Agostinho e sua busca pelo conhecimento de Deus



“Para iniciar esta dissertação discorreremos sobre a forma como Santo Agostinho buscou conhecer a Deus e o caminho que trilhou para esta busca. Durante a primeira parte de sua vida Agostinho foi um grande estudioso, sempre procurando na filosofia respostas para suas inquietações. Ainda no início da fase adulta, antes de sua conversão, por motivo de angustiantes questões existenciais, chegou a aderir à doutrina maniqueísta, onde estudou e desfrutou os ensinamentos maniqueus.

O maniqueísmo é uma seita gnóstico-cristã que prega a existência ontológica do bem e do mal como sendo os dois princípios eternos opostos. Constatamos um exemplo do dilema da oposição entre os princípios do bem e do mal quando vemos a doutrina maniqueísta, preocupada em justificar a existência do mal numa terra criada por um Deus Bondoso, tentar isentar a este Deus pela responsabilidade do mal. Conforme o texto de Nunes Costa:

Tentando responder a tal dilema, os maniqueus vão construir uma doutrina que isente Deus de toda responsabilidade pelos males existentes no universo e no homem pelas maldades praticadas individualmente. Isso significa dizer que, na doutrina maniquéia, o problema do mal centrava-se em Deus, ou seja, Deus, autor do Bem, não pode ser causa do mal
.

Mas a complicação ainda não está completa, pois a doutrina maniqueísta é composta de uma mitologia cosmológica maniquéia, denominada ‘teologia solar’. De acordo com esta mitologia Mani foi visitado por um anjo mensageiro do Reino da Luz e a partir de então passou a se autodenominar enviado de Jesus Cristo. Sobre essa doutrina nos elucida satisfatoriamente o Professor Nunes Costa:

A mitologia maniquéia também chamada “teologia solar”, apresenta-se de forma trinitária, onde a história gnóstica do Salvador está dividida em três tempos, conforme fora revelada a Mani: “Eu sou o Paracleto” – diz Mani no Saltério Maniqueu , de Meînet Mâdi – “aquele que veio do Pai para revelar os três tempos: o inicio, o meio e o fim”.

Nos tempos em que era adepto da doutrina maniqueísta Santo Agostinho foi um perseguidor dos seguidores da fé católica. Por não obter naquela doutrina as respostas que procurava, antes, encontrar nela somente crescentes incertezas, Agostinho acaba por abandonar esse ensinamento concluindo serem insatisfatórias as teorias apregoadas.

Mais tarde percebi a falsidade desta doutrina. Mas o que era certo para mim é que elas eram incertas, e que eu as tinha considerado certas, quando perseguia a fé católica com minhas cegas acusações.
(Conf., VI, 4).

Quanto às desconfianças que levaram-no a afastar-se do maniqueísmo, apontamos abaixo:

Segundo Trapè, tal desconfiança deu-se em quatro níveis: 1 - científico (dúvidas quanto ao caráter racional do maniqueísmo ou se neste havia uma supremacia da razão sobre a fé); 2 - escriturístico (falta de fundamentação científica quanto às críticas maniquéias as Sagradas Escrituras, principalmente ao Velho Testamento); 3 - metafísico (incoerências quanto a explicação do problema do mal); 4 - moral ou psicológico (hipocresia quanto a vida ascética dos maniqueus). Ou seja, a crise maniquéia de Agostinho nascia da desconfiança ou do questionamento dos mesmos pontos que o levaram a abraçar o maniqueísmo
.

Passando a reconhecer as falhas daquele ensinamento, Agostinho constata que seus seguidores nada conheciam da verdade:

Pronunciavam continuamente tais nomes, que eram apenas sons e movimentos de lábios, mas seus corações eram vazios de verdade. Repetiam: Verdade! Verdade! E me falavam muito dela, mas não a possuíam; pelo contrário, ensinavam falsidades...
(Conf., III, 6).

Ainda sobre esta desilusão, Agostinho apregoa: “Eu tinha fome de ti, e as iguarias que, ao invés de ti, me eram apresentadas, eram o sol e a lua, tuas belas criaturas, mas sempre criaturas...”. (Conf., III, 6). Pelas palavras do Professor Doutor Nunes Costa:

Se as grandes ciências gregas, especialmente a astronomia, com sua estrutura lógico-racional, não conseguem responder satisfatoriamente aos problemas naturais do universo e do destino do homem, menos ainda a resposta maniquéia, alicerçada num misticismo incoerente e contraditório.

Cansado de se envolver com o que constatara ser apenas ilusão humana Agostinho interroga: “Onde estavas então? E como estavas longe de mim! Antes era eu que errava afastado de ti, ‘excluído até das bolotas que distribuía aos porcos’” (Conf., III, 6); estava tão frustrado que nem dos restos de alimentos que eram oferecidos aos animais sentia-se merecedor.

É através do Bispo Ambrósio que Agostinho tem um novo contato com as Escrituras Sagradas, primeiro um pouco receoso, depois mais habituado à pratica da leitura e mais absorto no estudo dos textos. No tempo em que conheceu Ambrósio, Agostinho ainda não estava convertido, e, por isso, relutava em ceder aos apelos da fé e em crer nas coisas do espírito que já se manifestavam em sua inteligência. As interpretações que escutou aumentaram o interesse agostiniano pelo estudo diligente destes textos e levaram-no a refletir sobre as coisas que havia feito no passado:

Alegrava-me também por ter aprendido a ler as antigas Escrituras da Lei dos Profetas, com interpretação diferente daquelas que antes me pareciam absurdas, quando eu acusava teus santos de terem fé em coisas nas quais realmente não acreditavam.
(Conf., VI, 4).

Deste modo sobre a conversão de Agostinho ao Cristianismo diz Nunes Costa:

As pregações de Ambrósio, se não levaram, de imediato, Agostinho à Igreja católica, lançaram luz sobre sua alma e, aos poucos, foram acabando com as dúvidas dos seus tempos de maniqueísmo e afastando-o de cair num novo erro, o ceticismo.

Eram reiteradas as recomendações que Ambrósio fazia ao povo: meditar nas Sagradas Escrituras e buscar sempre ajuda em sua interpretação; segundo ele, nem sempre era aconselhável tomar o texto em seu sentido literal, necessitando realizar-se sobre eles alguns esclarecimentos. Assim afirmava: “a ‘letra’ mata, ‘mas o espírito comunica a vida’”. (Conf., VI, 4)

Nem tudo poderia, portanto, ser tomado ‘ao pé da letra’, ou seja, em seu sentido literal, mas, era mister que se fizesse uma interpretação do que havia sido lido e tal interpretação deveria ser feita por quem tivesse o discernimento para tal:

Removido o místico véu, esclarecendo-se espiritualmente passagens que, tomadas ao pé da letra, pareciam ensinar o mal. Nada ele dizia que eu não pudesse aceitar, embora ainda não estivesse certo de que as palavras dele eram verdadeiras
. (Conf., VI, 4).

Escutando os sermões de Ambrósio, Agostinho definitivamente se convenceu da falsidade dos ensinamentos maniqueístas, começou a refletir sobre a origem do mal e sobre a realidade que é Cristo; resolveu então abandonar os maniqueus e procurar respostas a suas inquietações noutros lugares, entretanto, ainda não estava completamente convertido ao Cristianismo:

Do ponto de vista religioso, as pregações de Ambrósio causaram grandes mudanças no coração de Agostinho, se bem que ainda não estava totalmente convertido ao Cristianismo. Teria de esperar mais um pouco, passar por outras experiências, até o momento final.

Foi após abandonar o maniqueísmo que Santo Agostinho iniciou, através dos textos de Plotino e Porfírio, o estudo do neoplatonismo. Apesar de já muito inclinado à conversão católica, Agostinho ainda necessitava respostas a algumas questões de sua alma, dúvidas que trazia dentro de seu coração: “Daí que, mesmo sendo “crente”, ele prefere adiar para mais tarde o momento de fazer uma profissão plena e aberta ao catolicismo, na espera de que todas as suas dúvidas sejam dissipadas”.

Vimos que o contato agostiniano com a filosofia neoplatônica foi de grande valia no sentido de fortificar em Agostinho “as recentes aquisições advindas do pensamento de Ambrósio”. Desde então, tal filosofia o influenciou em toda sua vida, tamanho o impacto que lhe causou:

Afora as controvérsias se Agostinho leu Plotino ou Porfírio ou ambos, e ainda estes e mais outros, o certo é que o choque que experimentou Agostinho em seu contato com o neoplatonismo foi ão poderoso, que não só o seu espírito foi esclarecido e seu pensamento transformado, senão que, desde então e por toda sua vida, as teorias neoplatônicas estiveram sempre na base de sua própria doutrina.

Assim, foram de capital importância na conversão de Agostinho, tanto os sermões do Bispo Ambrósio, quanto o estudo das obras neoplatônicas. Sob estas duas influências que Agostinho se convenceu sobre os erros dos ensinamentos maniqueus e esteve cada dia mais propenso a acreditar nas Sagradas Escrituras:

Os sermões de Ambrósio e as leituras neoplatônicas haviam dissipado certos danos intelectuais causados pelo maniqueísmo
e ceticismo. Agostinho estava cada vez mais inclinado a aceitar as verdades do Cristianismo.

A conversão
Agostinho jamais desanimou de conhecer a verdade e alcançar sua compreensão. Sabia que existia algo maior do que aquilo que os sentidos humanos podiam experimentar e almejava este algo; queria compreender as coisas espirituais, ainda que de tais coisas tivesse apenas concepções humanas.

Não era eu tão insensato a ponto de julgar que mesmo essa verdade fosse incompreensível; queria ter, a respeito de todo resto, a mesma compreensão que tinha sobre isso, tanto em relação às coisas corpóreas não atingidas pelos sentidos, quanto em relação às espirituais, que eu só podia conceber em termos materiais
. (Conf., VI, 4).

Agostinho era aparentemente um homem comum, padecedor das alegrias e dificuldades que vivemos todos. No entanto, estava decidido a sanar a angustia em que vivia sua alma, sedenta por conhecer a verdade. Entretanto, os desejos carnais e o orgulho intelectual ainda o impediam de trilhar com êxito o caminho que o levou, mais tarde, a encontrar o que buscava.

Uma pessoa de grande importância na conversão de Agostinho foi Simpliciano, pai ‘batismal’ de Ambrósio, monge e confessor espiritual. Agostinho tinha-lhe imenso respeito e admiração e sempre recorria a ele para escutar conselhos de suas sabias palavras, como podemos comprovar na passagem abaixo:

Ao encontrar Simpliciano, Agostinho contou-lhe acerca das importantes descobertas que fizera ao ler os escritos neoplatônicos, mas revelou-lhe que continuava inquieto e angustiado. Este reforçou o mérito dos neoplatônicos, mas chamou-lhe a atenção para um grave erro: o orgulho (soberba) ou presunção de saber por parte desses.

Simpliciano contava com incomensurável respeitado de Agostinho e foi quem acabou por encaminhá-lo na caridade, base da humildade de coração; além de aconselhá-lo a ler as Sagradas Escrituras:

No final da conversa, Simpliciano, percebendo ser necessário que Agostinho se munisse daquela caridade em que se baseia o fundamento da humildade, quer dizer, Jesus Cristo, para se chegar à verdade, recomenda-lhe ler as Sagradas Escrituras.

Foi em meio a batalha interior que Agostinho vivia, desacreditado do maniqueísmo, comprovando a si insuficiente a filosofia platônica e inclinado a conversão católica, que acabou encontrando um amigo a despertar-lhe para novas dúvidas. Estas dúvidas eram voltadas aos motivos da existência do homem na terra e do trabalho que realiza e constituíram mais uma alavanca motivadora nas buscas agostinianas.

Numa ocasião, Agostinho ouviu da boca do amigo chamado Ponticiano, o relato de sua conversão. Conforme narrou, Ponticiano estando em Tréveris na companhia de um amigo, entrou em contato com um livro, este livro contava a história da vida de Antão e, era de tal forma comovente, que, foram impressionantemente arrebatados por sua leitura e levados à conversão.

De repente, tomado de amor sobrenatural e honesta vergonha, irado consigo mesmo, fixou os olhos no amigo e perguntou-lhe: “Diga-me, onde pretendemos chegar com todos os nossos trabalhos? O que buscamos? A que causa servimos? (...) Lia, e no seu íntimo realizava-se uma transformação que só tu notavas; e seu espírito despojava-se deste mundo, o que desde logo se tornou evidente.
(Conf., VIII, 6).

Ciente de que aquele que se afastou de Deus foi o homem e que este jamais o abandonou, Ponticiano conclui: “Mas se quiser ser amigo de Deus, eu posso ser imediatamente”. (Conf., VIII, 6). E declarou àquele que o acompanhava: “Rompi com todos os nossos sonhos e resolvi seguir a Deus a partir deste momento, no lugar onde me encontro. Se recusas imitar-me ao menos não te imponha ao meu desejo”. (Conf., VIII, 6). O também amigo e acompanhante de Ponticiano resolveu seguí-lo naquela missão, e, Agostinho pode testemunhar a conversão daqueles dois, que tudo renunciaram pela causa divina. “E os dois agora teus, e a tudo renunciando para te servir, começaram a construir a torre da salvação com capital suficiente”. (Conf., VIII, 7).

Tais fatos causaram muitas reações no espírito de Agostinho: “E tu Senhor, enquanto ele falava, me fazias refletir sobre mim mesmo tirando-me da posição de costas, em que eu me havia colocado para não me enxergar a mim mesmo”. (Conf., VIII, 7).

Agostinho estava convicto de que permanecia em obscuridade e erro, dividido pelo desejo por coisas materiais e efêmeras e confundido por seus anseios: “Acreditava que a falta de uma diretriz certa a orientar-me os passos fosse a razão pela qual adiava, de dia para dia, o momento de seguir unicamente a ti, desprezando as promessas do mundo”. (Conf., VIII, 7).

Quando começou a perceber o motivo de seu erro constatou que ele residia em sua própria fragilidade, ou na incapacidade de eleger o que era bom para sua vida: “Tinha a certeza de que, sempre que decidia querer ou não querer uma coisa, era eu e não outro quem queria, e via cada vez melhor que aí estava a causa de meu pecado”. (Conf., VII, 3).

Tomando consciência de que era a imaturidade de seus desejos que o tornava incapaz de bem escolher, agonizava perdido nas trevas de seu mutante pensamento, até que um dia vem a perceber o quanto de mal causava a si mesmo. Conforme relata:

Voltei-me para dentro de mim. Que coisas não proferi contra mim mesmo! Com que açoites de pensamento não flagrei minha alma, para que me seguisse nos esforços que fazia para ir atrás de ti! Mas ela, retinente ao mesmo tempo se recusava e não se desculpava. Os argumentos estavam esgotados, todos refutados; restava apenas uma perturbação muda
. (Conf., VIII, 7).

E com a luta que se travava no interior daquele homem começaram as mudanças. Padecia por ter de deixar as coisas e pensamentos que sempre o acompanharam, entretanto, sabia que nada podia ser feito contra o que ocorria pois, a vontade de Deus já se fazia manifesta nele, agindo em seu íntimo segundo vontade própria: “...ninguém podia interferir na luta violenta que travava comigo mesmo, e cujo resultado nem eu mesmo conhecia, somente tu”. (Conf., VIII, 6).

Com o passar do tempo Agostinho percebe que o caminho que conduz a Deus não era outro, senão, o da volição humana que necessita ser brava e corajosa na direção em que se propõe: “Com efeito, ir ou chegar junto a ti não é senão um ato de querer ir, mas com vontade forte e plena, e não titubeante e ferida, numa luta da parte que se ergue contra a parte que fraqueja” (Conf., VIII, 8).

Assim, notou em seu próprio corpo que queria converter-se à Deus. “Eu fremia de violenta indignação contra mim mesmo, por não ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus, pela qual todos os meus ossos clamavam, elevando louvores aos céus”. (Conf., VIII, 8). Agostinho percebeu quanto tempo incidira em erro quando compartilhava do ideal maniqueu e estava convencido de que naquele tempo era habitado pelo pecado: “Não era eu que praticava a ação, mas o pecado que habitava em mim”. (Conf., VIII, 8). E envergonhou-se de ter corroborado com a promoção do orgulho e da miséria humana, que, iludidos, pensam ter a mesma natureza que Deus e que acabam por afundar o homem cada vez mais em sua própria ignorância: “Enquanto desejarem ser luz em si mesmos e não no Senhor, julgando ser a natureza da alma idêntica a de Deus, tornam-se trevas cada vez mais densas”. (Conf., VIII, 10).

As tentativas de manter-se reto na busca pela conversão eram cada vez mais constantes: “Fazia outra tentativa igual a anterior, um pouco mais e lá estaria; um pouco só e logo atingiria a meta. Mas ainda não estava lá, nem a tocava, hesitava em morrer para a morte, em viver para a vida”. (Conf., VIII, 2). Já neste momento tentava com todas as forças direcionar-se para Deus, mas as paixões ainda se manifestavam verdadeiramente ditadoras prendendo-o às insignificâncias do gozo de sua carne.

Ficava preso às mais insignificantes bagatelas, às vaidades das vaidades, minhas velhas amigas que me solicitavam a natureza carnal, murmurando: ‘Tu nos vais abandonar? Mas já se reduzia a menos da metade o número de vezes que eu lhes dava ouvidos’
. (Conf., VIII, 10).

E podia perceber o outro caminho que se abria à sua frente. Era a continência dos seus sentidos que se mostrava como consoladora de seus erros e parecia sussurrar-lhe palavras nas quais Agostinho desta forma traduz: “Fecha os ouvidos às tentações imundas da tua própria carne que te prendem à terra, e deixa que elas pereçam. Elas te oferecem prazeres que vão contra a lei do Senhor teu Deus”. (Sl.112.9). (Conf., VIII, 11).

Era uma luta que se travava no espírito daquele homem; o que ele diz é que “era uma luta de mim contra mim mesmo”. (Conf., VIII, 11). Quando queria suster-se em sua própria fraqueza a continência parecia zombar dele então Agostinho sentia como se ela risse de seus esforços, desta maneira lhe rendia exortações:

Não poderás tu fazer o mesmo que fizeram estes e aquelas? Foi por ventura pela própria força que fizeram, ou por virtude de seu Deus e Senhor? Foi o Senhor Deus que me entregou a eles. Porque queres apoiar-te em ti mesmo ficando sem apoio? Lança-te nele e não temas. Ele não fugirá de ti e não cairás. Atira-te sem reservas e ele te receberá e te curará. (Conf., VIII, 12).

Aprendeu, então, com esta voz tão sapiente que brotava de seu interior, que estava incidindo em erro quando depositava a esperança de mudança em suas próprias forças. Compreendeu que não estava nele a capacidade de vencer os grilhões da carne, senão que, no poder de Deus que poderia manifestar-se em todo aquele que veemente desejasse.

A continência em tudo tinha parte, ela era manifestação da força divina voltada a redirecionar o homem. Aos poucos Agostinho foi compreendendo o que estava ocorrendo; a mudança estava em seu ápice e acabou por verter em lágrimas suas angústias. “Quando estas severas reflexões me fizeram emergir e expuseram toda minha miséria à contemplação do coração, desencadeou-se uma grande tempestade portadora de copiosa torrente de lágrimas”. (Conf., VIII, 12).

Agostinho almejava a contenção dos sentidos, entretanto, não era forte o suficiente para lográ-la por força própria: “Em meio a tantos conflitos interiores, Agostinho desesperado, fez diversos movimentos corporais. Mas, nada resolvia pois o problema não estava no corpo, mas na alma, na vontade. Era a guerra entre duas vontades: servir a Deus ou aos desejos da carne”. Sobre essa luta, encontramos ainda as palavras de Nunes Vega: “O mistério da alma, segundo a psicologia de suas Confissões, nasce destes secretos movimentos da alma que em um sentido parecem subir e aproximar-se infinitamente da Verdade mesma, enquanto em outro parecem descer e aproximar-se do nada e suas sombras”.

Na ocasião de sua conversão Agostinho estava passeando no jardim com seu amigo Alípio, afastou-se deste e foi deitar-se embaixo de uma figueira onde pode livremente dar vazão a seus sentimentos. O coração amargo e oprimido clamava a Deus por piedade: “E tu Senhor, até quando? Até quando continuarás irritado? Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda amanhã? Porque não agora? Porque não por fim a minha indignidade?” (Conf., VIII, 12).

E neste exato momento escuta a voz de uma criança vinda da casa vizinha que dizia “Toma e lê, toma e lê”; Agostinho recordou que desta maneira havia ocorrido a conversão de Antão, tendo sido orientado pelas palavras de um livro. Assim, reprimiu as lágrimas e voltou para o local onde estava com Alípio, abriu aleatoriamente o texto das Escrituras Sagradas que ali se encontrava e leu apenas as primeiras palavras do capítulo que abrira.

Em tais palavras constava: “Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus e não procureis satisfazer os desejos da carne”.(Rm 13,13s). (Conf., VIII, 12). Tomou estas palavras como sendo o socorro de Deus em auxilio a sua angústia, não precisava ler mais nada, sentiu que aquele era o sinal que necessitava e era-lhe algo mais que suficiente.

Alípio pediu que lhe mostrasse o que havia lido, vendo o texto, seguiu a leitura que rezava ‘acolhei o fraco na fé’, Agostinho, porém, não escutava o que seu amigo dizia meditando nas palavras que ele próprio recebera; e, com relação àquelas palavras afirmou: “Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse em meu coração uma luz da certeza”. (Conf., VIII, 12).

E, desta maneira deu-se a conversão de Santo Agostinho. O amigo Alípio tomou para si as palavras que seguiram no texto e, com Agostinho, firmou seu propósito. Ao voltarem para casa contaram a Mônica, mãe de Agostinho, o que havia ocorrido e ela mostrou-se radiante com o que os ouvira relatar. Em seguida, conforme o entendimento de uma pessoa que é abençoada e aberta às graças divinas ela exclamou triunfante, bendizendo ao Senhor: “és poderoso, além do que dizemos ou pensamos”. (Conf., VIII, 12).

A conversão de Agostinho deu-se tão forte e poderosamente que ele afastou-se dos trabalhos terrenos para servir a Deus na figura dos irmãos, dizendo que havia transformado sua tristeza em alegria, não apenas a alegria que lhe era desejada por sua mãe, mas, “alegria muito maior do que ela havia desejado, e muito mais preciosa e pura do que ela poderia esperar dos netos nascidos da minha carne”. (Conf., VIII, 12)."

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Fonte:
RENATA VANESSA SILVA: “A RELAÇÃO ENTRE VERDADE E CONHECIMENTO NAS CONFISSOES DE SANTO AGOSTINHO”. (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção de título de Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do Professor Doutor João Eduardo Basto Lupi e co-orientação do Professor Doutor Marcos Roberto Nunes Costa). Florianópolis, 2005.

Nota
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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