Calvino em Genebra



Genebra era uma cidade muito antiga. Fora nos tempos pré-históricos um conglomerado de habitações construídas sobre estacas. No tempo do império romano foi uma ativa rota comercial, na Idade Média esteve sob domínio de seu bispo catedrático, tornando-se uma força política na cidade.

A Genebra do século XVI era uma cidade suíça, de fala francesa, situada ao sul do lago Leman, conhecido hoje como lago de Genebra. Ela é dividida em duas pelo rio Ródano, tendo uma ponte ao norte, conhecida como St. Gervais, que proporcionava o contato entre as duas partes. Até 1536, a situação da cidade era delicada. Genebra foi uma república que estava inserida entre os limites dos cantões suíços, os domínios do duque de Savóia e o reino da França, e uma luta pelo poder gerava disputas na cidade.

A partir de um governo eclesiástico estabelecido, as principais famílias de Genebra organizaram o “Conselho dos Sessenta” para a elaboração das leis da cidade. O Conselho, ou Consistório reunia-se na catedral de São Pedro do bispado, de forma que a jurisdição civil e eclesiástica entrelaçaram-se. Tal Conselho regulava e dirigia o exército, a moral, entre outros. Por volta de 1520, os chefes de Genebra eram na maioria comerciantes.

Em 1526, tais burgueses formaram o “Pequeno Conselho dos Vinte e Cinco”, que assumiu de fato o governo do município, e eram uma espécie de comissão executiva do qual estavam subordinados todos os negócios políticos e civis. O bispo declarou a cidade sob o jugo da revolta e chamou em seu auxílio os soldados do duque. No entanto, foram derrotados pelo exército da cidade de Berna. O bispo fugiu para Annecy, e o Grande Conselho, que se indignara com o apoio que o clero católico dera ao bispo, se pronunciou pela fé reformada, assumindo assim a liderança tanto civil quanto eclesiástica de toda cidade (1536), dois meses antes da chegada de Calvino a Genebra.

Não há um consenso sobre a população de Genebra antes da chegada de Calvino em 1536. McNeill defende uma cifra de 12.000 habitantes, Nichols 13.000 e Hermisten Costa, citando Stanford Reid, defende apenas 9.000 habitantes. Contudo, parece ser mais aceito 12.000 habitantes a população no início do século XVI. A cidade era conhecida pelas suas ruas limpas com banheiros públicos e pelo forte comércio que nela acontecia, fruto de freqüentes feiras setorizadas.

As propriedades foram usadas como templos para cultos, instituições de caridade e ensino. Uma severa disciplina moral foi estabelecida por meio da lei. Os cidadãos foram chamados para jurar fidelidade ao Evangelho, sendo banidos aqueles que se recusassem a assistir o culto religioso da Reforma. Era essa a Genebra onde Calvino acabava de chegar.

Guillerme Farel foi o líder protestante que começara a Reforma em Genebra. Agora estava determinado a não deixar Calvino escapar de suas mãos. Farel acreditava que Calvino fosse capaz de realizar a obra para a qual ele próprio não possuía envergadura suficiente: reconstruir Genebra. Afinal, tinha em suas mãos o autor das
Institutas e não o deixaria escapar.

O famoso encontro obrigou Calvino a ficar em Genebra. O próprio Calvino escreveu no prefácio do comentário de Salmos que Farel o deteve em Genebra, não propriamente movido por conselho e exortação, e, sim, movido por uma fulminante imprecação [esconjuro ou maldição], a qual me fez sentir como se Deus pessoalmente, do céu, houvera estendido sua poderosa mão sobre mim e me aprisionado. Enquanto Calvino tinha apenas 26 anos, Farel já tinha a experiência dos seus 47 anos.

Calvino se viu forçado a reformar a Igreja da cidade, estabelecendo quatro ofícios: pastores, mestres, anciãos e diáconos. A Igreja de Genebra era constituída pelo Consistório e pelo Conselho de Pastores, este último criado por Calvino. Genebra era uma cidade governada por concílios. Os concílios eram uma reunião de autoridades eclesiásticas com o objetivo de discutir e deliberar sobre questões pastorais, de doutrina, fé, e costumes. Uma tentativa de Calvino em resgatar o modelo do novo testamento, quando os Apóstolos se reuniram para tratar sobre os temas que estavam dividindo os primeiros cristãos.

Antes de Calvino não havia uma normatização legislativa organizada e explicitada para todos. Movido pelo seu zelo de sempre ser fiel ao ensino moral da Bíblia, e ajudado por seu conhecimento jurídico, ele foi o agente e mentor de várias mudanças políticas. É bem verdade que Calvino foi convocado para se envolver nestas atividades, ajudando na confecção do corpo de leis para a cidade, posteriormente à sua intensa atividade na reformulação da vida religiosa.

Como reflexo da política praticada em sua época, a mistura funcional Igreja-Estado exercido por séculos pelo catolicismo romano também foi claramente adotada pelos protestantes em Genebra. Reformadores como Martin Bucer (1491-1551) e Zwínglio se posicionaram favoráveis à não independência da Igreja em relação ao estado, posição que Calvino não apoiava. Nesse assunto, parece haver um ponto de discordância entre os estudiosos.

Embora não fosse desejado, a interferência do Estado nas decisões e estruturas de ação da Igreja, Bouwsma alerta que Calvino admitia como ação legítima do Estado defender a Igreja e executar vingança sobre os profanos ou sobre aqueles que queriam reduzir o Evangelho a nada. Sobre este aspecto tratar-se-á o capitulo 3 desta pesquisa.

A fim de estabelecer uma base religiosa em uma moral cristã, Calvino escreveu o Catecismo, aprovado pelo Grande Conselho, em novembro de 1536. Houve, por parte do conselho, uma disciplina bastante severa com o objetivo de moralizar os costumes. Foram estabelecidas rígidas regras de comportamento, foi proibida a vadiagem e o comerciante ficava impedido de roubar no peso ou extorquir. Em 1536, o Pequeno Conselho decretou a abolição da missa e a remoção de todas as imagens e relíquias das igrejas.

No documento havia pontos pacíficos como a valorização da família, a eleição dos pastores de cada paróquia e a representatividade dos presbíteros nos distritos. Contudo, logo no primeiro artigo do documento, havia uma matéria que Biéler classificou de "equívoco calvinista” que suscitou controvérsias e interpretações fantasiosas. Por ele dava-se ao magistrado civil o poder de intervir para avaliar a fé dos cidadãos, o que não deixava de ser uma espécie de continuidade da política Católico-Romana.

Não demorou para que o povo genebrense, acostumado com a complacente disciplina moral anterior, resistisse às novas disposições. Aqueles que anteriormente lutaram na libertação da cidade contra o bispo, se reorganizaram exigindo a liberdade de consciência e culto. Esta coalizão conseguiu obter maioria no Grande Conselho na eleição de 3 de fevereiro de 1538. O novo conselho ordenou a Farel e Calvino que se mantivessem fora da política. Os dois recusaram-se a cumprir as ordens dadas, e posteriormente foram depostos (23 abril) e convidados a sair da cidade dentro de três dias.

Segundo Calvino, embora Genebra fosse neste tempo uma cidade protestante, ela o era nominalmente, daí sua declaração ao despedir-se do Conselho:

Quando cheguei a esta igreja, não havia praticamente nada. Eles estavam pregando e isso é tudo. Eles eram bons em procurar ídolos e queimá-los, mas não havia outra Reforma, tudo estava em alvoroço.

Dali foi para Estrasburgo, então cidade alemã sob o controle do Sacro Império Romano-Germânico, servindo como ministro da congregação dos protestantes, onde introduziu a liturgia em francês na Igreja fundada por seus compatriotas protestantes ali asilados.

Enquanto isto, em Genebra o bispo, Jacopo Sadoleto, escreveu uma carta aos Genebrenses aconselhando-os a prática do catolicismo. Sadoleto, que detinha um bom latim dirigiu por carta aos magistrados, senado e cidadãos de Genebra vinte páginas de cortesias diplomáticas e exortações teológicas, assim ofereceu à Genebra seus serviços. O Conselho agradeceu os cumprimentos e prometeu-lhe uma resposta. Não encontraram uma pessoa que pudesse responder com o latim ou com a espada o requintado humanista. Calvino, ao saber do fato, respondeu ao cardeal no afã de defender a Reforma e, usando de eloqüência, o rechaçou. O conselho de Genebra ficou tão impressionado que ordenou que as duas cartas fossem impressas às custas da cidade (1540).

Em 1541 seus adeptos haviam então tomado o poder em Genebra, para onde foi chamado de volta com liberdade para instaurar um regime protestante segundo suas concepções. A partir disto, começaram a se perguntar sobre a ausência de Calvino como um homem capaz. Em maio de 1541 a maioria dos membros do Conselho concordaram em chamar novamente Calvino. Em 13 de setembro de 1541 ele regressou à Genebra para reaver seu posto na Igreja. Ali começou definitivamente a organizar e estruturar a Igreja e a cidade com princípios bíblicos.

Assim falou Calvino sobre seu retorno a Genebra:

Depois, quando o Senhor, apiedando-se desta cidade, aquietou as agitações e comoções perniciosas que nela havia e, por seu admirável poder, dissipou tanto os desafortunados conselhos quanto os sanguinário esforços dos perturbadores da República, contra meu desejo e inclinação, a necessidade me foi forçada de retornar a meu primeiro posto. Ora, ainda que o bem-estar desta Igreja me fosse a tal ponto relevante que não teria eu dificuldade de em favor dela dar minha vida, minha disposição timorata.
No entanto, me oferecia muitas razões para excusar-me, para não retomar, outra vez, tão pesado fardo. Por fim, entretanto, a consideração de meu dever, que eu contemplava com reverência e confiança, prevaleceu sobre mim e fez condescender em retornar para com o rebanho do qual eu havia sido como que arrancado; o que fiz com tristeza, lágrimas, grande solicitude e aflição, de que me é boa testemunha o Senhor, e muitas pessoas bondosas que ter-me-iam querido ver fora desta angústia, não tivesse sido que o que eu temia é que me levara a anuir, também os possuía e lhes fechava a boca.

Inspirado também no famoso livro
Utopia (1516), do inglês Thomas Morus, Calvino estabeleceu a estrutura organizacional até hoje vigente nas Igrejas calvinistas, com quatro níveis: 1) doutores, eruditos em textos sagrados; 2) pastores, pregadores nas igrejas; 3) anciãos para transmitirem a doutrina ao grande público e velarem por seu comportamento; 4) diáconos para promoverem a caridade e velarem pelo bem-estar material da comunidade.

A Genebra de Calvino deveria ser uma cidade “piedosa”, uma república teocrática, modelo na terra do reino de Deus no céu. Pelo menos, foi este seu ideal. Alguns historiadores da Igreja classificaram o regime de Calvino em Genebra como uma teocracia, outros como clerocracia.

No entanto, o Conselho, que foi formado por pastores e anciãos, formou um Conselho com poderes, inclusive de excomunhão, para disciplinar a ética e o comportamento do povo. Segundo alguns autores, o Consistório do qual Calvino fez parte, tornou-se o governo da cidade e instaurou um regime de terror, inclusive com condenações à morte, contra os que não seguiam as novas linhas religiosas. Os delinqüentes eram castigados severamente, e às vezes banidos em função de suas bebedeiras ou até por criticar Calvino abertamente.

Em contrapartida, outros autores preconizam que a criação deste Consistório - composto de elementos da Igreja e de leigos, se reunia regularmente para julgar os comportamentos individuais, como um tribunal, de acordo com a Bíblia, sendo a excomunhão de pessoas a mais grave sentença que se podia decidir, pois não tinham poder político.

Na defesa de Calvino, Biéler, também apoiado por fontes, sustenta a tese de Calvino ser contrário à defesa da fé cristã com uso da violência, ainda que grande parte da ação judiciária dos magistrados de Genebra e da atividade teológica de Calvino foi realizada contra os heréticos numa luta de caráter estritamente religioso.

Penso que todos os processos em Genebra contra os opositores da Teologia reformada tinham duplo caráter, religioso e social. Religioso porque ele entendeu que a desobediência aos princípios bíblicos é a causa da desordem social. O caráter social é defendido pelos magistrados, que aceitaram seus ensinos de que o desprezo da Bíblia é a mais profunda raiz da desordem política e social. Neste sentido, os processos teológicos foram também processos políticos e ideológicos, o que acaba explicando o caso de Miguel Serveto.

Segundo Biéler, Calvino jamais exerceu qualquer poder político no governo de Genebra. Até 1555, ele teve que defrontar-se com um governo que lhe era hostil, e somente a partir de 1559, cinco anos antes de morrer, tornou-se burguês, ou seja, cidadão de Genebra. Ainda assim, o reformador jamais conseguiu que fosse adotado plenamente seu ponto de vista sobre a independência da Igreja e do Estado. Em outras palavras, ele nunca conseguiu retirar a Igreja de Genebra completamente da esfera de domínio político.

Pelo menos um herege foi condenado à fogueira em 1553, Miguel de Serveto, que foi proibido de entrar na cidade por ordem do próprio Calvino. Assim mesmo Serveto apareceu para ouvir Calvino pregar. Calvino quis sua decapitação, como castigo por ter negado a doutrina da trindade, mas as autoridades da cidade decidiram queimá-lo.

Calvino foi também um incentivador do ensino e, entendia que para que todos pudessem entender a Bíblia deveriam ter, pelo menos, educação elementar. Calvino nunca foi um filósofo da educação, não obstante ter dedicado-se à criação de escolas, além de compreender a importância do ensino para a concretização de seu trabalho em Genebra.

Em 1559 Calvino inaugurou em Genebra a Academia. Theodoro Beza foi o primeiro reitor. A Academia de Genebra foi dividida em duas partes:
A Schola Privata e a Schola Publica. Como já relatado, ao final de sua vida, 1500 estudantes estavam matriculados nos dois graus da escola, vindos de quase todas as partes da Europa.”

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Fonte:
EBER DA CUNHA MENDES: “A TEOLOGIA POLÍTICA DE JOÃO CALVINO (1509-1564) NA INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ (1536)”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História - PPGHIS, como requisito para obtenção do título de mestre em História na área de concentração História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Alberto Feldman). Vitória, 2009.

Nota
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Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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