teórico André Bazin (In: Naremore, 2000), o sucesso da adaptação estava na habilidade dos cineastas de terem suficiente imaginação visual para criar o equivalente cinematográfico do estilo do original literário, fazendo assim com que uma só obra fosse refletida em diferentes formas de arte. Aqui entramos no tema da fidelidade: para alguns teóricos, o que importaria seriam os diversos graus de fidelidade que a adaptação teria em relação ao texto original: fidelidade ou à história, ou aos personagens, ou ao estilo, ou ao tom, ou ao ritmo, ou ao espírito, ou à ideologia etc. Mais recentemente, a questão da fidelidade perde muito de seu valor entre os críticos: em 1984, Dudley Andrew afirma que a questão da fidelidade ao original é, não só a mais freqüente, como a mais cansativa discussão sobre adaptação. “Aqui se presume que a tarefa da adaptação é a reprodução cinematográfica de algo essencial do texto original.”

A relação que o filme estabelece com a(s) sua(s) fonte(s) literária(s) está também interligada ao tempo histórico ao qual o livro pertence, além de ao seu próprio tempo histórico. No cinema moderno, não é difícil encontrar adaptações de obras literárias que são extraídas de seu tempo histórico para se adequarem ao mundo atual, dando a ela novos sentidos. Mas mesmo nesses casos a promessa de fidelidade pode ser buscada, mesmo sendo aparente que uma má adaptação não é má por sua infidelidade ao texto fonte, mas pela sua incapacidade de formular sentidos próprios.

Ismail Xavier, no artigo “Do texto ao filme”, afirma:

“A interação entre as mídias tornou mais difícil recusar o direito do cineasta à interpretação livre do romance ou peça de teatro, e admite-se até que ele pode inverter determinados efeitos, propor outra forma de entender certas passagens, alterar a hierarquia dos valores e redefinir o sentido da experiência das personagens. (...) Afinal, livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de se esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos”.

Para ele, as comparações entre livro e filme “valem mais como um esforço para tornar mais claras as escolhas de quem leu o texto e o assume como ponto de partida, não de chegada”.

A posição que pretendo tomar neste estudo ignora qualquer tipo de hierarquia entre o que costumamos chamar de obra original e adaptação. Para a orientação desta pesquisa, o conceito de “transtextualidade” de Gérard Genette parece-me estabelecer um paradigma ideal. Para ele, transtextualidade é “Tudo o que põe um texto em relação, manifesta ou latente, com outros textos.” A subcategoria de transtextualidade que melhor convém a este estudo é a de Hipertextualidade, onde se trabalha com dois grupos distintos de texto: o hipertexto e o hipotexto, onde o primeiro transforma e reelabora o segundo. O hipotexto aqui não é pensado como a obra original, mas como a fonte. Os hipotextos de Ulisses de James Joyce seriam, por exemplo, A Odisséia e Hamlet, assim como o hipotexto de Matraga não estaria necessariamente restrito ao conto homônimo, podendo se estender por toda a obra de Guimarães Rosa escrita antes da criação do filme.

David Bordwell, em seu Narration in the Fiction Film, divide o texto (literário e cinematográfico) em três partes: a fábula, ou seja, a história que é contada; a trama, organização da narrativa na qual a história é contada e, finalmente, o estilo, modo pelo qual as diferentes linguagens expressam a história contada. As duas primeiras categorias são comuns ao cinema e à literatura: ao contarmos a história de João e Maria (fábula), mesmo numa ordem arbitrária (trama), não nos é possível saber se se trata de uma obra literária ou cinematográfica. Mas ao adicionarmos o estilo, próprio a cada mídia, é impossível ignorar as especificidades das duas linguagens. Pois assim como é impossível falar de cinema sem falar de câmera, é igualmente impossível falar de literatura sem falar em figuras de linguagem.

É costume de certos estudiosos procurar correlações na passagem da linguagem literária à cinematográfica. Sobre isso, Ismail Xavier afirma:

“Tais observações, ao destacar equivalências entre as palavras e as imagens, ou entre o ritmo musical e o de um texto escrito, entre a tonalidade de um enunciado verbal e a de uma fotografia, colocam-se no terreno do que chamamos de estilo. Tomam o que é específico ao literário (as propriedades sensíveis do texto, sua forma) e procuram sua tradução no que é específico ao cinema (fotografia, ritmo da montagem, trilha sonora, composição das figuras visíveis das personagens). Tal procura se apóia na idéia de que haverá um modo de fazer certas coisas, próprias ao cinema, que é análogo ao modo como se obtém certos efeitos no livro (...). Esse é o terreno que a avaliação da passagem do livro ao filme, reconhecidamente decisiva, se apresenta mais complicada para o crítico, pois se trata de discutir equivalências que estão sem dúvida apoiadas na sensibilidade, na percepção pessoal (...). Embora não seja isenta de instrumentos conceituais, de uma teoria que pode guiar a análise, a esfera do estilo se põe como algo menos pacífico na obtenção de um consenso do que, por exemplo, as observações que o crítico pode fazer sobre alterações no enredo, ou sobre aspectos da forma narrativa, pois essas alterações se instalam no campo em que literatura e cinema se interceptam, encontram uma esfera comum de operações que pode ser descrita com as mesmas noções”.

Não procurarei aqui comparar estilisticamente as obras dos dois autores, por me parecer desnecessário. Não creio que Roberto Santos tenha tido a intenção ou, mesmo não intencionalmente, tenha traduzido as características marcantes da prosa roseana para a sua película. Todavia, não posso fugir à análise dos elementos textuais do filme, imprescindíveis para a boa leitura da obra cinematográfica. Por isso, além da questão da adaptação, existe também a da análise fílmica propriamente dita. Para essa tarefa eu devo usar, como ferramentas de estudo, elementos da linguagem cinematográfica como o quadro, o espaço off, a angulação, a iluminação, a profundidade de campo, a lente, a música, o diálogo, a montagem, a atuação, o roteiro etc.

A decupagem, processo de decomposição do filme em planos, é ponto fundamental na análise. Há ainda a questão subjetiva da interpretação do ator, que não deverá ser posta em segundo plano apenas porque não pode ser aferida com certo rigor metodológico. Segundo Merleau-Ponty, em “O cinema e a nova psicologia”:

“Cólera, vergonha, ódio ou amor não são fatos psíquicos ocultos no mais profundo da consciência de outrem; são tipos de comportamento de estilos de conduta, visíveis pelo lado de fora. Eles estão sobre este rosto ou nestes gestos e nunca ocultos por detrás deles.” Béla Balázs, sobre o mesmo assunto, afirma que fisionomia é o “conjunto de traços que forma uma configuração espacial e visível (a de um rosto, por exemplo) capaz de significar algo não espacial e não visível (uma emoção ou intenção, por exemplo)”

A fisionomia de Leonardo Villar, dessa forma, também será ferramenta para a pesquisa proposta.

Grande Sertão: Veredas

Guimarães Rosa assim se define em carta a Vicente Ferreira da Silva, em 21 de maio de 1958:

“Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só RELIGIÃO – mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo (tentativa de) com o ∞. O mais você deduz.”

O conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” trata, entre outras coisas, da religiosidade. Para Rosa, “a religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas. Dessa forma, pode acontecer que uma pessoa forme palavras e na realidade esteja criando religiões”.

É seguro afirmar que Roberto Santos leu Grande Sertão: Veredas como preparação para dirigir o “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”(Souza, 2000). Há, no romance, uma metafísica própria com a qual o filme de Roberto Santos dialoga, e é a partir do monólogo de Riobaldo, em sua construção do espaço mítico “sertão”, que o sertão do filme pode ser definido. A prosa roseana poderia ser então uma religião em si mesma, com a sua mitologia própria e sua metafísica interna. E na religião de Guimarães Rosa, Grande sertão: Veredas seria o texto sagrado central, assim como a Bíblia , a Tora e o Alcorão o são para outras religiões.

Em Um Lugar Do Tamanho Do Mundo
, Ettore Finazzi-Agrò afirma que Grande Sertão: Veredas, “pelo seu tamanho e não só, se apresenta como um unicum, como uma espécie de corpo estranho ao resto das suas obras.” Ele completa:

“Pensando como a ordem de publicação desenha aparentemente uma espécie de parábola quanto ao tamanho dos textos, que vai crescendo dos contos de Sagarana até “Buriti”, novela final de Corpo de baile e que precede Grande Sertão, ápice da parábola que desce, depois, nos contos das Primeiras estórias até chegar àquele polvilho romanesco, àquelas migalhas narrativas de Tutaméia. (...) A histórias das edições das obras de Guimarães Rosa parece conspirar para dar um relevo particular a Grande Sertão, visto que também o volumoso Corpo de Baile foi dividido, como se sabe, pelo próprio autor, a partir da terceira edição, em três livros distintos, quase para deixar sozinho e exemplar, extravagante na sua grandeza física, o romance”. Ele continua: “É evidente, nesse sentido, que, dentro da produção de Rosa, o “romance”, esse “romance” enorme e sem fim (ele acaba, como se sabe, com a lemniscata (∞), símbolo matemático do infinito), não pode senão preencher o lugar do Livro, no sentido de Mallarmé: ou seja, não pode senão ser colocado naquele centro ideal e impossível de localizar com certeza para o qual converge toda a prática artística de um escritor, sendo, ao mesmo tempo, o motor oculto de qualquer outra prática (...) Grande Sertão seria, por isso, o nó ao redor do qual se enrosca a escrita de Rosa e, por outro lado, o espaço ideal em que o fio do seu discurso pode ser destrançado, desenvolvendo-se em mil volutas, desdobrando-se numa continuidade que nega qualquer tentativa de fechá-lo dentro dos limites físicos do livro, daquele livro.”

O filme “Matraga”, assim, absorveria o texto sagrado para retrabalhar o conto, que apresentaria de forma apenas embrionária a metafísica encontrada em Grande Sertão. Aqui o que me interessa é o que se pode encontrar de convergências e divergências entre o hipertexto e seus hipotextos (nesse caso, o filme, o conto e o romance) e qual a relação que se estabelece entre eles.

O sertão real
Para que o sertão de Rosa, elemento essencial em sua literatura, seja delineado, é preciso examinar antes suas prováveis fontes, e conhecer os conceitos históricos de sertão:

Em estudo sobre a idéia de sertão no Brasil colonial dos séculos XVI e XVII, Maria Elisa S. Mader nos esclarece que: “De acordo com estudos etimológicos, a palavra seria oriunda de desertão; seu sentido encontra-se, segundo dicionários de língua portuguesa dos séculos XVIII e XIX, em uma dupla idéia – a espacial de interior e a social de deserto, região pouco povoada”.

Maria Elisa observa que o conceito de sertão transcendia o de uma delimitação espacial precisa. Ao discutir o imaginário sobre sertão elaborado por viajantes, missionários e cronistas, e ao reportar-se, entre outras análises, à de Sérgio Buarque de Holanda (1996) sobre a especificidade da colonização portuguesa – uma colonização de mercadores voltados para o mar, de “semeadores” - a autora analisa o sentido que o termo foi adquirindo nos diferentes textos de época. Mais do que a oposição ao litoral, é em contraste com a idéia de região colonial que o imaginário sobre o sertão se constitui. Ela afirma que a região colonial se constitui no “mundo da ordem, estabelecida por duas instâncias de poder: a Igreja e o Estado”. Como sua antítese encontra-se o sertão: “O território do vazio, o domínio do desconhecido, o espaço ainda não preenchido pela colonização. É, por isso, o mundo da desordem, domínio da barbárie, da selvageria, do diabo”.

Roberto Ventura, sobre o sertão descrito por Euclides da Cunha, afirma que ele é “tudo aquilo que está fora da escrita, da história, e do espaço da civilização: terra de ninguém, lugar da inversão de valores, da barbárie e da incultura. São territórios misteriosos, fora da história e da geografia, que não foram mapeados de forma sistemática”. (In: Lima, 1998) Oliveira Vianna, por sua vez, vê o sertão como um mundo que experimentava as conseqüências do isolamento físico e social; sua marca constitutiva seria uma espécie de rebelião permanente.(In: Souza, p 63)

Nelson Werneck Sodré segue pelo mesmo caminho: “a expansão notável dos rebanhos, nos chapadões e nas terras baixas do pantanal, não pôde ser acompanhada de perto pelo poder público. Autoridade e meio de repressão, como a própria moeda, que é símbolo do Estado, permaneceram nas cidades. Em torno delas, na razão direta da distância, campeia a impiedade” (In: Souza, p 69)

“A alta função moral do sertão é a de ser um isolador às trepidações da faixa, que se achando mais próxima ao espumejo do oceano, por isto é sujeita aos espasmos e vícios transmitidos nas trocas do comércio e pensamentos internacionais. O seu papel preeminente é o de conservador de nossos traços étnicos mais fundos, como povo vencedor de uma adaptação estupenda”. (Rangel, in: Lima, 1998)

Florestan Fernandes também nota a pouca nitidez geográfica na conceituação dos termos litoral e sertão (ou interior). Para ele, a divisão surge de um certo tipo de formação social e cultural onde o tempo, ou os contrastes entre várias fases históricas de uma civilização, seria variável mais significativa do que o espaço propriamente dito. A distância geográfica, dessa forma, é irrelevante quando comparada à distância cultural, que se manifesta nos contrastes e antagonismos entre civilização e “culturas de folk” (1979, p 123) Para Emílio Willems, a distância cultural é absoluta: “não existe um sistema de entendimentos que possa servir de base comum à civilização urbana e à multiplicidade das culturas sertanejas.” (1961, p 09)

O sertão, portanto, sempre foi visto como lugar contrário à civilização e a tudo que a ela alude: ordem, contenção, obediência a regras, formalidade.

A Trilogia do Sertão
“Entre 1963 e 1964, três grandes filmes sobre o sertão nordestino (“Vidas Secas”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Os Fuzis”) foram lançados no Brasil. Pela sua qualidade, temática e afiliação ao mesmo movimento político nas artes, foram chamados de Trilogia do Sertão.

Os filmes da trilogia tinham um forte cunho político e se centravam na pobreza endêmica do sertão. As três obras foram filmadas antes do golpe militar de 1964 e pareciam incitar, de um modo ou outro, à revolução social. Foram classificadas como subversivas e observadas de perto pelos censores, que encontravam nelas características de “veículo de propaganda de cunho marxista”.

No capítulo introdutório, afirmo que o filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” poderia ser pensado como o quarto filme desta trilogia, já que as obras se aproximavam em diversos aspectos, como na temática sertaneja do universo do jagunço, da violência e da religiosidade. Além disso, todas possuíam qualidade excepcional, receberam muitos prêmios, e estavam afinadas esteticamente com o novo cinema mundial, profundamente marcado pelo neo-realismo italiano. Mas por que “Matraga” não faz parte desse grupo?

Exemplifiquemos com o manifesto “Uma estética da fome”, escrito por Glauber Rocha em 1965, que explicitou em discurso literário o que já era visível no discurso cinematográfico dos cinemanovistas. Nele, Glauber afirma: “De ‘Aruanda’ a ‘Vida Secas’, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo. (...) O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político”.

Em “Matraga”, diferentemente dos outros, a pobreza é mostrada do ponto de vista da privação religiosa, do ascetismo cristão, e, portanto, não se configurava como problema social e político.

O tratamento da violência, presente tanto na trilogia quanto no filme em estudo, também é díspar. Na trilogia, ela está presente como conseqüência da fome e da miséria, como explica Glauber:

“Uma estética da violência, antes de ser primitiva, é revolucionária; eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora”.

A violência se apresenta como uma reação à exploração. No filme estudado, no entanto, as lutas de poder se dão entre donos de terra: o camponês explorado não é o foco da narrativa. Enquanto os outros filmes tinham como foco a injustiça, “Matraga” tinha a desonra como componente propulsor. Há diferenças, também, no tocante à migração. A existente em “Vidas Secas” e em “Deus e o Diabo” é diferente dos deslocamentos pontuais de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Nhô Augusto, dono de terras, não encarna a figura do retirante nordestino de Fabiano ou Manoel. Seu deslocamento é tampouco comparável ao do jagunço Joãozinho Bem-Bem ou ao cangaceiro Corisco, pois o que desencadeia a sua movimentação não são adversidades ou estímulos externos.

Apesar das diferenças apontadas, algo definitivamente os une. Os filmes são, sem dúvida, complementares em suas visões do sertão e do sertanejo: há o sertão opressor e o libertador, o da falta e o da abundância, o do medo e o da coragem, o da injustiça e o da honra. Seus personagens também possuem pontos comuns em suas trajetórias: Manoel, de “Deus e o Diabo”, dialoga com Matraga na questão da religiosidade e da violência. Fabiano, personagem de “Vidas Secas”, é tentado pela oportunidade de entrar para o mundo dos jagunços, assim como Nhô Augusto. Por fim e mais importante, há o compromisso com a verdade: os quatro filmes se propõem a apresentar o homem sertanejo em sua realidade mais autêntica, seja ela social, política, geográfica, psicológica ou metafísica. Na busca, eles se encontram."

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Fonte:
CLARA SANTOS LOBO LIMA: “Dois sertões: o universo roseano no filme “A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos". Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Área de Concentração Estudo dos Meios e da Produção Mediática, Linha de Pesquisa Comunicação Impressa e Audiovisual, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Ciência da Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. Ismail Xavier). São Paulo, 2008.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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