Agostinho, o Império e a Igreja



“Santo Agostinho é visto como um dos fundadores do cristianismo. Johnson (2001) afirma que depois de Paulo, Agostinho foi o que mais marcou o pensamento cristão, sendo estudado de várias formas, e ainda presente na estrutura eclesial. Le Goff (2007) afirma que Agostinho é depois de Paulo o mais importante pensador do cristianismo e o considera o grande professor da Idade Média, um de seus fundadores culturais. Boehner e Gilson (2000) o denominam mestre do Ocidente, e afirmam que é em Agostinho que a Patrística, e talvez a própria filosofia cristã, atinge seu auge.

Aurelius Augustinus nasceu em Tagasta em 13 de novembro de 354, filho de funcionário da burocracia do Império Romano, Patrício, em província romana no norte da África. Mônica, sua mãe, também santa, havia se convertido ao cristianismo, e é considerada uma das fontes de conversão de Agostinho. Para entendermos o que significava nascer em província romana no século IV, é necessário compreender o período.

O Império Romano da segunda metade do século IV estava em decadência. A força administrativa, associada às expansões militares estavam em refluxo desde o século III. Segundo Anderson (2000), a principal causa de crise do império romano foi a contradição extremada do modo de produção escravista, que aliava o progresso e o apogeu da organização imperial com as conquistas territoriais.

Uma vez refreadas as conquistas, com o império grande demais para uma coesão bélica, o modo de produção se relacionando cada vez mais com o campo, o sistema em geral entra em colapso. De um sistema escravista, baseado na conquista de terras e mão-de-obra escrava, aos poucos a mudança se dava para um sistema rural, em que a produção servil e a propriedade, interna ao império, fundamentava cada vez mais o poder, gerando um sistema fundiário e produtivo, não mais baseado em conquistas territoriais e escravocrata. É esse processo que Le Goff (2007) chama de ruralização da Europa, ao contrário do mundo fortemente urbanizado dos romanos. No lugar da cidade, urbs, a concentração populacional volta-se para a vila, o grande concentrador populacional.

A lenta fusão entre grupos germânicos tribais e as estruturas políticas herdeiras do império romano se configuravam como síntese do declínio. Para Anderson (2000), a partir do século IV cada vez mais o poder, fosse econômico fosse político, estava associado a indivíduos que estabeleciam alianças e buscavam domínios específicos de terras e homens. A idéia do Estado romano havia se perdido, e apenas títulos cada vez com menos importância em instituições cada vez mais esvaziadas ainda mantinham certa linha de existência do que fora o Império romano. A nobreza, com seu caráter de linhagem e de alianças, estava cada vez mais associada ao poder efetivo, de caráter individual, de mobilização de exércitos e de capacidade produtiva na terra. As invasões bárbaras do século V, ao contrário de serem invasões de povos completamente estranhos ao império que chegavam de forma articulada e comum, como uma tropa de assalto diante de um império romano estabelecido, se pareciam muito com as disputas internas que generais e nobres romanos, muitas vezes germanos romanizados, travavam.

Como ressalta Le Goff (2007) a aculturação entre bárbaros e romanos começara muito antes do século V, pois a mestiçagem através de trocas, casamentos e comércio havia preparado a grande mistura étnica, cultural e política e militar que os séculos V e VI trazem com a formação de reinos bárbaros. Essa fusão não aconteceu somente entre império romano e povos bárbaros homogêneos, porém os diversos povos de origem bárbara também se misturavam, tomando como base as próprias regulações romanas, como as rudimentares leis criadas pelos próprios reis bárbaros no século V e VI, com o objetivo de regular os novos súditos e controlar as terras e homens, fundamentando-se no direito romano e em muitas de suas instituições, principalmente as militares.

Apenas a preservação da cultura romana, sua erudição, filosofia, direito, arte e instituições mais específicos poderiam ser apontados como diferenciais entre o mundo germânico agora romanizado, e a existência do Estado romano. E essa preservação era realizada antes de tudo nas cidades. E estas cidades estavam cada vez mais ameaçadas pela lenta, constante e ameaçadora ocupação de grupos germânicos cada vez mais afastados da educação romana.

A primeira grande onda começou com a momentosa marcha através do Reno gelado na noite de inverno de 31 de dezembro de 406, por uma informal confederação de suevos, vândalos e alanos. Poucos anos depois, em 410, os visigodos, sob as ordens de Alarico, saquearam Roma. Duas décadas mais tarde, os vândalos tomaram Cartago, em 439. Por volta de 480, o primeiro sistema rudimentar de Estado bárbaro se havia estabelecido em solo que antes fora romano: os burgúndios na Savóia, os visigodos na Aquitânia, os vândalos no Norte da África e os ostrogodos na Itália
.(ANDERSON, 2000, p.108)

Para Aymard e Auboyer (1958), a afirmação da cidade em contradição com a escassez de recursos e o crescimento da importância da produção rural foi determinante no esgotamento do desenvolvimento técnico-produtivo. As elites romanas, imperiais, burocráticas e citadinas, não estabeleceram um Estado que pudesse congregar a distribuição das terras, o progresso técnico e uma tributação que fortalecesse o próprio Estado. O contexto militarizado e tenso, fosse interno ao Estado, fosse externo com germânicos não incorporados, exigiu uma concentração de terra e uma preocupação com uma base militar que consumiu o progresso técnico em produtividade agrícola e comercial, pois concentrou esforços políticos em exércitos e armas.

Enquanto ainda havia capacidade do Estado romano sustentar a educação e a erudição citadina, e toda pesada estrutura cultural romana, as cidades mantiveram condições de existência relativamente pacífica, embora distante do vigor do Império do Oriente, cuja capital Constantinopla ainda mantinha esplendor e pujança.

Porém, com a chegada de grupos germânicos cada vez mais distantes da cultura erudita romana, longe de estabelecer importância para o comércio, e daí para as cidades, a cultura romana clássica, fosse intelectual e artística, fosse religiosa, cada vez mais se afunda. Tanto filosofias clássicas (platonismo, estoicismo, ceticismo) quanto sínteses orientais helenistas (maniqueísmo, gnosticismo), foram apresentadas nesse ambiente citadino decadente, ganhando adeptos e estabelecendo relações de poder.

A patrística também se afirma como elemento centralizador. Como religião oficial do Império desde 313, com Constantino, o cristianismo aos poucos foi estabelecendo suas estruturas. Com os Concílios Ecumênicos de Nicéia em 325, que formulou os primeiros dogmas e condenações, e de Constantinopla em 381, que reforçou as decisões do primeiro Concílio e reafirmou as bases estruturais e dogmáticas da Igreja nascente.

Assim, A Igreja Cristã apresentava uma formulação de sentido próprio, e além disso uma estruturação política que pretendia, entre outras, ocupar o espaço cada vez maior deixado pelo Império Romano. À nova configuração sócio-política, também uma nova erudição intelectual e religiosa era necessária, com suas necessárias estruturas.

No final da Antiguidade, a Igreja Cristã, como vimos, contribuiu indubitavelmente para o enfraquecimento dos poderes de resistência do sistema romano imperial. Conseguiu isto, não desmoralizando doutrinas ou valores extra-mundanos, como acreditavam os historiadores do iluminismo, mas por seu absoluto peso temporal. O vasto aparato clerical que ela desovou no último império foi uma das principais razões da sobrecarga parasítica que exauriu a economia e a sociedade romana. Foi ainda agregada uma segunda superburocracia ao já opressivo ônus do Estado secular. Por volta do século VI, os bispos e o clero do Império remanescente eram em muito maior número que os agentes administrativos e funcionários do Estado, e recebiam salários consideravelmente mais altos. A carga intolerável deste edifício desequilibrado foi uma determinante central do colapso do Império.
(ANDERSON, 2000, p.127)

Nos séculos de Agostinho, IV e V, essa segunda superburocracia ainda estava em trabalho de aumento de desova do vasto aparato clerical. A sobrecarga parasítica expressa-se claramente em Agostinho, filho de funcionário do Estado romano, que financia seus estudos, e que vive durante 30 anos ensinando as ciências e educação romana.

Estudou, além de Tagasta, em Madaura e Cartago, sempre se destacando em seus estudos, o que em Confissões coloca como vãos, mas que contribuíram para seus livros e organização do pensamento. A formação clássica em Agostinho é reconhecida e muito de seus estudos filosóficos são tributários.

Ensinou retórica em Cartago, Roma, onde se desgostou com a realidade decadente dos estudantes, e depois Milão, onde se converteu em e foi batizado em 387. Daí funda um mosteiro, escreve regras monásticas, livros de filosofia cristã, torna-se presbítero e bispo.

Contudo, vê Roma saqueada pelos visigodos em 410, e então escreve A Cidade de Deus afirmando que Roma se afundava por si mesma, e que a Igreja resplandeceria na eternidade, enquanto morre em 430 vendo sua cidade, Hipona, sendo saqueada pelo povo germânico dos vândalos, e considerado um dos maiores pilares da Igreja Católica.

Entender esse processo de conversão de Agostinho é também entender essa lenta transição do pensamento romano clássico para o cristianismo patrístico, do estado imperial para a Igreja Católica. Contudo, a questão se torna mais complexa quando dentro do cristianismo surgem correntes e posições que provocam dissidências internas. A conversão de Agostinho pode demonstrar a própria conversão da filosofia greco-romana e do Estado Imperial na patrística e na Igreja, porém sua atividade como filósofo cristão também ilustra as contendas existentes dentro do cristianismo na antiguidade tardia.

A decadência das cidades, o excessivo peso do fisco, que arruína os pequenos proprietários independentes e os leva a solicitar o patrocínio dos poderosos capazes de protegê-los contra os extatores, acarretam o declínio da classe média e aumentam a influência da aristocracia, da classe senatorial, enriquecida pelo exercício das funções civis. O grande domínio rural converte-se no principal quadro da sociedade. Na sua vivenda, não raro fortificada e protegida por guardas particulares, servido pelo bando de seus escravos domésticos, o senhor domina inteiramente os colonos que, mediante pagamento de prestações e corvéias, exploram suas terras e pelos quais ele responde perante o Estado; os agricultores livres dos arredores ingressam na sua clientela, oferecendo-lhe devotamento e serviços. Fora destes senhorios fundiários, que escapam cada vez mais ao poder público, a sociedade se decompõe: citadinos cada vez menos numerosos e mais pobres, aglomerados agrícolas ainda mais independentes, mas prontos a aceitar a tutela de um defensor, bandos de insubmissos, escravos fugitivos e camponeses arruinados pelo imposto.

São os valores espirituais da civilização, quer religiosos, quer intelectuais ou artísticos, que no Ocidente de fins do século IV, ainda nos surgem menos tocados pela decadência. Na verdade, sob a influência do cristianismo e do que esta religião conserva de suas origens orientais e populares, a arte e o pensamento afastam-se pouco a pouco das formas clássicas, mas, em compensação, novas contribuições enriquecem-nas. A adaptação do platonismo por Santo Ambrósio e Santo Agostinho, a arte dos retratos em vidro dourado e dos dípticos de marfim da Itália do Norte testemunham, entre outras criações da época, este aprofundamento espiritual
(AYMARD E AUBOYER, 1958, p.18-19)

Os concílios de Nicéia e de Constantinopla apresentaram o símbolo dos apóstolos, a confissão de que afirmava as bases comuns dos cristãos conciliares. Isso existia quando Agostinho se converte, assim como condenações do arianismo, doutrina que pregava que Jesus não era Deus, mas a maior de todas as criaturas.

As ditas heresias, interpretações que foram tidas como contrárias à revelação pelos Concílios, possuíam adeptos e estruturas próprias. Tinham igrejas, sacerdotes e fiéis. A disputa era sobre a verdade em sua formulação mais contundente. Discutia-se não a vida, mas também a eternidade. Agostinho entrou no debate cristão com a mesma força com que se converteu. Seus escritos variaram conforme seu crescimento na fé, nas estruturas eclesiásticas e em sua investigação intelectual, pastoral e espiritual.

Após seus estudos em Cartago, Agostinho se tornou adepto do Maniqueísmo, doutrina formulada na Mespotâmia por Manes, no século III, que afirmava a existência de dois deuses, um Bom e outro Mau, e sua luta era a força da existência e da realidade. Entre os dezenove e vinte e oito anos Agostinho permaneceu maniqueu. E também essa formação e reflexão sobre o Bem e o Mal contribuíram em sua trajetória intelectual. Com a mudança para Roma e depois Milão, Agostinho entra em crise com as idéias maniquéias, encontrando fraquezas e contradições na doutrina.

Durante os nove anos que se seguiram, dos dezenove aos vinte e oito anos de idade, fui muitas vezes seduzido e sedutor, enganado e enganador, em meio Às diversas paixões, ensinando, de público, as ciências chamadas liberais e, em particular, praticando uma religião indigna de tal nome. Ora soberbo, ora supersticioso, sempre vaidoso. Ora em busca de quimérico louvor popular – até mesmo de aplauso no teatro – e dos concursos de poesia, das disputas de coroas de feno, de espetáculos frívolos e de desregramento das paixões. Ora, desejando purificar-me dessas manchas, levava alimentos aos chamados eleitos e santos, para que estes, nas oficinas de seus estômagos, fabricassem anjos e deuses que nos libertassem. Eu tinha essas opiniões e as praticava, como meus amigos, enganando a eles e a mim mesmo
(AGOSTINHO, 2006, p. 89)

A expressão da vaidade de Agostinho se colocava por seu brilhantismo como professor de retórica, e assim o aproveitamento que a decadente realidade romana apresentava. Teatro, certames poéticos, torneios diversos e todos os prazeres que na época as cidades romanas ofereciam. De outro lado, a doutrina maniqueísta oferecia consolo para o repúdio e a necessidade de conforto que Agostinho tinha, ao mesmo tempo que o jovem professor convencia amigos e trazia seguidores para a seita maniquéia. Com a crise em sua crença, Agostinho sai de Roma e parte para Milão.

Em Milão, conhece o bispo Ambrósio, e começa a frequentar seus sermões. Após uma experiência fortíssima de repensar a própria vida, se batiza em 387, e retorna para a África em 388. Na viagem, sua mãe Mônica falece na cidade de Óstia, nos arredores de Roma, satisfeita pela conversão do filho.

Finalmente, após sua conversão, Agostinho inicia seus escritos de filosofia cristã. As obras que pesquisamos neste capítulo serão pontos de referência biográfica, para entendermos o processo de elaboração de seu pensamento. Logo em Roma, em 388 inicia o De Libero Arbítrio, em forma de diálogo, aos moldes do pensamento platônico. Livro que surge com o objetivo de investigar a origem do mal, em busca da verdade. Neste livro Agostinho inicia sua sistemática libertação e oposição às doutrinas que seguia anteriormente, como o maniqueísmo, em relação à preocupação com o mal, e o ceticismo, me relação à busca da verdade.

Concluído apenas em 395, após Agostinho ter fundando um mosteiro, estar trabalhando ao lado de Valério, o então bispo de Tagaste que o ordenara, um livro que foi resultado de 7 anos de reflexão e revisão, e ponto central do pensamento agostiniano, De Libero Arbitrio torna-se uma referência na percepção da humanidade em Agostinho e de sua ação pastoral, inclusive na Igreja, quando desta vez deve enfrentar o pelagianismo.

Na Antiguidade, Agostinho polemizou contra Pelagius e sua antropologia da suficiência da natureza humana. Segundo o pensador religioso "humanista" vindo das Ilhas Britânicas, o livre arbítrio não estava necessariamente danificado, portanto o alcance da função decisória do ser humano se dava dentro dos limites da sua volição livre. Para Agostinho, esta teoria não só era empiricamente irreal – o mundo é a prova evidente de que as "más" escolhas imperavam como também implicava na falta de sentido daquilo que ele se referia como o valor da "graça de Cristo". Para o bispo de Hipona, era a ação eficaz (daí o conceito de graça eficaz) que armava o livre arbítrio para a atitude independente com relação a escravidão da concupiscência. Sem a graça sobrenatural, o ser humano só agiria pela concupiscência. E mais: o caráter contingente da graça – na realidade, uma redundância, já que se trata de "graça" – garantia a não instalação do orgulho (3a e pior concupiscência já que não havia qualquer ingerência do humano na "economia" da graça. Daí a insuportável incognoscibilidade da salvação (não um "mecanismo" razoável em ação), fazendo toda sua teoria soar como um violência contra a suficiência da natureza humana. Na realidade, a disfuncionalidade da natureza humana está exatamente nesta insuficiência da natureza humana em operar na natureza sem o componente sobrenatural (o efeito circular do enunciado é proposital): a funcionalidade humana é na verdade função do Transcendente, pois para Agostinho não se tratava de "humilhar" a natureza, mas sim elevá-la (superando-a) ao regime do sobrenatural. Sua antropologia é teológica na medida em que o ser humano é um "animal divino" e conhece a si mesmo negativamente, tanto como miserável (negatividade como "mal"), como no sentido de negatividade que descreve aquilo que um ser não é, portanto uma descrição centrada na falta.
(PONDÉ, 2001, p. 91-92)

Esta percepção do livre-arbítrio em relação à origem do mal é retomada em De Vera Religione, assim como a fundamentação detalhada da religião cristã. O conceito das concupiscências é detalhado neste livro, assim como a interioridade da presença de Deus. Escrito no período em que fundara um mosteiro em Tagasta, entre 389 e 390, antes de sua ordenação de presbítero em 391, Agostinho escreve este livro com o objetivo de conversão de um grande amigo, Romaniano, que outrora o próprio Agostinho havia convertido para a seita maniquéia.

É um livro escrito por um leigo recém convertido, porém é obra de um filósofo de 36 anos de idade, professor de renome e com um repertório intelectual capaz de objetivar diversos pontos centrais da filosofia cristã.

Nesse ponto, Agostinho se indispusera com diversas correntes filosóficas, e até mesmo certas interpretações da revelação cristã. Apesar da existência dos Concílios Ecumênicos de Nicéia e Constantinopla, a própria estrutura da Igreja ainda não estava definida. Esta era a base da presença do pelagianismo no cristianismo e também da preocupação de Agostinho em relação aos filósofos e cristãos que não atendiam às exigências dos ensinamentos dos Concílios e da própria tradição cristã ensinada por Santo Ambrósio, por Santa Mônica e por Valério.

Em 399, já como bispo sucessor de Valério, Agostinho escreve Confissões, em que faz uma revisão de sua vida, de acordo com o entendimento da ação de Deus e de como a graça de Deus pode intervir na vida humana. Enfrentando seus opositores, não apenas maniqueus e pelagianos, mas também os donatistas, Agostinho coloca seus erros e suas incoerências do passado como exemplo da misericórdia de Deus. Reafirma a questão do livre-arbítrio, porém enfoca com mais ardor a relação da graça de Deus, e sacrifício de Cristo, e não no merecimento e autonomia humanos, a redenção do pecado.

Em sua ação diante dos donatistas, Jonhson (2001) afirma que Agostinho utilizou de toda truculência e ação contundente de um bispo em sua máxima autoridade. A Igreja donatista, vigorosa e rica, foi quebrada pela ação de Agostinho. Evans (2006) afirma que durante o tempo que Agostinho se dedicou aos donatistas, foi o período que menos escreveu sobre o mal, onde discutiu sobre a graça de Deus e a felicidade.

Em 415, após ler Sobre a Natureza, de Pelágio, Agostinho escreve A natureza e a Graça, livro cujo objetivo era refutar as teses de autonomia da natureza humana em relação à graça para a libertação do pecado apenas pela prática da virtude, tese pelagiana. Agostinho, bispo que viu Roma ser saqueada, e percebendo cada vez mais os anos de decadência da civilização romana, assim como as controvérsias cada vez mais acirradas dentro da Igreja, responde ao monge bretão com acidez e dureza, afirmando a necessidade humana da Graça, condenando a idéia de autonomia humana de salvação. Neste escrito, há muito mais uma preocupação pastoral. É agora, definitivamente, o bispo que escreve, preocupado com a correta caminhada dos fiéis, e não mais o filósofo maravilhado em sua conversão. Contra Pelágio, não é um debate contra pagãos ou céticos, demais filósofos, mas sim um debate interno ao cristianismo, com conceitos e valores internos à interpretação do evangelho e dos comentadores, bispos e fiéis que buscavam a salvação na Igreja.

Por fim, após a invasão de Roma em 410 pelos visigodos, já bispo reconhecido, lido e respeitado, escreve sua vasta obra Cidade de Deus entre 413 e 426, e confere a idéia da Igreja Católica como além de uma cidade terrena, mas alarga a noção de cidade para uma instituição presente em várias cidades, além de Roma, e que tem força e vigor para enfrentar os séculos na marcha segura em direção à eternidade.

Santo Agostinho falece em 430, com 76 anos de idade, durante o ataque vândalo à cidade de Tagasta, um ano antes do terceiro Concílio Ecumênico, em Éfeso, cidade de colônia grega na Ásia Menor. Neste Concílio, em 431, definiu-se a condenação do pelagianismo e da afirmação das duas naturezas de Cristo em um mesma pessoa, a divina e a humana, salientando assim as tentações do deserto, a base das concupiscências, e a possibilidade do Cristo de aderir à vontade do Pai, afirmando que a tentação é sofrida pela natureza humana, e a plena vontade de adesão é de origem divina, o que será chamado de graça de Cristo.

Considerado um dos doutores da Igreja, expressões máxima do pensamento cristão, Agostinho fundamenta muito do que é o cristianismo. Em Retractationes, escrito entre 426 e 427, enumera 92 obras num total de 232 livros de sua autoria. Embora ainda outros santos viessem a reformular a relação entre filosofia e revelação cristã, Agostinho permanece com um dos maiores expoentes do pensamento cristão.

O grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosóficas, mas todas o tinham desiludido. Quando se lhe deparou a verdade da fé cristã, então teve a força de realizar aquela conversão radical a que os filósofos anteriormente contactados não tinham conseguido induzí-lo... Quanto aos platônicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, este censurava-os porque, tinham, porém, ignorado o caminho que conduzia: o Verbo encarnado. O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo correntes do pensamento grego e latino. Também nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento bíblico, acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento especulativo. A síntese feita por Santo Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de reflexão filosófica e teológica que o Ocidente, durante séculos, conheceu. Com uma história pessoal intensa e ajudado por uma admirável santidade de vida, ele foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando-se à experiência, antecipavam futuros desenvolvimentos de algumas correntes filosóficas.
(JOÃO PAULO II, 1998, p.56-57)"

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Fonte:
Diego Genú Klautau: “O Bem e o Mal na Terra Média – A filosofia de Santo Agostinho em O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien como crítica à modernidade”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião sob a orientação do Prof. Doutor Luiz Felipe Ponde). São Paulo, 2007.

Nota
:
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As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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