Antecedentes biográficos



ANTECEDENTES BIOGRÁFICOS

Do Maniqueísmo ao neoplatonismo
Educado como cristão, aos dezenove anos, para desespero de sua mãe, a católica fervorosa Mônica, Agostinho decide ingressar no maniqueísmo. Ao que parece, duas idéias o atraíam nos ensinamentos de Mani, sua solução para o problema do mal e sua filosofia materialista. Talvez influenciado por concepções estóicas, o fato é que Agostinho tinha dificuldades em conceber a existência de princípios imateriais, o que o teria precipitado nas mãos dos maniqueus, como ele mesmo admite (Conf. V.10.20):

Porém, o principal e quase único motivo de meu erro inevitável era, quando desejava pensar no meu Deus, não poder formar uma idéia dele, se não lhe atribuísse um corpo, visto parecer-me impossível que houvesse alguma coisa que não fosse material.

Anos mais tarde, desgostoso com a doutrina do persa Mani, decide refugiar-se no ceticismo da Nova Academia, como que a evitar suas dúvidas interiores. Sua religiosidade e seu fervor, contudo, não o mantiveram por muito tempo na negação. Foi provavelmente nos círculos eruditos da corte, durante sua estada em Milão (384-387), que teve acesso ao neoplatonismo, por intermédio dos libri platonicorum (Conf. VII.9.13): “[...] me deparastes, por intermédio de um certo homem, intumescido por monstruoso orgulho, alguns livros platônicos, traduzidos do grego em latim”. Os livros “platônicos” a que se refere são os livros de Plotino, traduzidos em latim por Mário Caio Vitorino. Quase que concomitante ao despertar metafísico, propiciado pelas leituras neoplatônicas, Agostinho encontra Ambrósio (339-397 d.C), o bispo erudito de Milão, personalidade marcante que o auxiliaria a vencer o último grande obstáculo que o apartava da fé cristã, as Escrituras. Agostinho, como muitos homens cultos de sua época, especialmente os latinos, versados em gramática e retórica, admiradores de Cícero e Vergílio, repudiavam o latim tosco e a linguagem enigmática da Bíblia (Conf. III.5.9):

Determinei, por isso, dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer. [...] O que senti, quando tomei nas mãos aquele livro, não foi o que acabo de dizer, senão que me pareceu indigno de compará-lo à elegância ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligência não lhe penetrava o íntimo.

Agostinho aprenderia, ouvindo os sermões do velho bispo, a leitura alegórica das Escrituras, ou seja, aprenderia a ler nelas o “espírito”, não a “letra”. Este passo foi decisivo para a sua libertação, pois muito da força aglutinadora dos maniqueus sobre seus adeptos, inclusive o próprio Agostinho, residida no seu repúdio ao texto do Velho Testamento, que julgavam absurdo e irracional. Faziam uma leitura literal, demonstrando o que apontavam como sendo incoerências (Conf. VI.4.6):

Alegrava-me também de ver que já me não propunham a leitura dos antigos escritos da Lei e dos Profetas, com a mesma panorâmica em que, tempos antes, me pareciam absurdas tais doutrinas, quando argüia os vossos santos, na suposição de que os interpretavam assim. Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como que a recomendar diligentemente esta verdade: “A letra mata e o espírito vivifica”. Removido assim o místico véu, desvendou-me espiritualmente passagens que, à letra, pareciam ensinar o erro.

Esta peregrinação interior, que culminaria, em Milão, com seus estudos neoplatônicos, associados à influência de Ambrósio, havia de marcar toda a sua vida intelectual. Do neoplatonismo herdou várias concepções metafísicas que o ajudariam muito a elaborar suas próprias teses, especialmente as que tratavam da origem do mal, além de entender e explicar várias passagens das Escrituras, sobremodo o Evangelho de João (Conf. VII.9.13):
Neles [nos livros neoplatônicos] li, não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e numerosos argumentos, que “ao princípio era o Verbo e o Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo: e este, no princípio existia em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é vida e a vida era a luz dos homens; a luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam. A alma do homem, ainda que dê testemunho da Luz, não é porém, a Luz; mas o Verbo ― Deus é a Luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava neste mundo que foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu. Porém que veio para o que era seu e os seus não o receberam; que a todos os que o receberam lhes deu poder de fazerem filhos de Deus aos que cressem em seu nome isto não li naqueles livros. (Grifos do tradutor.)

De Ambrósio, por outro lado, Agostinho obteve a certeza de que era possível não apenas ler as Escrituras e encontrar nelas verdades, a princípio ocultas, como também conciliar a fé cristã com a razão e a Filosofia, e até mesmo com a sutileza retórica e formal que tanto o deleitava (Conf. V.13.23):

Chegado a Milão, fui visitar o Bispo Ambrósio, conhecido pelas suas qualidades em toda a terra e vosso piedoso servidor, cuja eloqüência zelosamente servia ao vosso povo “a fina flor do vosso trigo, a alegria do azeite de oliveira e a sóbria embriaguez do vinho”. [...] Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, não com o espírito que convinha, mas como que a sondar a sua eloqüência para ver se correspondia à fama, ou se realmente se exagerava ou diminuía a sua reputação oratória. Estava suspenso das suas palavras, extasiado, porém indiferente, e até zombando do que ele dizia. Deleitava-me com a suavidade do discurso, bem mais erudito do que o de Fausto, porém menos humorístico e sedutor na apresentação.

Neste cenário, recém-egresso do maniqueísmo e convertido definitivamente à fé cristã, Agostinho decide abandonar a carreira promissora na corte e dedicar-se a uma vida ascética, voltada à meditação e à erudição. Símaco, então prefeito de Roma, o havia enviado, em 394, como professor de Retórica (e panegirista) para a cátedra de Milão, a fim de servir ao jovem imperador Valentiniano II, como o próprio Agostinho nos deu a saber (Conf. V.13.23):

Portanto, depois que dirigiram de Milão um pedido ao Prefeito de Roma para que aquela cidade fosse provida de um professor de Retórica, a quem se concederia a licença de viajar na diligência do Estado, eu próprio solicitei esse emprego [...]. Propôs-me Símaco, então prefeito, um tema para discursar e, sendo eu aprovado, me enviou.

Demissionário do cargo, segue para Cassicíaco, nas cercanias de Milão, para, junto da mãe, do filho Adeodato e de amigos aguardar o batismo e então poder retornar à Pátria, a longínqua África. Deste período (386-387) temos os primeiros diálogos de teor filosófico, como Contra academicos, De beata uita e De ordine. Enquanto aguardava a oportunidade de embarcar para Tagaste, sua terra natal, para dar largas a seu novo ideal de vida, Agostinho é forçado a permanecer ainda uma temporada em Roma, em virtude da interdição do porto de Óstia pelo usurpador Máximo. Em Roma, ao lado do amigo Evódio, iniciou então os debates que deram origem ao primeiro livro do De libero arbitrio, em 388. A obra só seria concluída por volta de 395, já na África. Iniciou, portanto, aos 34, e veio a terminá-la aos 41 anos de idade."

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Fonte:
Ricardo Reali Taurisano: “O De libero arbitrio de Agostinho de Hipona - Vol. II”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de mestre. Orientador: Prof. Dr. Marcos Martinho). São Paulo, 2007.

Nota
:
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